23.4.10

Monólogo

A gente... eu já falei tanto "da gente"... falo pra mim, pra qualquer um. Eu já falei muito de "nós".
Mas quem somos "nós"? Existe mesmo um "nós"?
"A gente"... já falei tanto dessa gente, dessa multidão... tão fictícia.
Quem somos esses de quem eu tanto falo?
O Mundo!?

Todo mundo... "todo mundo" eu nunca disse. Eu sei que não existe todo mundo, porque todo mundo é diferente de todo mundo e eu, na minha arrogância tão típica, finjo que sei bem que não existe esse tal de "todo mundo", aí vem a minha tolerância forçada, forjada, de que eu sei bem também que cada um é cada um.
Tirei fora aquele plural da minha vida faz tempo.
Mas aí eu digo " a gente"... que "gente"?
Quem é "a gente"?
Quem me deu o direito de usar então este plural? Onde foi parar a minha tolerância com o "cada um"?
Ela sumiu!

Eu fiz ela sumir, porque dizer "eu", somente "eu", é assustador.
Porque o singular me faz as pernas bambearem. "Eu" me apavora.
Eu não digo "todo mundo", porque o mundo está longe de ser "todo" por ele mesmo, o mundo não é todo e nem o que ele contém o é.

Pessoas... a única coisa que têm em comum, igualzinho, é o título: "pessoas".
Por isso o "todo mundo morreu"...
Mas eu não pude matar ainda "a gente", não quero me livrar dessa "gente" da qual eu finjo que faço parte.
Eu me protejo no meu cardume.
Você não pode saber quem sou "eu", porque no cardume só existe "a gente", não existe "eu".

Por que?
Por que eu tenho tanto medo desse "mim"?
Eu não posso falar, não me sinto a vontade pra falar, por mim nunca; falo por "nós".
Mas hoje eu sei....
"Nós" não existe, eu inventei.
"Nós" não somos eu e você - eu não sei quem é você!
E se soubesse, muito pior seria.
Eu não posso falar por mim, não posso falar por você... só posso falar por "Nós", essa entidade anônima, quase covarde.

É que "EU"... "eu"?
"Eu" não existe... eu não existo.
O que de mim existe?
Eu não sei... nada me pertence, nem eu pertenço a nada... nem à mim.
Eu não me pertenço! Como poderia assim falar de "mim"?
Seria precipitado, um erro.
Eu não me assumo, nem diante de mim.

Eu complico coisas que são simples? Eu invento nó onde não tem?
Pense bem.
Você (quem é "você"?) e o resto (que "resto"!?)... é que simplificam demais.
E eu sei pra quê!
Simplificam pra não ser assim, igual a mim (que "mim"???)
Simplificam que é pra poder viver - não existe outra forma.

Eu descobri isso quando tentei ser real e só descobri irrealidades.
Agora eu vejo o irreal, como ele é... como ele "não é".
Nada é. E quem sou eu também pra falar do "nada"?
O que é "nada"?
Quem sou "eu'?
Essas palavras, esses nomes... eles me deixam doente.
Eu não posso contê-los, eles fogem.
Também não me contenho - já disse,  não me pertenço.

Eu gostaria de ser assim, como vejo os outros serem... existem como podem e pronto.
São felizes, são tristes, são isso e aquilo.
Eu poderia ser assim, se meus olhos pudessem focar a superfície também.
Mas eles não vêem o reflexo do sol no lago, eles pulam essa parte e vêem o fundo...
Ou melhor... eles não vêem o fundo, tanto quanto não vêem a superfície... eles vêem algo aí no meio, o que não é nem lá nem cá. É por isso que nada podem ver. Não mais...

Eu parei de olhar para a superfície quando a superfície não mais me refletiu.
Quando eu olhei e não me reconheci, vi meu corpo lá e soube: esta não sou eu.
Olhei os outros corpos que refletiam satisfeitos e soube: estes não sou também.
Mas eles (que "eles"???) não precisam nem mais se olhar, eles já sabem: somos nós.

E são mesmo?
Eu não acredito nisso, mas se pudesse acreditar o faria sem hesitar.

Em algum lugar talvez alguém me coloque em seu "a gente".
Faço mesmo parte dessa "gente"?
Eu não sei quem é essa gente, eu sei: "a gente" não existe, não mais do que existe "eu".

Essa gente, da qual as vezes pareço fazer parte, vive aceitando sem questionar.
Aceitam que preto e branco são diferentes (esquecem que os dois são cores - fingem que não sabem, porque dói tentar decidir se é maior a equidade ou maior a diferença), aceitam que são, aceitam que estão felizes, aceitam que estão soferendo - e sofrem - aceitam que sentem saudades sem se questionar o que diabos é saudades.

Sobre a saudade eu tenho algo a dizer: a gente (um dia eu aceito que "a gente" não existe) sente vontade, quer ter, a gente anseia, sente falta, procura, sente saudades, acha que não tem, se desespera, chora porque não pode mais viver sem isso ou sem esse alguém.
Eu posso estar errada (talvez esteja tanto errada quanto certa... o que é estar "errado"?), mas acredito que isso e esse alguém são máscaras que tornam mais fácil sofrer a ausência do "eu", do "mim".

A gente sente falta da gente.
É isso que falta... nós faltamos!

Nós???
Preciso parar de dizer "nós". Agora.
Eu sinto falta de mim.

Eu nunca me "soube", ninguém nunca me apresentou...
Quem é "ninguém"?
Eu nunca me apresentei a mim.

E eu preciso parar de usar verbos, se uso verbos me comprometo com a ação que eles insinuam.
Se uso verbos, me comprometo.
Não posso comprometer a mim! Oras, não sei quem é "mim"!
Seria desonesto por a mim em maus lençois.

Eu não posso falar mais por mim.
Eu não posso falar por eles, não posso falar por nós.
Eu não posso falar pela "gente", eu não posso falar por "todo mundo".
Eu não posso falar.

Eu não posso falar "não posso", o contrário da ação é por si só uma ação.
Mas não tem jeito, o não sempre vem: não sinto dor, não sinto alívio, não sinto alegria, não sinto tristeza, não sinto saudade, não sinto vontade, não sinto pena, não sinto medo, não sinto coragem, não sinto ciúmes, não sinto pressa, não sinto fome - se acho que sinto, penso bem e aí eu vejo: não, não sinto nada disso.

Mas ainda assim... ainda que me cerque, me confronte, afunile meu caminho, me leve ao quase nada, ao vazio, me cale, me enlouqueça, me ensurdeça e me esqueça de mim - esse tal de "mim" - eu sinto.

Me pergunto:
Sinto o que?

Sinto necessidade.

Necessidade de que???

De sentir!

...

Touché!
Acho então que eu existo... agora posso falar por "mim".

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