29.10.12

Diário de Calçada a Esmo

Você vai até a rua cheio de propósitos nenhuns. Você entra em todas as lojas, olha todas as coisas, quer todas as coisas, não quer nada. Não compra.
Você recolhe as bitucas de cigarro com os olhos: não são mais do que qualquer outra coisa.
Todas essas pessoas do meio-fio. Você mesmo. Todos.
Sugar sugar sugar tudo o que há de tudo, até enjoar.
Jogar fora (antes de acabar) com um peteleco.
E todos parecem bastante satisfeitos e as bitucas de cigarro por sua vez não parecem se importar nem minimamente. Mas você sim. Você se importa. Você cultiva um ódio e um amor profundo a tudo isso.
O ódio e o amor dos marginais...
Sobe uma identificação completa com as bitucas de repente, descartadas e irrelevantes.
Aliás, você está mais para bituca do que pra ser humano ultimamente, conforme confirmam os reflexos das vitrines.
Mas continua tendo essas duas pernas esquisitas que vão se movendo já autonomamente por aí e é por isso que continua entrando e saindo das lojas mesmo não querendo, tentando chegar a algum lugar mesmo sabendo que não há nenhum lugar, que não há nada.
Deve ser por causa das pernas.

3º Manifesto do Terreno Baldio

Ainda tinha uma última poça.
A água pingava sobre ela do fio de um varal velho e formava ondas.
A gente botou um barquinho de papel pra ver se ele ia rodar.
Rodou.
Aí a gente botou um besouro no barquinho de papel.
E uma bandeirola feita de grama e palito de dente: pronto, embarcação completa.
-Quantos besouros mais a gente pode botar?
-Bota aí... uns 15?
Colocamos 16, em uma frota de 10 barcos.
Tudo rodava, rodava, e o tempo empurrava tudo para o momento seguinte que era exatamente o mesmo que o anterior: rodando, rodando, rodando. nada.
O tempo cansou da gente e dos nossos besouros (porque somos uns chatos) e foi empurrar outras coisas em outros lugares; foi empurrar carrinho de criança até ela não precisar mais dele, foi empurrar cabelo de velhinho pro chão, foi empurrar uns jovens pro altar... e demais coisas que ser humano tem que passar.
E a gente já não tem mais que passar por nada, que o tempo desistiu de nós.
A gente não tem mais verbo ter que.
Passou um vira-latas amarelo correndo e nossa miniatura de Atlântico foi para os ares.
Um momento de gargalhada e depois era catar os bichos que se debatiam virados ponta-cabeça na pocilga.
Soltamos todos de volta no mato e fizemos pelotas com os barquinhos encharcados, os quais resolvemos tacar uns nos outros que era pra ver se o tempo continuava esquecido de nós...
E acho que os dedos das nossas almas deviam estar bem cruzadinhos pra que ele esquecesse mesmo, porque a noite naquele dia ficou guardada pro dia seguinte.

28.10.12

Diário de Telhado

Você veio para se sentar na beirada do telhado enquanto o sol ainda não nasceu, porque se o sol já tivesse nascido ele empurraria os pensamentos contra certas trincheiras: dever, certeza, verdade, justiça, racional, vida.
Sol às 4 da manhã é problema pro futuro. E às 4 da manhã não existe futuro.
Às 4 da manhã num telhado úmido de uma chuva antiga é possível esticar as asas que andavam amordaçadas por dentro do sobretudo e ninguém vai ver e está tudo bem.
O vento sopra: nem do norte, nem to sul, nem do leste, nem do oeste. Sopra.
Não existe direção às 4 da manhã; existe um telhado permanentemente úmido, uma calha-poça permanentemente recolhendo insetinhos cansados da vida e a névoa clareando de leve o escuro e o escuro escurecendo de leve a névoa.
Você não pode ver nada, mas fica a sensação de que sim... ou talvez seja o oposto: você pode ver tudo e parece que não.
Os extremos sempre terminam um comendo o rabo do outro.
O vento é frio como que se viesse dos Polos; e os Polos mais frios ainda: como que se viessem de dentro.
Você está em casa... diante da Grande Geleira invisível!, finalmente.
Algumas penas suas caem na calha, cansaram de viver também.
Você olha na geleira o coração que ela tem e que antes era tão pesado-chumbo: parece uma casquinha de ovo vazia.
O vento bate e ela gira, gira burra no lugar.
Às 4 da manhã não existem muitos sentimentos, exceto essa clareza aguçada... esse minimalismo que era a última opção, como o do soldado que permaneceu de pé, abarrotado até as orelhas de tiros dados e recebidos.
E os tiros recebidos latejam na pele e os tiros dados latejam no coração casca de ovo, mas o coração casca de ovo não tem mais recheio pra sentir as coisas de verdade... só carrega elas ali dentro, como uma mãozinha de criança em concha que leva um passarinho destroçado não sabe bem pra onde, pra ajudar ele não sabe bem como.
Às 4 da manhã as penas do tal passarinho e as suas próprias penas caem na calha sem grandes alarmes, nem bom e nem ruim... num sentimento de boca sem paladar.
E a névoa clareia o escuro e o escuro escurece a névoa e tudo se anula e tudo permanece.
E ainda bem.

27.10.12

2º Manifesto do Terreno Baldio

Duas dúzias, vamos assim dizer, de molequetes esfarrapados e como que fantasiados de lama.
A gente sentou pra ver como que os toquinho-gentes corriam pelo mato alto sem notarem os cortes que iam se aglutinando nas canelinhas e a gente pensava na gente: e puxa, como que somos covardes, se a gente for pensar bem!
Um loirinho magricelas cruzou os braços e pigarreou. A gangue ouvia atentamente e a gente que estava longe não ouvia nada mas tinha plena certeza de que era deveras importante, fosse o que fosse.
A horda urrava de satisfação enquanto que o Sol já era cadaver posto, só um vermelhozinho largado por trás de uma colina.
Criança não sabe morrer.
Guerra de criança tem sempre A Próxima Batalha, O Dia Seguinte, A Continuação, Revanche.
Criança sempre tem espaço no peito para mais uma "Nêga".
E a gente pensava neles, sujismundos arrebentadinhos, zunindo de um lado para o outro, empunhando objetivos urgentes, e a gente pensava na gente: e puxa, como que somos deveras covardes... e nem é preciso pensar tanto assim.

25.10.12

Sobre o Movimento das Ondas

Há um tempo me descobri no reflexo da vitrine de uma loja de esquina na rua 22: era uma modesta garrafa de promessas e nada além disso.
Como manda o figurino para a minha espécie (e porque não sabia o que mais poderia fazer), me joguei no primeiro mar que apareceu.
Não cheguei a praia alguma e agora a água me invade pelas brechas aos poucos, enfim.
Não há mais gargalo para frustração; o que eu quero é saber: promessas são à prova d'água ou a partir de então serei uma bela garrafa cheíssima (cheia até vazar!) só de oceano mesmo?

23.10.12

Diário de Calçada Encharcada

A gente nunca tinha visto nuvem fazer muro de contenção no céu daquela forma.
(O cinza ficou dois degraus mais escuro do que a gente considera triste na medida certa.)
Eu via você erguendo seu arco e flechas sem flechas pro alto e dedilhando a impotência como fosse um deus meio burro - mas um deus ainda, apesar de tudo.
Eu via as flechas imaginadas atingindo os turbilhões que eram as promessas de chuva comprimidas que tentavam se libertar sobre nós e sentia uma espécie orgulho,  talvez também imaginário.
De repente seu arco explodiu enfim os sacos de chuva e eles libertaram toneladas de gotas doces enquanto nós corríamos ensopados e perplexos por uma estrada de asfalto de breu que parecia não ter um final.
Seu arco à tiracolo era inesquecível e também as flechas que não existiam... meio que por isso você não tinha mãos para me dar: cada um corria por si.
E a gente também nunca tinha visto pipas nascerem nas pontas dos galhos secos das cerejeiras daquela forma.
Como que se todas as pipas de todos os tempos sentissem sede súbita de enrolar a própria rabiola naquele cardume seco de pau.
- Pra onde é que foram os meninos que soltaram as pipas? - eu queria saber.
Você apontou pras pipas e eu vi incrédula que as pipas nunca foram pipas: as pipas eram justamente os tais meninos por eles mesmos, penduradinhos pelas roupas esfarrapadas debaixo do temporal.
- Mas e pra onde é que foram então as pipas que soltaram os meninos? - eu queria saber... eu queria saber qualquer coisa que fosse.
Você apontou pra nuvem que era um muro e disse:
- Tudo o que nasce da tristeza acima da média somos nós mesmos. E eu sou você também... ou talvez você é que seja eu.
Pegamos nosso arco (de repente cheio de flechas muito sólidas) e finalizamos os menino-pipas um por um.
E a chuva estancou.

21.10.12

Diário de Calçada e Bonjour

Tem dias que quer jogar uma bomba em tudo e sair correndo.
Tem dias que quer jogar uma bomba em tudo e ficar.
O francês sussurra a eternidade em seus pensamentos, mas isso é o suficiente?
Os Imortais não podem dar mais que poesia, que a imagem do mar explodindo em ondas violetas e desembocando nas mágoas até elas se afogarem.
Mas é só uma imagem. Abre os olhos e elas ainda estão lá, respirando vivíssimas.
(Qual é o caminho do esquecimento permanente?)
Acorda de um sono diurno com a sensação de um som do passado se diluindo na superfície da língua e todas as coisas são boas; mas o acordar tem um segundo amanhecer que não o do abrir de olhos: o despertar da realidade dentro da nossa cabeça, como fosse um trem surgindo da escuridão pacífica do túnel; zunindo e prometendo atropelamento.
Levantamos da cama já esmagalhados contra os trilhos da vida.

1º Manifesto do Terreno Baldio

No Terreno Baldio falaram que viram uma chuva que nunca existiu, largada nas extremidades de qualquer quina de galho, qualquer quina de pêlo de vira-lata.
Essa chuva nunca choveu de verdade fora da nossa imaginação, mas consequentizou toda para fora dela: é agora uma ideia coagulada - tipo a esperança ou a saudade, exatamente como a esperança e a saudade - que se abateu sobre todas as coisas e orvalhou permanentemente na cara dos Abandonados.
(E os Abandonados de hoje são os Afogados do futuro, é tudo questão de teoricamente-chover mais um pouco e de se saber rimar.)

Barco de Farpas

À deriva o céu está mais para a cor do mar.
Um barco flutua no imaginário e as vezes o imaginário flutua no concreto.
Miragem?
Quem vagueia feito garrafa PET numa longe-longe-longitude perdida de um oceano sem nome imagina barcos;
Quem vagueia na memória vira cego aos barcos reais.
Neblina cai ao invés da chuva, em gotas grossas de tristeza, por cima do que sobrou da gente na superfície.
E quando a gente se vê ainda pendurados nessa superfície duvidamos se somos heróis ou meros fúteis superficiais, ao literal e figurado.
(Os homens naufragados ao menos têm a glória.)
Ao longe vem um barco de resgate, ou um barco de farpas. - ou um barco de resgate cheio delas?
E se a única salvação é o inferno? E se quando a gente pisar no bote a borracha for feita de lava?
(E se nós não formos gloriosos o bastante para, em última instância, poder assumir naufrágio?)
Um barco de farpas imaginário (ou real?) cansa muito os pensamentos...
E a gente hoje precisa de uma alegriazinha que seja.... uma esperançazinha.
Nos ocorre:
As nuvens são as ondas do céu, onde surfam as gaivotas, e as ondas são as nuvens do mar: Um náufrago ainda-não-totalmente-naufragado pode então ser considerado passarinho?
Assim está melhor para se pensar.
E de repente, de novo: Adeus, adeus, Barco de Farpas!, esse também já foi embora...
Toda miragem tem um tanto de realidade e toda realidade tem um tanto de miragem. Só depende de quanto tempo durou a piscada da vez.




14.10.12


Adiamos tudo e o entendimento de tudo,
Com um cansaço antecipado de tudo,
Com uma saudade prognóstica e vazia.
- Álvaro de Campos


... E o vazio sempre muito mais cheio do que o próprio cheio : é infinito e urgente.
E um saco de ar tem potencial pra mais barulho que um saco de batatas, com toda a certeza.

13.10.12

Cachorro Nervoso

Cachorro nervoso que não tem osso para roer.
Cachorro nervoso rói os próprios braços.
Uma cabeçada no bloco duro de mármore preto e a realidade não desaparece não desaparece não desaparece não...
Cachorro nervoso rói os próprios braços  porque o dente coça, coça muito.
O dente?
O dente, a garganta, o peito, as costelas, a alma!
A alma tem coceiras.
Bloco de mármore preto é duro e frio, e o coração das gentes também: duro e frio...
E quando a noite chegar cachorro não vai mais saber dizer o que é a noite do que é coração marmorizado e tudo por isso vai ser a mesma coisa: alvo cruel a que se dar com as fuças.

8.10.12

Sobre os Muros do Labirinto


Confesso. Fui eu quem tacou fogo nas estantes todos os dias num ritual impensado: primeiro porque queria apagar o que lá tinha, fosse o que fosse, e depois porque queria destruir o fogo que eu mesma ateei, como que tentando reparar o erro, e depois porque queria reparar esse erro também: destruir o fogo que destruiu o fogo que destruiu o fogo que destruiu... e assim sucessivamente numa roda infinita de arrependimentos.
Eu quis destruir o fogo com o fogo e destruir a mim com mim, mas no final das contas só fiz multiplicarmo-nos todos. Trocentos fogos e mims, repetidos feito clones, me perseguindo nos sonhos.
E por trás de cada labareda e cada livro destroçado, e por trás de cada curva de rua sonhada, e por trás de cada chuva e cada fio de cabelo encharcado, a pergunta:
A gente ainda pode ir embora se a gente quiser?
(E se a gente puder ir embora, pra onde é que a gente vai?)

7.10.12

Casa que Flutua

A noite é sempre de repente.
Passarinho nenhum faz vôo rente pelas margens das nossas cabeças.
Uma casa boiando no espaço, como quem quisesse ser estrela.
Senti um calafrio, friosíssimo, me subindo pelo dentro da espinha e a nitidez da casa era tipo a de um sonho: nada falta e nada tem.
A casa era uma caixa apertada entre o contorno das árvores - e bem que podia ser só o contorno das árvores sem árvores dentro. Fiquei pensando em quem alí morava  mas já com toda a certeza de que era ninguém.
Aquela casa nasceu para ser vislumbre de sonhador perdido, só uma fachada de papel frouxo pra roubar um pouco da escuridão do escuro, fazer ele mais pobre em escuridez, por assim dizer.
A noite é sempre de repente e repetida.
E o sentimento da noite sempre repetido também: estrela, estrela, estrela, saudade. nada.

Sobre o Movimento da Espuma

Apontando o dedo para o universo tentava descobrir de onde é que vinha o vento.
Pensava, pensava: e pra onde é que se aponta o dedo quando a gente quer saber de onde vem essa onda esquisita que bate no dentro às vezes, de repente?
Pra onde é que se aponta o dedo quando a gente quer saber a direção de pra onde que a gente tá indo?
Tinha vezes se sentia indo para um lado enquanto que apontava proutro, tipo o menino montado invertido no cavalo e apontando a espada em riste rumo à guerra enquanto que o cavalo levava ele pra onde suas costas olhavam: o nada.
Tinha vezes se sentia cavaleiro imbecil, jogado ao acaso no lombo dum pangaré que não recebe ordens - e o alazão dos outros tão cheio da pompa e das inteligências geográficas e estratégicas! Tão cheio das logísticas!
Apontava o dedo pro dentro que era pra descobrir a que horas a onda ia bater dessa vez e levar tudo embora de novo... queria pelo menos empacotar as coisas!.. mas a onda nunca avisava, e nem nunca dava pista: batia.
Aí apontava de volta pro universo e sentia o macio transparente vindo da esquerda para a direita. Fácil.
Queria ser o vento, ou queria ser o dedo, ou queria ser o universo... e ou até o pangaré também estaria bem, desde que pudesse deixar de ser essa boca de praia largada que onda gosta de assombrar.

5.10.12

Sobre Movimentos Centrípetos

No que pode se resumir a realidade?
Você é um cachorro manso de grande porte preso contra a vontade numa galeria de cristais.
Seu rabo é o sarcasmo do universo materializado.
O primeiro vaso vai ao chão, culpa do tal do rabo, e com ele a sua sensatez...
O pânico é disparado pelo estopim do grito do objeto estraçalhado e, depois disso, tudo é caos.
Sua vida é um caos vicioso: o desastre gera o pânico e o pânico gera o desastre.
Quanto mais se corre para longe dos cacos, mais cacos se formam no percurso.
Como abandonar uma roda gigante que se move mais rápido que a velocidade da luz?
Seu estômago, cachorro, se revira entoxicado e você sente vontade de chorar... Mas cachorro não chora.
Posto isto, você se põe a uivar! Sim, uivar dramaticamente, uivar como um selvagem uivar como... como um lobo. Mas aí se lembra que não é lobo, tem de admitir! Se lembra que é só um maldito vira-latas sem valor.
Você não tem direito de uivo.

No que se pode resumir a realidade?
Nisto: uma roda gigante embaralhando cachorros burros a frágeis tesouros de cristal, como que se fosse muito divertido mesmo atirar os claustrofóbicos a uma máquina de lavar.

4.10.12

Diário de Pedregulho e Masoquismo

Você ficou encalhado num mar de pedras e cada pedra se expandia debaixo do sol até o ponto em que você não pudesse mais escapar.
As pedras inchavam, desenfreadas, enquanto que você se perguntava como podiam pedras exercerem função de inchar.... e você se perguntava e você esquecia de tentar fugir - a pergunta sempre foi mais importante que a ação. Você virou um fungo bem aderido aos contornos maliciosos das drusas, e quase que já nem sentia mais as espetadas porque teu corpo ia se adequando para acomodar as pontas. Você sempre teve um dom mal aproveitado para a submissão....
Pois agora você vai à forra. Você é o próprio capacho dos caprichos geológicos: você é o servo da erosão, você é o bajulador dos processos de sedimentação, você é a gosma, o mutante, o farrapo multi-uso para rochas e afins. Todo homem quer usado inescrupulosamente por uma coisa melhor que ele mesmo... por isso que existiu o deus, por isso que existiram reis. É pra isso que existe a pessoa a que se ama.
Aos misantropos sobram as coisas.

2.10.12

Diário de Calçada Deixada pra Trás

Ficava a pensar nos prédios que são altos e que se alaranjam com o poente e que se diluem nas nuvens e que cobrem todo o chão como que uma cama de pregos indiana.
Ficava a pensar na quantidade de janelas decoradas de luzes, mesmo no meio da hora mais vulgar (e mais sagrada), ficava a pensar em quando pensava sobre as verdades do universo tendo as janelas decoradas de luzes como precedentes do pensamento.
O pensamento se diluia enquanto que derramado janela do prédio afora - feito lágrima despejada de um balde de flores que se vai rolando até o chão e que daí se evapora pelo caminho e sobe de volta, chegando nas nuvens alaranjadas do poente e depois chovendo com elas em tom de melancolia por cima dos pregos...  (enferrujando os pregos sem a gente notar.)
E nenhum dos pensamentos ficou guardado no peito e nenhum sentimento ficou guardado no cérebro, mas ainda a imagem dos prédios-pregos e suas janelas tristes e piscantes permanece colada à retina como fosse um trauma ocular... como fosse a própria Nostalgia que cristalizou ali e depois emudeceu.

Por Onde Passa o Vento

O copo ser meio cheio ou meio vazio não me vem muito ao caso. Me deito na minha rede e cubro com o pano grosso e tosco que ela tem tudo o que eu puder de mim. Fico vendo o mato que cresce desgovernado por cima de tudo e torço pra que ele cubra esse tudo logo de uma vez, que quando ele cobrir esse tudo logo de uma vez eu saio da minha rede me deito por cima desse tudo e espero as garras verdes me engolirem também. E o que vem ao caso é: meu coração é totalmente cheio, tipo que vai explodir, ou totalmente vazio? Hoje eu poderia jurar que senti o vento passando lá por dentro e armando acampamento e eu nunca sei... eu nunca sei se dói porque falta coisa ou se dói porque tem mais coisa que cabe.