31.7.12

Madrugário

Um barco de luz pairando no escuro.
Corro olhando pro chão, evitando os holofote-facas que querem me perfurar os olhos.
Eu corro e descubro que acelerar as pernas é desacelerar os pensamentos.
Meu cérebro lacrimado e transmutado em madrugada lateja, desacostumado com essa inércia nova que vem de dentro.
Vira tudo uma névoa, com cheiro de madeira. Gosto desse cheiro.
Fecho os olhos e entorno uma taça inteira de rio dentro da caixa que guarda o coração que disseram que é o meu. (Mas nunca sei se ele é meu mesmo.)
Aí paro pra sentir o universo e então duvido se existe mesmo uma Lua de verdade, acho que é uma lenda, acho que é tudo holofote dos homens e nada além disso.
Tudo o homem, sempre ele, sempre ele só.
(Ou então são meus olhos que, perfurados, desaprenderam a discernir o mundo.)

29.7.12

Mestre, meu querido mestre...


Essa sensação de que a única pessoa a quem se vale confiar é um poeta que já morreu...
Toda a vida vai se definhando feito um algodão agarrado numa árvore.
Bate um vento e ele se esgarça mais e mais, infinitamente, depressivamente...
As pessoas se esgarçaram pra mim.
Olho pra elas e não as reconheço e não reconheço aquilo que de mim dei a elas.
Que será que eu era quando elas eram aquilo que eu achava que elas fossem?
Tudo está aterrado num terreno estranho, de uma gravidade que não é a minha. Sinto vômito subindo pelo nariz e tento achar um balde para me aparar os engasgos.
Mas não existem baldes nesse chão de gravidade bizarra.
Nem baldes nem ombros nem corrimões e nem nada.
Confio no poeta (e só no poeta), que os mortos não tem dom para decepcionar.

Diário de Calçada e Escolha

O sol queima demais, a sombra traz um inverno insuportável.
Você corre de um lado pro outro tentando decidir com qual dos dois você pode lidar (ainda que porcamente).
Mas em ambos um cheiro de abandono e de fim de linha.
Fica desesperançoso, mastigando o ranço que se apegou a sua língua.
Chega o ponto na sua vida em que você começa a conjugar verbos no passado com propriedade; antes um passado cheio de fatos era uma teoria no dicionário mas você cresceu e suas costas começaram a sentir o peso das camadas de sujeira se acumulando.
Aos vinte e dois anos seu queixo já bate no chão, fracassado.
Essa impotência toda...

A náusea se aproxima, debaixo da penumbra da indecisão, e ainda não são nem quinze horas. Você fica assustado tentando prever que cara então terá a madrugada dessa vez.
A anterior foi desperta e descontrolada.
Bem o tipo de madrugada que se assemelha a um trem mergulhando no escuro entre dois despenhadeiros. 

24.7.12

Diário de Calçada e Delírio



A gente pára o dia e olha a diversidade de tons de cinza da calçada enquanto espera a  tristeza pegar um barco e o barco da tristeza naufragar. 
Mas essa tristeza não pega barco, essa tristeza é sentimento que cria raiz.
E a gente vai cortando a tristeza, podando a tristeza, mas no dia seguinte a gente acorda e ela regenerou.
Como um jardim que cresce em tempo acelerado, ou cachorro rábico que aprendeu a invadir a nossa casa enquanto a gente dorme.
Não existe mordaça nem facão que sejam o bastante, a gente sabe disso e por isso a gente largou de mão.
A gente sabe disso... por isso a gente senta na calçada de mais um dia estacionado e fica alí imaginando como seria se essa tristeza fosse o tipo de sentimento de monções (igual a felicidade).

Leporídea

Coelho treme o nariz, treme as orelhas.
Sente uma coisa que chega pelo chão, por baixo, uma coisa que faz barulho de medo.
Coelho sempre de olho arregalado, não existe sossego.
Coelho aprendeu a esperar o pior, a nunca dormir, a nunca baixar as orelhas.
A coisa se aproxima barulhenta, barulhenta de um barulho que acerta direto o cérebro e não precisa ser ouvido pra isso.
Coelho sente medo, medo, medo... da coisa que vem pelo chão.
É só a ameaça, sempre só a ameaça, mas o daí o coelho não pode dormir, não pode baixar as orelhas e o nariz treme e o corpo todo treme e ninguém ensinou coelho a chorar!... por isso o coelho permanece de olhos secos e inexpressivos: nada pode dizer pro mundo que o coração do coelho criou orelhas pra ouvir o barulho do medo que vem correndo por baixo da terra.

19.7.12

Diário de calçada e temporal

O único jeito de se livrar de um vício é trocando ele por outro.
Fiquei vendo a chuva cair, olhando ela de frente.
Os pingos vão aumentando de tamanho conforme se aproximam dos olhos e tudo fica mais devagar.
Não é preciso fazer muito esforço hoje pra não piscar: é como se tivessem enfiado estacas entre as pálpebras ou como se, simplesmente, o corpo tivesse perdido a vontade de exercer suas próprias funções.
A chuva vai acertando o buraco lacrimal e invadindo ele como se ele fosse grande o bastante pra isso.
Um parto invertido.
O mundo chora pra dentro da gente...
Penso que há uns anos eu sentia uma espécie de melancolia branca, mas hoje ela tem gosto de cigarro e não tem mais qualquer parcela de nobreza.
Tipo o nosso sono, que chegou a um ponto que mais cansa do que faz bem.
Acordo doente de uma doença abstrata - um enjoo no coração ou algo do tipo - e o resto do dia é uma contemplação dela.
Alguma coisa muito séria mudou depois que eu passei a feder a fumaça, acho que pode ser que agora eu não saiba mais como se faz para chegar à conclusões ou porque agora eu considere todas insuficientes e deveras inconclusivas se a gente for pensar bem.
Desde que eu era criança, pode-se dizer que eu desaprendi um bocado...
O único ganho concreto é poder parar e ver os pingos caírem que nem uns aloprados direto na minha cara, feito tapas, e não sentir mais medo deles, porque afinal não faz lá tanta diferença assim apanhar mais um pouco, depois de tudo.

18.7.12

Across the Universe

Você chorou por dias na suas próprias mãos e em determinado ponto você percebeu que você era pequeno demais até pra elas.
Você caiu dentro delas, que estavam transbordando.
Você tinha desaprendido a dançar no escuro...
Algum estalo bateu na sua cabeça e te fez esquecer de todas os foguetes que já passaram pra te dar carona enquanto você se afogava nas próprias poças. Você esqueceu deles.
Ou talvez eles tivessem escasseado.
Talvez eles tivessem deixado de existir ou talvez o tempo tenha começado a passar mais devagar pra eles, ou talvez você tenha precisado tanto tanto tanto (como nunca) em um único segundo que esse segundo passou a pesar por duas décadas inteiras.
É sempre um choque bom de realidade quando alguma coisa pega a gente à força e põe a gente pra dançar. (Nesse momento você percebe a semelhança delas com os tais dos foguetes.)
É sempre um salvamento boca-a-boca - um restauração pulmonar - quando alguém põe a mão na nossa cintura e conta o compasso pra gente porque sabe que a gente agora não tem forças pra isso; porque sabe que a gente agora não consegue sequer discernir música nenhuma.
E o importante é que daí a gente se descobre com vontade de ir dormir cantando de novo.

17.7.12

O Dia do Pombo

Ele pegou o gravador da estante e gravou o pássaro cantando com a voz de outro bicho.
Eu não pude ouvir, por isso ele transmutou o som em desenho e me deu de presente junto com um pedaço de nuvem.
A gente deitou no pedaço de nuvem e dançou juntos (deitados mesmo) exatamente às seis da tarde, mas só era seis da tarde no relógio imaginário que a gente inventou... no relógio real da minha vida era oito da noite de um dia perdido no tempo e no relógio real da vida dele era madrugada de um dia que pra ele também se perdeu.
[Todas as coisas nascem perdidas, só é achado aquilo que a gente cria porque precisa.]
Acordamos sem termos dormido - o clássico verbo de quem permanece sempre suspenso em sonhos.
Os pombos faziam amor no telhado, bem acima das nossas cabeças, e a gente parou pra olhar, fascinados, porque achamos que eles podiam nos ensinar um monte de coisas a respeito de amor e de vôos - e amor e vôos é tudo de que se precisa nessa vida.
Ele disse: "Eu não sabia que pombos eram tão fofos quando estão se amando... Quer ver um filme mudo comigo?"
E a gente viu o filme que passava dentro das nossas próprias retinas e que a gente mandava de volta um pro outro e o filme se repetia porque nossos olhos viraram espelhos que brincam de se encarar.
É bonito quando coisas tão diferentesdistantesimpossíveis conseguem se fundir de repente...
[E no final do filme mudo eu escutei o tal do pássaro de garganta invertida cantar dentro da minha cabeça (coração).]

15.7.12

Quero me misturar às estúpidas roupas emboladas na cadeira - já estão lá há uma semana.
Quero me misturar aos farelos de pão no chão da cozinha, me prostrar, esperar a pá vir para me levar embora.
Embora para onde (José)?
Mas sim, esperar a pá...
Ficar à cadeira, embolada, sem funções.
Sinto uma tendência a querer me afiliar a coisas sobradas.
Quero me misturar ao cometa que despencou e que ninguém sabe onde foi dar com as fuças.
Quero dar com as minhas fuças bem justo neste lugar ausente em rotas, junto com ele...
Quero me arrebentar com as cordas do violão e então que me lancem numa gaveta dessas para coisas perplexas.
Quero me transmutar numa coisa perplexa dessas...
O mundo já se deu de determinâncias.


você parado de frente pra janela com a mão no peito você pergunta porque bate tão depressa se o mundo é tão lento lento como se não se movesse
você sente o compasso acelerar você se pergunta um monte de perguntas que jamais deveriam ter sido feitas, já há algumas horas o sol se pôs não tem ninguem na casa exceto você nunca tem ninguém na casa exceto você
sempre só você só
o barulho da chuva o barulho da chuva o barulho da chuva
barulho de chuva não existe, a trilha sonora da minha da minha cabeça é a chuva inexistente
uma melancolia que é parida lá do fundo arrancada membro por membro como uma criança que se recusa a nascer mas que precisa porque senão morrem os dois
você quer fechar a sua porta ninguem pode entrar mas ela permanece encostada, sua braçada é fraca você não consegue se proteger - não sabe virar a chave! a qualquer hora alguem vem.
a qualquer momento um chute vai fazer a porta despencar alguém vai vir e alguem vai perguntar por que sua cara derreteu
você não quer que ninguém venha você quer que qualquer um venha
vem por favor vai embora fica aqui
o clássico dilema de quem é solitário.
você queria que um monte de bichos assaltassem teu corpo e expurgassem essa tal de solidão, você queria formigas carrapatos queria que tudo subisse até a sua cara e se prostrasse diante dos olhos e entrasse por eles e fizesse festa no seu cérebro
uma filha da puta de uma festa sem sentido para celebrar a falta de sentido que tudo tem
o dia acabou.
mais um.
ele sempre acaba com uma expressão de lamento te exigindo o prestar de contas, que você liste tudo que você concretizou dos seus sonhos seu palhaço... você não concretizou nada hoje de novo
(deve ser porque não sonha)
a boca tem o gosto do sal mas as bebidas que a gente bebeu não fizeram efeito
rrrrrrrrrrrrrERRRRRRRRRRRrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrR!!!!!
(as lágrimas estão te caindo pelo nariz)
nada fez efeito é tudo fracassado quando você faz parte nem engolir alcool você sabe fazer direito
e você queria tanto ver.
hoje você queria ver e nada além de ver ver é o verbo único.
(ouvir é verbo passado)
existe essa bunda que a humanidade tem e que rebola na sua cara, a grande bunda do cotidiano...
você pede pra ela parar ela te manda a merda
nada do que você fala faz sentido e você não consegue ver
uma enorme e indesejada bunda tapando seus olhos
que resta aos infelizes que não a cama com camada tripla de cobertas até o meio dia do dia seguinte?

I felt like crying but nothing came out. it was just a sort of sad sickness, sick sad, when you can’t feel any worse. I think you know it. I think everybody knows it now and then. but I think I have known it pretty often, too often.
(bukowski)

13.7.12

Você e o seu bagageiro lotado.
E a sensação do vazio, de onde é que vem?
Todo dia você enfia mais e mais pessoas lá dentro, mais e mais frases de efeito, mais e mais idéias maravilhosas e mais e mais amores eternos.
E o vazio então de onde é que vem?
O vazio vem de onde?
Onde é que tá o furo que faz tudo escoar e murchar?
Um vazio pleno de caos...
Como o silêncio do surdo - que de forma alguma é silencioso.
O barulho do naufrágio, grito de baleia, tudo submerso...
Os chiados, os ruídos, a auto-gritaria. Ainda assim a solidão do silêncio.
Talvez porque esses sons todos (e tudo que a gente enfiou no bagageiro) são de mentira.
Talvez porque as pessoas, as frases de efeito, as idéias e os amores são mentira.
Por isso só fazem tumulto, mas não preenchem absolutamente nada, não saciam a fome. Nem minimamente.
São cenários, papel chulo que brocha na primeira chuva.
E são a gente mesmo, de novo tipo o som do surdo, que é ele mesmo: vem sempre só da própria necessidade e dos próprios pensamentos, mas nunca é do mundo. Nunca é o mundo alí, invadindo a cabeça (a cabeça permanece virgem).
E as pessoas que a gente meteu no bagageiro... elas nunca são elas mesmas, sempre são só o que a gente precisa que elas sejam no momento.
É tipo como se a gente criasse pequenas cópias de areia de tudo o que a gente acha bonito e brincasse com  eles dentro do próprio cercadinho como se eles fossem reais. A gente acredita nisso de verdade..
Mas naquele dia específico - que, só eu sei, tem se repetido com a mais cretina das insistências - de um céu não tão bonito assim, o olho resolve focar e percebe a textura de tudo; percebe que tudo é construído, que nada é real...
Que a gente não tem ninguém: nem os mais chegados e nem os conhecidos colecionáveis que a gente juntou só pra se distrair.
A gente não tem ninguém.
E ninguém tem a gente de volta.....
E o bagageiro vai ser sempre cheiovazio.

12.7.12

Manhã


Os peixes se escangalharam durante a noite e agora boiam feios na margem... a noite escangalha as coisas.
Sente isso também, sente-se escangalhado, flutuando sem controle algum sobre si, brutalmente carregado por qualquer marola.
A quantidade de areia que voa impede a boca de dizer coisas.
E nem se pudesse... nada deve ser dito.
Vive o táctil.
Sente os ex-peixes acertando as canelas, inconscientes.
Bate a compatibilidade, é "ex-gente". Um "ex-gente" insensível, sem nostalgias: apenas com o sentimento de arregaço seco.
Há esse momento particular da ressaca em que a feiura das coisas escangalhadas é bem-vinda, em que a feiura das coisas escangalhadas se transfigura (quase que) em companhia. E (quase que) isso ameniza a aridez da condição humana...
Enfia a cabeça na água salgada, enfia a cabeça entre as carcaças das corvinas que o sol quer devorar.
Brinca de ser carcaça também, quer ser carcaça também... ter função de acertar canelas e só, e sequer saber disso.
E ser devorado pelo sol... sim, e ser devorado pelo sol.

11.7.12

O passo a que andam as coisas... ah, o passo a que andam as coisas!
Andam a passos trocados, tropeçam.
Ou, sem pose de protesto - displiscentes -, simplesmente não andam.
Metralha-se as coisas e daí as coisas se enchem de buracos, mas diabolicamente regeneram sem jamais contra-atacar.
E o contra-ataque é a resposta justa... mas em terra de coisas de passos trocados a injustiça é o prêmio principal.
Vácuo. Não. Vazio. Frio. Inexistente. Nada.
Como um paralítico a que se espeta os pés e não há reação e a única coisa que ocorre ao pensamento é: e agora?
E agora nada, sempre o nada.
E agora as coisas continuam no passo errado, no desconjunto, na gangrena... até pararem de andar de vez ou até a gente desistir de apostar os olhos nelas.

10.7.12

Diário Solar e de Calçada II

Os poetas já falaram tudo.
Tento deter os raios coloridos do sol entre os dedos e eles escapam.
Os poetas falaram sobre o sol já, e sobre como ele escapa...

Tenho raios de ferro coroando minha cabeça.
Eles partem do centro, atravessam o hioide e vão ainda além.
Chegam a um lugar que ninguém nunca deu nome... exceto talvez algum poeta que já morreu; exceto talvez todos os poetas, em tudo o que já disseram.
Eu não sei porque me pego beijando o chão de cimento, acho que minha intenção inicial é sempre só o cheiro... mas essa mania de adoração, essa mania...
Eu te adoro, no sentido mais profundo que isso pode ter.
(Seja lá o que você for.)

Os poetas já falaram tudo o que há para ser dito, os poetas já adoraram cada pedaço do chão.
Os farelos de calcita que eu beijo algum poeta antes de mim já beijou.
Os raios de sol ultrapassam minha capacidade de possuir, e as pessoas também e o chão e as palavras.
Não possuo nada exceto essa insistência em querer, exceto essa consciência da perda que vem quando o sol me abandona beijando o chão no escuro, declamando versos que saíram do coração de outro.
Os poetas me destrincharam nos sentimentos que eles mesmos sentiram, sem saber que o faziam.
Analiso meu coração biopsiado nos corações que eles colocaram às mesas e que eram deles e não de ninguém mais, mas que eu tomei para mim achando que me enxergava ao espelho.
Os poetas falaram de mim, adoradora de migalha, sem nunca terem dito meu nome; sem nunca terem sabido meu nome.

Os poetas já falaram tudo e sentiram tudo.
É por isso que, com certo ódio,  eu me pego a repetir em loops intermináveis toda e qualquer coisa que lhes tenha saído da boca.. essa boca que se parece tanto com a minha.

7.7.12

5:00.
A hora dos acontecimentos reais.
Levantou metade do corpo da cama e sorriu sozinha no escuro.
Virou a cabeça para o lado e pediu pra ele entrar debaixo das cobertas com ela.
"Vem cá... vem."
Disse isso com a mão esticada e um sorriso escomunal enfiando os dentes todos para fora da boca. Qualquer coisa como uma lágrima ameaçava marginalmente os olhos.
Emocionante, sempre, trazer ele pra perto de si.
Abriu espaço entre os lençóis.
"Vem cá."


A loucura não é mais que um sonambulismo prolongado, uma "cinco da manhã" congelada no tempo.
E felizes os loucos... felizes os loucos, cujas camas podem ser preenchidas só pela necessidade de que elas sejam.


6.7.12

Diário Solar e de Calçada I

Vai, senta na beirada do sol.
A corona espalha e embaralha os pensamentos, a corona ateia fogo aos pensamentos.
E queimar tudo, jogar tudo para o chão é a única possibilidade de respirar de novo.
Senta na beirada do sol e espera.
Desesperado é aquele que já não espera mais e esse você achava que era você, mas tua pose de mármore com o rosto suportado pelas mãos te contradiz.
Senta na beirada do sol enquanto o sol ainda roda, a manivela não é a gente que gira - não existe manivela - e a gente nunca sabe quando é que ela vai parar.
Senta na borda da penumbra e vive o lado claro e o lado escuro ao mesmo tempo.
É permitido ser dois em um. É permitido ser um milhão em um. Todo saco de carne tem um avesso.
Talvez ser multidão faça o coração pesar como chumbo, talvez ser multidão ocupe espaço demais e talvez o destino de quem é multidão é ser sozinho na própria pluralidade, simplesmente porque não tem tempo para outras pessoas que não as próprias inquilinas cerebrais.
Ser sozinho é uma característica estrutural da nossa espécie, não se surpreenda da sua solidão e nem a considere qualquer coisa de especial. A solidão é comum, comum como sangue e, como sangue, qualquer um se aflige de ver a sua própria saltando corpo afora mesmo que seja a coisa mais óbvia do mundo.
(Quando é que o homem aprende a não se espantar de si?)

Vai e senta no penhasco com os pés balançando frágeis e vulneráveis, e que se dane.
Talvez você caia, talvez você fique.  (Qual dos dois é pior?)
O sol te deu uma beirada, uma bela de uma margem, uma trégua entre o coração efervescente e o gelo espacial.
E se prostrar diante dele é um belo de um treino pra quem pretende um dia pendurar os pés para fora de si mesmo.



Teu coração te impele para fora de ti.
Teu coração te persegue, e já estás quase fora de ti 
e não podes mais voltar.
Assim como um besouro que foi pisoteado, saltas para fora de ti,
 e o teu pouquinho de dureza externa e de capacidade de adaptação não tem sentido.

 - Rilke




O besouro esmagado para fora da própria carapaça, esse é você.
Por todo esse tempo e ainda antes dele: você esperava por amanhã, pelo grande twist, pelo momento em que você deixaria de ser só isso que você é para ser algo de verdade - ou o momento em que você viria a ser o você, o você real.... mas essa carta na manga nunca existiu além da esperança vaga de que ela existisse. E você nunca precisou olhar pra dentro das próprias roupas pra saber que ela não está lá.
(Você não tem cartas na manga, você é um total despreparado; te jogaram no mundo por acaso e sem aviso.)

Nada acontece, passem os anos que quiserem passar.
Você encontra pessoas pelo caminho, besourossoas que mesmo que sejam esmagalhados também ainda assim sabem ser alguma coisa.
Deve ser isso, os esmagalhos dos demais têm significâncias enquanto que o teu é só sujeira mesmo.

Você sabe entrar numa sala e interpretar papel de gente.
Você sabe falar, andar, comer, cruzar as pernas (feito mulherzinha) e sorrir o mais agradavelmente possível.
Isso é a adaptação.
E adaptação é realidade?
Passa duas horas a maquiagem desmancha, sua gosma volta a escapar do exoesqueleto.
(E quem é que pode prender a respiração por tanto tempo?)
Besouro, besouro, besouro... besouro perdeu a voz.
Besouro não tem voz, simplesmente, não tem perna para cruzar, não tem boca para sorrir. Nada.
Besouro enbesoura, esse é o único verbo.
Besouro é feito para abarcar pisoteios.
E você, besouro, se auto-pisoteia cruelmente enquanto tenta se achar.
Você, besouro, se escapa a si mesmo enquanto acha que escapa ao mundo.
Nada faz sentido.
Nada faz sentido e a máscara de gente já não permanece fixa no lugar e cai, chula, escorregando lentamente com a gosma pelo chão.
E o besouro e sua máscara e suas entranhas espalhadas e seu coração derramado permanecem na calçada por mais uma madrugada, enbesourando, e esperando que amanhã seja mesmo amanhã dessa vez - porque dos hojes eles já estão é fartos.

2.7.12

Casa do Sol Nascente

Acordo depois de sentir o breu socar o pulmão no fundo.
Tudo cheira a abandono, as mãos acalentadoras de ontem ficaram no ontem mesmo... como tudo: o ontem pega tudo para si.
A Casa do Sol Nascente é o lugar pra onde a gente vai quando a gente sabe que as sementes dos dentes-de-leão que tinha aqui quando a gente nasceu foram todos para o brejo já.
A Casa do Sol Nascente é o lugar onde um campo de dentes-de-leão aguenta qualquer vento.
Esquisito é que sonhei que eu sentava na grande avenida da tal da Casa do Sol Nascente e chorava alto enquanto eu mesma pisoteava todos eles e não deixava nenhum de pé.
Nenhum campo aguenta o pé do próprio jardineiro.
No final só sobravam as hastes, tortas, e meu coração latejante enterrado num buraco.
Quanto mais os anos envelhecem minha pele mais poder eu tenho, mais pedras carrego na minha coroa...
Mas nunca fui hipócrita: vejo a coroa descer, cada vez mais fundo pela minha cabeça, e se enterrando no meu pescoço.
A minha coroa, a coroa da rainha que é livre porque pode, no fim será minha coleira e minha bola de ferro. As hastes dos dentes-de-leão que eu sei que vou pisotear (sei, porque obedeço meus sonhos) terão ares de espinhos perfurando minha sensatez.

Sinto, com a suavidade da camada superficial do mar que uma brisa fraca empurra, minha moral definhando em gangrena e sinto medo, muito medo, do cheiro que ela tem soltado...

A Casa do Sol Nascente é a única esperança para os marginais como eu, mas alí ninguém entra de graça.
E eu e o resto deles já começamos a pagar tomando porrada do breu e do próprio irreconhecimento, começamos a pagar com lascas das leis que a gente mesmo alicerçou pelo caminho. Com lascas de nós.

Penso: é destino virar aquilo que a gente odeia?
Porque eu ando caindo em tudo o que um dia chamei de "buraco".