31.3.12

Deixei meu naco restante de miocárdio debaixo de uma ponte fina, e daí choveu pelos dois lados.
Em algum lugar desses por aí tem uma clareira larga no céu e nela o sol mostra a que veio.
Mas sobre a ponte sempre chove.
E eu podia aprender a deixar minhas tralhas dentro de casa, ou num cofre no banco, ou podia andar com elas nos meus bolsos... mas eu largo nos lugares mais impróprios, feito fossem meus rastros.
Não vai sobrando nada de mim...
Vou ficando cada vez menor, uma pedra se dilacerando barranco abaixo.
Da minha lucidez sobrou um pouquinho ridículo do qual ouso fazer uso uns segundos antes de cair no sono (tipo o cara que não tem dinheiro pro feijão, mas que comprou um chocolate e dividiu em 365 farelos).
Da minha visão me sobraram os borrões, das minhas memórias sobraram as inventadas.
Do meu coração, que nunca foi inteiro, eu dei uma metade estraçalhada pro mar (o mar das 5:00), uma outra parte gorda me levaram num assalto ou num estupro ou sei-lá-deus-que-diabo-de-trombada-foi-aquela.
O restinho que ainda tava por aqui eu resolvi largar debaixo da tal da ponte mais esquisita que eu pude encontrar.
Agora ele está pegando chuva e vai morrer de pneumonia, com toda a certeza.
Mas coração não tem pulmão, coração não morre de pneumonia.
Eu e minhas burrices!
Eu e as minhas esquisitices!
Pelo menos um dia desses talvez eu trombe num galho mais firme pelo caminho e ele leve também a minha consciência, e daí eu nunca mais vou pensar em coração e assalto e barranco e rastro.

28.3.12

Fez-se a solução

Irei mascar esta dúzia de cravos da índia até minha garganta ceder.
Daí depois eu junto.
Nada faz sentido. É tudo seco como bola de pó no deserto.
O sol virou um diamante preto e eu não sei o que pensar.
Dentro da minha carcaça ressoam as trombetas mudas pra me avisar do temporal que não virá, do sol que não deixará de ser errado, das pernas tortas, dos pássaros que têm dentes no lugar dos bicos.
Sinto cheiro de mar das cinco da manhã quando ele senta do meu lado.
Mas não existe lado, não existe direção.
O cheiro do mar das cinco é apenas um pensamento (e ele também).
De todas as coisas que se foram as que mais incomodam são as que se foram antes de terem vindo.
Pássaros dentuços mordem fora a pele do meu pescoço.
Os dias me atropelam feito dominó, o sol continua um babaca fantasiado de escuridão.
Não é preciso nuvem nem chuva se o próprio sol abafa a luz.
As cusparadas que eu lanço no meio fio são feitas de pedra moída, rouxinol de dente afiado belisca os meus restos de calcário.
Meu nariz é uma tumba: o ar não passa mais.
Nos meus pulmões o lodo se esparrama a largos passos e eu sinto o engasgo.
O peito não bate, mas o pulso lateja.
Nada pode ser feito, minhas mãos são como cotocos dilacerados e tristes.
Nunca em minha vida fui um objeto tão cheio de vazios, tão inútil.
Um dia a gente aprende que pra ser feliz é preciso não querer ser feliz.
É preciso não ter vontades, é preciso ter sentimentos de máquina de lavar, de carpete, de poça.
Aniquilem, para seu próprio bem, todos os sentimentos de qualquer espécie que seja.
Aniquilem as expectativas.
O sol é um diamante preto e estranho e o mundo todo também... só estranhezas.

23.3.12

Sobre o movimento das nuvens VII

Acho que são mesmo as nuvens.
Hoje elas estão andando rápido demais.
É esquisito.
Um bloco se aproxima da geleira branca no sul do céu, como que puxado à força, meio que tendo obrigatoriamente que se unir à tempestade.
O céu era mais bonito ontem.
Eu deitei sob as árvores e senti o vento...
Hoje tudo o que senti foram formigas me adentrando pelas vestes e a pele e os buracos da cara.
Esmigalho uma por uma entre os meus dedos, sou valente!
Mas pena é que minha valentia não chega até o céu... pena.
Meus dedos são maiores que as formigas mas são menores que as nuvens.
E eu sou infinitamente menor que a tempestade e tudo bem! Tudo bem, que todo mundo é..
Mas é que eu, especificamente eu, especificamente hoje... eu estava afim de sol.
(E que o movimento das nuvens me desaponta dia sim, dia não.)

22.3.12

Sobre inconsistência das coisas

Tudo é nada.
Pela manhã você desenrola uma linha de pensamento matadora.
Nada pode destruir a lucidez que acompanha o pão com requeijão, o cabelo bagunçado e um estado sonolento de pouco caso.
Ali estão as coisas reais, bem ali naquela mesa.
Os surtos noturnos já não são nada, você ri envergonhado quando pensa neles.
Mas aí o leite derramado começa a diluir o papelão de que é feito a mesa.
E o próprio leite é papelão também.
De uma hora para outra, um dominó entornado no seu colo... você é a próxima peça a cair.
E as suas mãos são papelão, do vagabundo, e a sua cara é uma grande máscara pintada com canetinha.
A canetinha a chuva leva embora.
Só que a chuva hoje também é feita de papelão.
Ao meio-dia você está completamente sozinho numa estrada sem asfalto e sem caminho definido.
Uma dor latejando por toda a cabeça: o papelão de que é feito os pensamentos (e as certezas e a lucidez) começa também a se encaminhar para o destino de poça que tudo tem.
Uma poça suja de papel cuspido.

20.3.12

Eu sou uma bala de chumbo.
Dos entremeios das rachaduras, eu sou o musgo intrometido.
Eu tenho gosto de roda de caminhão.

Ontem um cara me disse que as estrelas são bolas de fogo girantes a que se pode fazer pedidos.
Hoje fiquei sabendo que todos os pedidos que eu fiz o fogo comeu.

Eu sou o musgo que nasce nos abismos e que o jardineiro arranca fora com as próprias mãos.

19.3.12

Plástico Bolha

No começo era a completude.
Todos os espaços estufados, feito peito de nadador campeão.
Todos os espaços preenchidos - que beleza!
Daí a gente pegava nosso coração e embrulhava com carinho antes de dormir.
Pronto!, estava protegido de qualquer chuva, de qualquer projétil, de qualquer mão estabanada.
A gente ia dormir, e aí a gente dormia bem. A gente sonhava alto.
Todo dia era assim, a mesma cerimônia noturna...
Mas aos poucos a coisa foi mudando de aspecto e eu não entendi.
De repente o plástico estava mole, frouxo, largado.
Cada vez mais parecido com um trapo.
Quando me sentia corajosa tirava ele do armário antes da hora pra contar as bolhas que ainda estavam vivas.
Não precisei criar uma planilha pra saber da gravidade do caso.
As estatísticas formavam uma curva com as fuças viradas pro chão.
E aí a minha própria fuça ia também pra lá, pro cimento, que eu não sabia o que fazer com tanta decepção.
De que servia o peito estufado das milhares de bolhas se o peito estava estufado era de ar!?
Ar... banal e patético ar.
Ar. Desse que escapa por aí numa fungada.
Hoje já não consigo achar uma mísera fortaleza que não tenha sido derrubada pelo tempo e pela falta de cuidado.
Nem sei se fui eu, nem sei quem foi... só sei que pisaram.
Ah, se pisaram!
Pisaram, amassaram, estouraram, lançaram cusparadas, sei lá mais o que.
Hoje eu não posso mais guardar nosso coração como fazia antes.
Hoje já não vou mais dormir com os olhos fechados - senão acordo de repente de madrugada e o coração já caiu no chão e já arrebentou de novo.
O plástico bolha vai acabar indo pro lixo, no final das contas.
Logo ele, que tanto foi essencial pros "sonhos altos"...
Mas é isso.
É isso e não tem jeito, não.
E se quer saber, estou mesmo pensando em comprar uma caixa grossa de aço dessa vez.

17.3.12

Monsgato

Tropecei num gato feio pelo meu caminho.
Ou então foi o gato que tropeçou em mim, porque estou sentindo as consequências de um belo de um chute no baço até agora.
Passa, bicho ruim!
Era eu gritando do meio fio.
E o desgraçado nada, como nem tivesse nunca passado pela minha vida.
Ou então vai ver que é... vai ver que ele nunca passou.
Vai ver que nada nunca passou pela minha vida... devo ter sido eu que passei por aí, pela vida dos outros, a vida dos gatos, dos muros, dos sapatos, das testas franzidas.
Eu que passei por tudo isso!, feito fosse um mosquito de valor nenhum.
Feito fosse aquele chapéu nunca usado que sua tia levou no penhor junto com as jóias e os casacos de pele e que não valia nada e que por isso voltou pra casa da tal da tia, sem alegria e nem tristeza e nem nenhuma porcaria de sentimento.
Eu tropecei no gato mas o gato continuou o percurso e quem teve que parar para tomar o fôlego fui eu.
E já tropecei em um monte de coisas nessa vida (ou foram as coisas da vida que tropeçaram em mim!) mas foi só depois do gato que meu baço começou a inchar.. só depois do gato que eu comecei a ter alucinações sobre mim e acreditar fielmente que sou um chapéu gasto.
O gato deve ter lançado um feitiço nos meus olhos, não sei.. vai saber!
Mas foi por isso que peguei asco do desgraçado.
Por isso que pra mim ele não é mais um gato.
O gato pra mim agora é um monstro.

O idiota escreve

Não havendo escapatória o idiota escreve.
O idiota se prostra diante do papel segurando o lápis como se tivesse uma faca na mão.
O idiota não pode mudar as coisas, o idiota não pode fazer nada. Ele escreve.
Ele escreve sobre como se sente, sempre disfarçado de algum outro ser humano (outro idiota), ele escreve sobre as vassouradas que levou da vida, ele escreve sobre escrever.
O idiota olha pela porta por onde passa a empregada e lhe dirige um sorriso.
O idiota finge que está tudo ótimo. Sempre... tudo ótimo.
O idiota só se deu ao direito de reconhecer a sujeirada debaixo do tapete para o papel.
O papel é o saco de pancadas do idiota e o idiota é o saco de pancadas da vida.
A empregada não é o saco de pancadas de ninguém (a que se saiba) e por isso não merecia sequer estar neste texto.
Este texto fala dos idiotas (o idiota e seu papel idiota e sua vida idiota), e a empregada não o é.
E nem os vizinhos o são.
E nem ninguém que o idiota tenha conhecido é. Todos são pessoas com falhas, mas idiotas... idiotas jamais!
[Nessa parte do texto o idiota se lembra que Pessoa já falou disso inclusive com melhores palavras... muito melhores.
O idiota é tão idiota que nem escrever, nem isso!, nem isso ele faz direito.]
O idiota se retira do dia como o fracassado se retira do jogo.
E ai!, quem dera deus ao idiota poder se retirar assim também da própria carcaça ordinária!

Sobre tipos de bicos e cordas-vocais

Os pássaros do sudoeste cantam em gritos.
Acordei hoje pela manhã e não me ouvi.
Pedia à algum passante que me trouxesse meu cálice de comprimidos matinais e o som não chegou nem a ele e nem a mim.
Tudo o que se ouve são os grasnados do sudoeste.
Gostaria de poder dizer que o canto é feio, que daí seria justificado enfiar-lhes balas de aço pela testa.
(seria?)
Mas não.
Não sei que é que me teimo em me sentir tão incomodada, os olhos de vasos estourados criando micro rios de sangue e o tique-nervoso na perna dando as caras de meia em meia hora cada vez mais fora de controle.
Onde estão os meus comprimidos?
Nasceu uma nébula ao redor desses pássaros.
Uma nébula que cheira à shopping. Acho que é isso! Essência de shopping concentrada.
Bem aquele cheiro de novo e moderno que entra pelas coisas que você leva embora de lá com você mas que some assim que você põe as sacolas no chão do seu apartamento.
Meio que o tipo de cheiro que vem só para assinalar o seu fedor.
Pois sim...
Quando passarinho nasce meio que são todos iguais.
Nenhum tem pena, nenhum tem exuberância, nenhum aprendeu nenhuma música ainda.
Daí passam os meses e fica automaticamente óbvio quais são os azulões e quais são os tico-ticos.
Pelo amor de deus, vou ter que ir buscar eu mesma!?
E ninguém ouve tico-tico enquanto azulão canta.
Ninguém ouve...
Foda-se.
Me levanto pra pegar os malditos remédios, me dirijo à escrivaninha onde ainda permanece um intacto gramofone e solto "Got My Mojo Working" no último dos volumes.

14.3.12

Quero que me enfiem as brumas pelos buracos da cara.
Meus pulmões não querem sabem respirar mais ar.
Agora querem algo mais grosso, mais intoxicante.
Querem algo que preencha melhor, porque o ar escapa fácil... como tudo... como tudo.
Tudo se vai indo pelas calhas até atingir um ralo grande e feio.
Todas as ambições, todos os planos tudo, tudo.
Pelo ralo.
Meus pulmões querem agora um ar que o ralo não puxe.
Minha cabeça pede um pensamento que não seja tão banal quanto todos têm sido...
Todos eles, idiotas e dispensáveis.
Quero que me enfiem pedras duras goela abaixo, que as frutas frescas todas apodreceram.
Meu estômago não se sacia dessas frutas.
A beleza apodrece. É bem isso mesmo.
O que é bom, o que é  vivo, o que tem cor... tudo isso... podre de um dia para o outro.
Minhas pernas agora pedem por calças acinzentadas... o cinza é a melhor opção, que até as pretas se enchem de bolas e até as brancas se enchem de terra. O preto e branco também é fútil e efêmero, tanto quanto são as cores.
Já os cinzas são intocáveis. Como as pedras e como o ar que o ralo não puxa.
Tudo em mim pede por uma gota de eternidade, cada célula,  por uma mísera tábua do cais que não ceda sob meus pés.
Não preciso viver para sempre - até porque isso seria um martírio - mas enquanto viver, gostaria que pelo menos alguma coisa não me fugisse enquanto fecho os olhos para dormir.

13.3.12

Os dias têm agido como fossem sinos de igreja, badalando arrebentados pelo meio-dia.
O coração do sino é pesado demais, por isso que o sino voa de um lado pro outro de acordo com as vontades dele.
Meu coração é o coração do sino.

Os tons da água hoje são impuros feito sola de bota... o mundo me obriga a agachar e tomar três cálices de golada desse sumo sujo. Tudo o que sou a partir daí é um engasgo.
Fico tossindo compulsivamente pelas entradas das mansões. Me tascam as portas na cara.
Quando vejo estou no brejo.. virei um seixo.
O seixo não sabe ricochetear.
O seixo só sabe ir pro fundo...
Mas esse é um talento que ficará intocado, que no brejo não existe gentes pra tacar o seixo no pântano.
Daí seixo permanece em si mesmo, trancado.
E quem olha pro desgraçado até pensa em paz!Até pensa...
Mas o coração do seixo é o coração do sino. Sem tirar e nem pôr.
Arrebentado. Da esquerda pra direta e depois ao contrário.

10.3.12

uivo

A noite não é silenciosa. A noite, o escuro e o vazio soltam as coleiras do cão que é o pensamento.

Você deita numa rede e aprecia o verso.
Você acha o verso muito bom, mas muito bom mesmo!
Um verso bom desses salva o dia.
Existe vento nas folhas e na água, apesar de.
Existe gente lotando as ruas, existem barcos desafivelando-se do cais.
E você nem precisar estar lá pra saber que tudo isso existe.
Existe, porque é óbvio. Isso basta.
A gente escolhe o que a gente quer saber.
A gente escolhe o que a gente quer sentir.
A gente não tem controle sobre a velocidade com que o mundo gira ou onde é que tem lixo ou onde é que tem água fresca, mas a gente sempre pode decidir que lado merece um olhar mais demorado nosso.
Isso sim, isso é ser feliz pra cacete.

9.3.12

A maneira mais fácil de tocar o terror no mundo é não fazer nada.

Eu atravessei a cozinha feito um raio, louca por alguma coisa que eu nem sabia o que era.
Fiz as panelas todas caírem ao chão com um estrondo que todo mundo ouviu, menos eu.
Eu sempre fui agitada assim, desastrada assim, revelada assim.
Sempre me ouviram, sempre me tocaram, sempre me souberam.
Eu nunca soube ninguém.
Tudo o que eu toco no mundo é farelo, é o pó acumulado sobre o móvel - jamais o próprio móvel, por ele mesmo.
As panelas ricocheteando pelo chão e eu passando direto.
Não tenho tempo pra trovoada acabar de ressoar...
Só tenho tempo pra procurar o tempo, pra pensar no que fazer com ele.
Só tenho tempo pra pensar que não tenho tempo, pra me sentir velha... passada pra trás.

A maneira mais fácil de tocar o terror no mundo é não fazer nada.


E enquanto eu avanço gritando que vou passar, enquanto eu coloco fogo no chão com o toque dos meus pés, enquanto eu arrasto a lua pra minha cama, enquanto eu atiro as bombas no seu quintal...
Você é a pessoa inexistente, cavalgando sua valquíria que não é absolutamente nada e calando a boca mais uma vez só pra fingir que não me viu derrubando as tais das panelas (ou talvez até tenha visto, mas isso não é tão importante assim).





8.3.12

Um dia desses te atiraram no fundo de uma piscina gelada e ao que seu corpo tocou a água você soube exatamente quantos graus ela tinha e soube que dava para um cara grande como você morrer por alí mesmo.
Mas depois não mais.
O susto é só o impacto, a barrigada.
No fundo da piscina não existe temperatura e nem sensações e nem som e nem nada. Apenas a consciência vaga de que há um mundo externo e aquele tamborilar fraco do coração que ainda tenta avisar que a qualquer hora o ar nos pulmões acaba.
É isso. A qualquer hora vai acontecer aquela catástrofe que é voltar a ter que ser humano...
Acordar da anestesia e ter que encarar as caras lá fora cheias de questionamentos imbecis, e ter que encarar você mesmo e seu corpo tremendo e sua pele enrugada.

7.3.12

Não tinha nada a ver com nada.
Era aquela peça estranha do guarda-roupa a que nunca surgiu uma ocasião real de uso, e que, se porventura surgisse, não poderia ser combinada satisfatoriamente com nenhuma outra.
Achava que as pessoas eram boazinhas, achava que as pessoas eram gente-boas, achava que as pessoas eram grandiosas. Mas no fundo a própria verdade é que sabia que as pessoas eram pessoas, independente da categoria, e que isso já era o bastante para abrir um abismo escandaloso entre elas e si.
Não era uma pessoa.
O que tinha talvez era só ares de pessoa, só a superfície, num dia de sorte.
Como a água estacionada da piscina que reflete o sol e impede a gente de ver o lodo do fundo.

Sentava na cafeteria de perna cruzada observando as tais das pessoas com o interesse de quem vai ao zoológico.
Tão diferentes... tão iguais.
Como saber? Eram universos tão separados que chegava até mesmo a ser difícil definir se eram opostos ou gêmeos idênticos.

Certo dia escreveu num guardanapo enquanto comia um croissant e tomava um mate:

"Não entendo, de forma alguma, a tara humana por sentir qualquer coisa que seja.
Amor, ódio, ciúmes, vontade... Tudo isso nos serve apenas de razões para acabarmos a vida transformados nuns amargos recalcados.
Mais me impressionam as pedras e a sujeira do chão. 

Mais me vale o boi do pasto, desinteressado da garoa fina. 
Penso nos sapos e nas aranhas e eles não me pensam de volta.
As paredes não escrevem textos imbecis como este.
A natureza é ruim e é dura e é sábia. 

E o humano é arrogante e só."


Só nos dois sentidos.
Nunca encontrou ninguém e nem nada que soubesse fazer a travessia, que viesse dar um oi mais pra cá... pro lado de dentro.
Quando achou que tivesse feito, foi um engano copioso... como que tivesse dado limões por maçãs.
Como achasse que o sol fosse ente abraçável, embaraçoso como sair pela rua com a camisa ao avesso.
Um engano, como todas as coisas no fundo foram, são ou acabarão por ser.

5.3.12

Sobre o lombo e a farofa

Punha mais farofa pelos fundos do porco, como quem tentava encher o espaço vazio do próprio peito.
Enfiava a farofa cada vez mais fundo, cada vez mais farofa... a sujeira se espalhava pelo chão, ninguém varria...
A farofa não tinha sal.
Por vezes apanhava com as mãos em concha um punhado farto daquela areia e enfiava tudo na boca, pra calar algum soluço ou um impulso de gritar.
Daí não sabia como engolir e o estômago ameaçava devolver ao mundo a palhaçada em forma de farelo.
Os olhos se avermelhavam pelas beiradas e prometiam uma gota primogênita para logo, a qualquer momento...
Uma cusparada.
Enfiava mais farofa pelo rabo do animal, trocando o ar por algo mais estúpido ainda... por algo mais feio ainda.
E o lombo era duro como pedra, era velho.
O sol secou o lombo e ninguém quis comer.
Uma hora nesse lombo não vai caber mais farofa...
Daí quando isso acontecer talvez passe a enfiar todo o lixo insosso nos furos do próprio nariz.
Me pego tomando vinte banhos num dia, propositalmente esperando o leite esfriar para ter que esquentá-lo novamente.
Me deito na varanda e me dou quinze minutos de sol para cada cinco minutos de realidade.
Existe gente que se esforça para matar o tempo, mas meu alvo para um eventual assassinato brutal seria o pensamento.
O sol se afoga na rebelião das nuvens, uma massaroca cinza, e meus quinze minutos viram sete.
Entre quinze e sete, se sobressaltam os oito faltantes e esses tais oito faltantes se derramam do céu direto na minha cabeça tipo pingos navalhados, tipo raiozinhos em miniatura carregados de clarividência.
O pensamento é imortal, tão imortal quanto as nuvens que escondem o sol.
E o sol é o coração, que não pensa nada, nem vê nada, só é...
Atiro pedregulhos nas nuvens e todos me caem na cabeça.
Atiro pedregulhos nas idéias e todos retornam feito bumerangue.
Por isso continuo com meus banhos. Continuo indo ao banheiro lavar as mãos sem necessidade, continuo penteado o cabelo já penteado e varrendo migalhas inexistentes do chão... comendo os dias pela beirada mesmo, como se um dia o pensamento fosse encher o saco da minha vida vazia e tomasse um trem pra vida de outro.

Tristes, mas honestos.

A gente se revira do avesso por qualquer coisa pouca.
A gente chora pela lua porque ela está deveras longe (insuportavelmente longe) mas fato é que se ela estivesse perto demais a gente choraria o sentir-se sufocados também.
O diabo que carregue os pensamentos tortos da gente que enterra a cabeça no chão procurando sarna nos fundilhos do próprio espírito.
A gente, que tanto busca o simples minimal, a gente usa nós no lugar dos fios de cabelo.
Nossos olhos têm vinte pares de iris - quiçá mais! - cada um e a gente olha por todos os lados enxergando várias coisas, sem definir o contorno de nada.
Nossas mãos pegam tanta terra que a terra tomba toda pelo caminho e quando a gente chega em casa de noite pra procurar os rabanetes que vieram com a rede a gente não encontra um único desgraçado.
Nossas mãos são tão vazias quanto as noites são cheias de arrependimentos.
E apesar dos olhos opacos e dos pescoços cansados atirados à frente feito galinhas mal-ajambradas; apesar dos cascos estraçalhados de tanto darem-se coices uns aos outros, apesar dos corações espremidos duelando com taquicardias esganiçadas, apesar disso e apesar de aquilo, apesar de tudo ser nada e nada ser tudo e os nós nos cabelos e os nós na garganta... apesar da tristeza, ainda somos no final das contas uns românticos honestos e bem-intencionados.

3.3.12

Praça

Me sento com os pés virados um para o outro no banco longo da praça, dividindo o espaço com casais insuportáveis e velhos e pombos... mas mais pombos que qualquer outra coisa.
O sol agora queima meu pescoço, que sempre foi deveras branco, porque agora meu cabelo é curto como de menino.
Os pombos bicam os meus pés feito meus pés fossem cubos de milho feito meus pés fossem lixo.
Dou-lhes um chutaço e eles sempre retornam, eles sempre retornam...
Parecem eu. Tomando chute e voltando, tomando chute e voltando, tomando chute e voltando. Como se nada tivesse acontecido, só para tentar continuar bicando dedos mindinhos de pessoas de rostos camuflados pela altura, agindo como se os dedos fossem migalhas e tratando as migalhas como fossem ouro.
Parecem eu, esses pombos.

Sobre degelo

Hoje você resolveu ir a pé.
O caminho é escuro (e cada vez mais) e as gentes são apenas gentes, dessas que têm sempre por aí, passantes e inexistentes bem como tudo o mais.
Você também, passante e inexistente pra tudo o mais, menos pra você mesmo.
Você não pode se livrar de você, você não pode atravessar a rua quando se vê no reflexo da vitrine, suas tentativas de se auto-evitar são fúteis.
Você não pode ver um maldito palmo à frente do nariz.
Às vezes te acertam os faróis aos olhos, e mesmo que o caminho se ilumine por alguns segundos de que serve se durante os mesmos segundos você é cegado pela luz?
Aí você prefere que não haja luz alguma, antes o escuro sincero que a mentira do holofote mal direcionado.
Antes de hoje você era um cara que cansava as pernas com facilidade, nunca foi um esportista dos melhores... as toneladas espremidas no peito te mantinham no mesmo lugar, sentado igual dois de paus esperando a vida te trazer um guindaste ou halterofilista gente-boa.
Mas agora é diferente, você sente as mesmas toneladas (ou talvez elas não sejam mais as mesmas) te fazendo atravessar o chão, rumo a um sei-lá-onde assustador.
E aí que você prefere andar, você aperta o passo feito aquele cara fugindo das rachaduras que um degelo inesperado traz de uma hora para outra.
Você olha ao redor tentando achar as outras pessoas e suas toneladas correndo para o local seguro, mas as outras pessoas e suas toneladas são só passantes inexistentes e os faróis continuam lançando as ferroadas que jamais te deixarão achar o tal do local seguro.

2.3.12

Acidente

Você enfiou um vaso de vidro na minha cabeça e agora eu estou ajoelhada sangrando no tapete com os cacos nas mãos (tentando montar, colar, por de volta... feito tonta) enquanto você se trancou no banheiro pra pedir a deus ou ao capeta ou sei lá o que... uma solução, ou desculpas ou não sei. Quem sabe? Talvez você esteja só lavando as mãos mesmo, tomando banho. Sou surda, sou cega, não sei dizer.
Fato é: estou sangrando! Queria um curativo, queria que você estancasse o sangue com as mãoes que, oras! foi você que fez sangrar!... foi você que fez...  mas você fica aí, me fechando pro lado de fora e ainda por cima me impedindo de alcançar a prateleira de band-aids.

1.3.12

Sobre lanças e cidades

O homem se perde mais em linha reta, ouso dizer.
Nessa parte da cidade não existe curva, as extremidades terminam em enormes túneis que podem até ser que sejam curvos... ou não... no escuro não dá pra saber.
Mas todo o restante, eu garanto, tudo o que é visível, é só uma avenida vazia com muros contínuos de prédios de janelas trancadas e sem porta alguma a que se bater. 
E ainda assim o homem se perde, nunca sabe qual ponta é o norte e qual ponta é o sul.. e talvez sejam leste e oeste, mas provavelmente nem isso e nem aquilo e sim algum meio termo de números quebrados igual tudo o mais.
Nada é exato.
E não há nada a ser feito, não existe nenhuma gente na cidade que queira conversa. As pessoas da avenida reta são cinzentas bem como os postes de luz em que dão com as fuças esporadicamente.
E os postes de luz por sua vez, sempre com as lâmpadas estouradas e os cacos de vidro no chão sangrando os pés.
Antes, quando o homem vivia num labirinto de mato, andava a esmo sem saber nada do mundo lá fora... imaginando como seria saber o nome das ruas e ter um endereço a que lhe enviassem cartas, e ter um papel com um nome e uma foto e um número e uma mancha preta com as marcas da própria pele estampada feito carimbo.
Pensava que se fosse assim, estaria encontrado finalmente, saberia quem era, de onde era e o que fazia.
Só que quando chegou finalmente no mundo lá fora, o mundo lá fora era essa avenida de que falei a princípio.
O reto, o cinza, os cacos.
As pessoas com crachás e identificações, mas tudo tão empoeirado (e elas mesmas, tão sujas!) que de nada valia... eram uns iguais aos outros e iguais aos postes e iguais ao cimento do chão e tudo muito mutuamente.
Se antes vagava aleatoriamente e dava sempre de cara com um muro, mas um muro completamente novo e escalável, agora anda pra frente ou pra trás. E só. Sem ladeiras a que sair tropicando em cambalhotas.
E nunca está perdido no sentindo a que atribuem os dicionários... mas perdição pode ter mais de um significado. 
Existe, por exemplo, uma perdição que atravessa um homem no meio feito uma lança e leva tudo embora.
Feito as vassouras cinzas dos garis (igualmente cinzas) que empurram a poeira pela avenida reta.
Sempre empurrando a poeira pra frente e depois quando chegam no fim trazem de volta até chegar ao outro fim e assim sucessivamente .
É bem assim que a lança faz, se esfrega pelo peito do homem deixando as mágoas escaparem pela beirada pra ficar o vazio por uns tempos e depois, quando tiver achado que esgotou, trazer tudo de volta.
Isso é perdição.
E a cidade ampla, a cidade lisa, a cidade reta, faz o homem ficar cinza bem assim mesmo... por ser dura demais, por não ter curvas.
A cidade é afiada como a lança. A cidade é a lança.
Não tem atalhos, não tem janelas inocentemente escancaradas à mercê do acaso.
O homem então se camufla com os paredões e o chão e aí os endereços e as identidades não servem para nada porque o homem cinza já não tem mais vontade de gritar o próprio nome e todas as cartas que há de receber agora são algumas contas a pagar.