28.12.12

De todas as coisas que você poderia ser, você decide ser todas-nenhumas elas.
Como que se a gente tivesse que apostar num cavalo só, mas você pegasse sua nota de dez pila e rasgasse em mil farelos de granas e aí passasse toda a corrida tentando decidir qual farelo vai pra qual cavalo, sem ter (ou tendo) a consciência da estupidez da sua proposta, sem saber qual cavalo te apetece de verdade, sem saber que no final das contas, se é que há um final, seu picadinho será motivo de piada.
De todas as coisas, você decide ser a uma-duas-nenhuma-todas-qual?-pode-ser-qualquer-uma-?-pode-nenhuma?-pode?
E aí a vida passa, passa, passa... passa como uma louca correndo pela avenida sem olhar pra trás.
E é engraçado, mas apesar dos olhos de vespa você nunca soube dizer com toda a certeza se essa louca é mesmo a tal da Vida de que te falaram a respeito ou se é só uma louca mesmo, porque você nunca soube dizer a diferença entre uma louca uma vida uma nuvem, mistério. Você nunca.

27.12.12

E quantas vezes ainda a gente vai ter que esperar as bordas da montanha congelada chegarem a um nível mastigável de textura?
A gente sente uma fome... uma fome assim perversa de comer coisa que não cabe na nossa boca.
E a gente já não tem mais dentes e nem nada... e a gente não tem nada mesmo além dessa fome.
(Mas um dia eu vou abrir minha barriga com uma faca e colocar você lá dentro.)
Eu vi um sabiá fêmea carregando os destroços de uma minhoca e não sabia se era pra aplaudir ou chorar. O bom e o ruim estão contidos no tudo, metade-metade. Sabiá voou e deixou espaço pro espaço em branco com o qual eu já lidava antes de ele chegar. Um assovio e um comichão no estômago e aí é não poder mais evitar o nada - porque ele não desiste. (A gente só mata o nada se souber usa-lo de prato principal.)
Por causa do tédio as palavras uniram forças: fui alí comendo a manhã de dentro para fora e foi por isso que a tarde nasceu espremida dentro de mim. Tive febre, das boas, e o pêndulo do meu relógio interno foi ajustado pra me esporrear ao invés de se conter. A cada soco Júpiter se aproximava mais da Lua, mas acho que ele já esteve lá antes e eu também já estive e eu não achei que isso fosse tão importante assim. (A gente cresce na direção das desimportâncias porque aprende que no final das contas tudo é muito tanto faz.)
Por causa do tédio as palavras unem forças: o sol me esporreia as costelas no escuro feito cachorro nervoso guardado em saco de batata.
E, mais: Amanhã eu vou vomitar o nascente atrás de uma montanha reta feita de espuma e sal.

Será que fica mais fácil falar as coisas se elas não tiverem nome nenhum?


18.12.12

Recheio de Vagão

Se ela aproximar o ouvido é porque ela quer saber o que você diz com o seu lábio fino de lata de sardinha.
Lábio fino de lata afiada, corte certeiro, mordida sem dente: o espaço sideral ficou de repente muito mais rarefeito do que a gente já achava que ele fosse... como quando o nosso estômago atravessou o chão e não deixou nada no lugar pra dar conta da fome, ou como quando a gente passou a noite esperando a chuva de meteoro que nunca caiu, ou como quando dois mais dois são quatro e nada além disso.
E se ela aproximar a cabeça dela da sua é porque ela quer roubar algum pensamento ou dois, que é pra ver se um dos seus cabe no espaço onde deveria haver um estômago cheio de borboletas (já foi verificado que nenhum dos dela serve).
E se a gente desatarrachar o gancho que liga os vagões eles decididamente irão um pra cada lado uma hora dessas... a plena velocidade, mas um pra cada lado.
E afinal pra que é que serve um elefante partido ao meio?

13.12.12

Diário de Calçada a Dois

A gente ficou parado sobre uma calçada encharcada sob um letreiro em neon que a gente não conseguia ler porque brilhava demais e a gente não sabia como foi que a gente foi perder aquela sensação.
Os sabiás noturnos são as ratazanas e as andorinhas são as baratas.
Em terra de estrela pode ser que de noite passe um vaga-lume, mas vivemos agora na terra do neon.
Neon come estrela.
Neon substitui vaga-lume.
Neongalume.
A gente parou de andar porque a gente não tinha mesmo pra onde ir e a gente parou de falar porque a gente não tem mais o que dizer e a gente parou de ler porque placas em neon dão respostas só pra quem tem perguntas e a gente já não pergunta mais.
Sabirana, andorata, neongalume.
[Há sempre uma versão realista pra um conto de fadas e uma calçada encharcada de repente pode até virar o Pacífico e os nossos narizes entupidos de frio podem até virar a respiração presa por causa de alguma coisa nobre tipo o amor -  uma gripe pode até fazer papel de amor, mas só se a gente fizer muita questão... ]

A gente ficou parado e a gente nunca se virou pra tentar realmente ler o letreiro e a gente tinha medo de se olhar porque os olhos de quem a gente gosta são espelhos quando a gente finalmente atinge um nível triste de egocentrismo e medo... e talvez a gente tivesse atingido... e talvez.
E a gente não queria se ver um no outro porque "você é bom demais pra eu te chamar de eu", e a gente sabia disso e a gente achava que essa era a pior foma de a gente se ofender, e a gente já não queria mais isso, e aí a gente preferia se distrair com sabirana, andorata, neongalume. -  qualquer coisa que rastejasse ou fosse uma mentira e que não valesse um pensamento.

11.12.12

Miolo ao Alho e Óleo

As paredes que sempre foram verdes de repente roubaram o amarelado que vinha das janelas.
E as janelas sempre foram muito sem-lá-muita-cor e eu pensava por isso de onde é que elas haviam roubado o amarelo por sua vez então.
Do dia é que não tinha sido, já que já não era mais cedo, já que não tinha nem mais sol, nem nada... depois das sete e aquele amarelo de meio-dia nublado num hospital abandonado pichando tudo com essa exata sensação: um hospital para malucos desertado mas com lembranças estampadas na parede, daquele tipo de lembrança que ninguém sabe ler, mas que todo mundo sente muito bem.
Eu me sentei numa banqueta de cristal pra reviver coisas que não foram vividas e nem vão ser, as coisas da realidade paralela que eu não escolhi porque a suposição dessa parecia melhor.
Não sei se nessa tal outra realidade paralela eu estou agora mesmo sentada numa banqueta parecida com a minha e encarando uma parede amarelada fantasiada de verde e revivendo o que eu vivo nessa realidade presente, ou se simplesmente tudo deu muito certo e não há nada a ser contemplado exceto o que há de fato, bem debaixo dos nossos narizes e sujeito ao toque e a experiência.
O dia inteiro foi um puro mormaço cerebral, como uma sauna configurada em temperatura baixa pra manter os tontos lá dentro por mais tempo.
Depois o desmaio pelo tédio e aí a temperatura sobe quando já não dá mais tempo de escapar.
Esse calorzinho de começo de noite de verão que ronda e faz a gente querer algo que não sabe nem o que é...
Talvez fosse um vento ou talvez fosse a vontade de sentir vontades reais; de sair e fazer e ser.
Não vou me levantar da banqueta-prisma e olhar pelo basculante pra saber qual é a fonte do amarelo - já tenho bastante certeza que essa fonte é o meu cérebro, e eu não quero chegar lá pra ver minha memória suando como um leitãozinho coitado que não acha sombra e aí só faz fungar, fungar, fungar e fungar o chão estupidamente e a troco de nada.

9.12.12

Sobre o Movimento dos Quartos Fechados

Tranquei a porta, girando a chave compulsivamente mesmo depois de sentir travar.
Não tem nada na minha barriga desde ontem de manhã, ou antes disso talvez... fiquei de pé sentindo o frio que vinha pela fresta entre a porta e o chão e imaginando por que é que as coisas sempre parecem muito diferentes quando a gente está do outro lado. Eu tinha certeza que do lado de lá e do lado de cá a temperatura era a mesma, então o porquê do vento? Por que é que as cosias sempre têm um cartão de visitas mentiroso?, um suspense?, uma amostra?, um puxãozinho de pensamento que faz a gente delirar.
A culpa do delírio é das coisas que sensualizam com a mente e nunca vêm de verdade, eu tinha certeza.
Não sei o que eu fazia ainda ali, é uma coisa esquisita...
A gente quer fugir, porque esse é o único jeito, mas quando a gente sai de casa e vê a chuva e se lembra que não existe um único lugar pra gente ir, a gente volta e aí se tranca no menor cômodo da casa, como que numa tentativa de fazer desfeita, de viver um avesso, de revolta.
"Então se não posso o tudo, então vai ser é o nada mesmo."
E o nada e o tudo são exatamente a mesma coisa: um cubo sem arestas palpáveis, mas que apesar disso ainda se chama cubo, só para fins de inquietação e claustrofobia.

7.12.12

Diário de Final de Noite

Um calor do inferno, você desata o nó da gravata.
Engraçado é que, mesmo já tendo atirado a gravata no chão, a sensação do nó permanece intacta.
(Nem sempre a culpa é da gravata.)
Você engole seco, passa a mão na testa que pinga suor e procura alguma coisa pra comer.
Um pão com mortadela, porque hoje é sexta-feira.
Todas as coisas passam pela gente que nem a comida passa...
E a maioria é exatamente como esse pão francês meio duro ou talvez um feijão de ontem, mas algumas são boas de verdade e você até pensa "caralho, essa crostinha caramelada! é felicidade que não acaba mais!".
Mas no dia seguinte a crostinha caramelada virou merda também.
Tendo isso em mente, você termina o seu pão, torna a desatar o nó da gravata, atira uma segunda gravata imaginária no chão, e aí vai dormir bem quentinho. Abraçadinho com o seu nó.

6.12.12

Diário de Apocalipse

Impressionante como é que o matinho descambou e virou uma floresta e a floresta cresceu e virou um mundo inteiro e o mundo devorou o universo e quando você achou que estivesse em casa, no coração da evolução das coisas, tudo aquilo que foi construído - todo o Império - despencou como serpentina molhada.
Você carrega um pacotaço de nitrogênio líquido dentro do estômago e a fumaça vai escapando pelos olhos e tudo o que você sente por dentro é o frio... um frio de freezer, onde a gente coloca as coisas que a gente só vai usar depois (algum dia, talvez!), as coisas em que a gente não quer pensar agora.
E todas essas coisas dentro de você: você não quer pensar agora, e por outro lado também não dá simplesmente pra jogar fora, como dá pra fazer com as caixas de almôndegas.
Elas são você.
Você não se pode jogar fora. Acabou.
Todas as partículas de carne martelada, todos esses mini-coagulinhos de decepção que vão se amontoando silenciosa mas desenfreadamente; você não pode se livrar da cama de alfinetes que um dia foi seu cérebro.
A floresta-mundo que parecia uma rainha e que iria ser pra sempre a nossa casa não passa de um delírio de tarde quente de carnaval, e quando o amanhã chutar a porta de entrada com uma espingarda e um ultimato de despejo a única coisa que o matinho-mundo e você poderão fazer é voltar a virar poça.

3.12.12

Sobre a Inércia das Nuvens e Adiamento

Hoje o céu é de nuvens estáticas, maciças e rosadas.
Elas fazem o contorno pelas quinas do quadro que os meus olhos captam, como se fossem lagartas no ponto máximo dessa fase.
E eu: ando mas não me movo.
Como houvesse uma esteira sob os meus pés, a paisagem é um cenário bonito demais e repetido demais pra ser de verdade.
Não sei por que as árvores são tão brancas hoje... é quase como se nem existissem mais.
Quase como se houvesse ali só um buraco de algo que foi arrancado, descolado... me lembram aquilo tudo que eu tinha dentro do peito: sobrou só o espaço onde esse tudo deveria estar.... talvez esperando pelo triunfal retorno ou talvez simplesmente tentando me fazer lembrar.
E sobre lembranças, me lembro bem de uma que não diz respeito ao passado, mas sim ao dado momento.
Aquela lembrança que a gente tem sobre algo que a gente deveria estar fazendo mas não está, ou sobre um lugar que existe sem nós, em paralelo... ou, igualmente, sobre uma pessoa paralela, dessas com quem a gente queria congruir  (queria muito) e fica por isso lembrando dela o tempo todo e imaginando o que ela está fazendo... e isso é o momento presente construído por uma colcha de retalho de memórias e saudade, e pode até ser um pouco mentira... mas e daí?
Eu me lembro bem do jogo de xadrez que ficou suspenso no ar porque eu não quis, e ainda não quero, fazer a minha próxima jogada.
Me lembro que deixei minha Rainha desprotegida e que não tem mais muita salvação.. e que, mesmo se tiversse uma salvação, vai ser só a prorrogação pra um outro desastre qualquer... e é tudo só uma questão de saber entender se coragem é assumir o fim e as nossas falhas ou se coragem é continuar tomando uma surra do oponente e, depois de cada derrota, ainda pedir um bis.