31.1.11

Sobre a ciência de colher gravetos

Quatro de nós entre as árvores (por vezes densas, por vezes esparsas) colhendo os pedaços de árvore de melhor qualidade que estivessem caídos em meio às folhas (também caídas, coitadas).
Eu fui pelo oeste, onde desabrochava o riacho, e por lá vi mais pedras que qualquer outra coisa. Galho mesmo não colhi nenhum.
Rumei para o norte, e lá o chão era salpicado de gravetos e, que puxa!, pena que os fungos os haviam descoberto primeiro.
Ao leste topei com outro de nós, e por lá ele já havia feito o trabalho sem deixar nada para mim.
Restava o sul, e no caminho para lá eu matutei um montão de coisas... lembrei do fogo, e do quanto me atiçava numa noite de tal frio e escuridez (porque era pálida também, apesar do puro breu), lembrei daí dos meus braços carregando apenas o peso do ar.
Foi bem por isso mesmo que chegando lá e, como imaginado, não havia galhos a serem colhidos, trepei na primeira árvore e desandei a arrancar-lhe os gravetos mais finos.
E assim nas próximas 10 que cruzaram meu caminho.
E pensem os defensores da natureza o que quiserem, hoje a noite farei meu sinal de fumaça para o mundo.

Sobre estrelas

E eu diria que o mundo é pequeno demais.
O mundo é pouco demais, e nem é preciso tanto pra saber...
É só olhar pra fora dele quando o céu noturno favorecer.
E eu diria que o mundo, pequeno e pouco demais, é também louco demais.
Aquele tipo de loucura que não tem um pingo de charme, meio escarrada, que só serve pra te dar náuseas.
E você senta no meio fio e não entende mais nada.
E eu diria que o mundo é apertado demais, sufoco.
Pra tudo quanto é lado tem pedras pra gente tropeçar, pra tudo quanto é lado tem gente tentando laçar a gente como se fôssemos bois.
E depois é a gente tentando laçar os outros.
E o mundo é largado demais, onde não deveria ser.
E os mesmos laços que tiram o ar não preenchem vazio nenhum. Só tiram de tudo um pouco, e depois o que resta de você você nem sequer consegue achar.
Mas esquisito mesmo é quando a gente descobre que mesmo assim, tão ruim e tão pequeno, o pouco mundo louco contém certas coisas grandessíssimas, muito maiores do que ele mesmo. (Da mesma forma que meu corpo contém muito mais do que pode.)
Daí, quando a gente deita alí mesmo, no mesmo meio fio, para ver melhor as estrelas, a gente simplesmente não acredita que deu a sorte de achar tudo aquilo (e mais aquele tudo aquilo que nossos olhos primitivos não alcançam) dentro de alguém.
E é assim que balança o mundo mais pesado, carregado dos brilhantes em erupção que eu achei pelos meios fios da vida.

28.1.11

Sobre caminhadas

Um tropeço (ou dois) não significa que não se sabe andar, tampouco que não se sabe o caminho.

25.1.11

Sobre seus pássaros migratórios

E aí era você descendo a colina, tentando acompanhar a mancha de um milhão.
Suspiro , suspensão, solavanco.
A primeira impressão era que que se movia lentamente - marchante - e então você se sentia vitorioso correndo ao encalço, totalmente descalço, e aí era o chão de cascalho te arrancando pedaços. (E tudo bem, que você só tinha olhos pra olhar pro alto.)
E lá no alto mesmo era o avesso, e você nem suspeitava que cada um dos mil, dos milhoes, dos zilhoes... cada um ia indo em máxima velocidade alternando o esforço do corpo e o esforço do vento.
Ia se distanciando a nuvem incomum, disparando trovoadas esganadas aos montes, e você alí se perguntando se cada um dos tantos guinchos era pra dizer adeus ou para anunciar a um alguém distante que não faltava mais muito para se reunirem.
E tanto faz, a questão era que aí era você ficando pra trás.

A segunda impressão era de que ia.
E você bem que queria saber pra onde... e aí era você querendo ir junto.
Era você querendo fazer nova forma na formação, ser a dianteira, o pivô, ou então quem sabe o último... tanto fazia, você só queria ir também.
Mas suas pernas curtas e seus braços pelados, desalados, não passam de um quilômetro. Desolado, você quando pensa nisso.
E que doído seria saber que lá do alto agora só existe regresso, gigante esquadra de uns pedaços de carbono muito bem organizados fazendo meia volta.
Daí era você não reconhecendo mais os componentes isolados do cardume, que então ia serpenteando para o norte, feito se tivesse mesmo uma estrada a que seguir.
E você que nunca gostou de voltar resolveu parar um pouco as pernas pra poder ver melhor o céu de piche borbulhante ir se picotando, picotando, até voltar a ser azul.
E a única coisa que foi deixada por lá mesmo foi a dúvida.
E você ficou pensando que de repente pra frente e pra trás não existe, que de repente todo retorno é uma ida.
E foi bem nessa hora que você decidiu ir pra casa também.

Sobre o movimento das nuvens II

À esquerda nuvens se movem rápido demais e quando você se posiciona em ponto privilegiado para ver melhor você pensa que vai chover.
Você nunca viu nuvens correrem tão rápido, e deve ser mesmo porque certas nuvens não tem vontade própria, ou porque certas nuvens gostam de estarem onde estão e só andam um pouco pra frente pois o vento faz o trabalho sujo pelos dois.

Pela esquerda nuvens se aproximam rápido demais, mas você, pequeno, nem sequer pode ser contado como ponto de referência. Elas se aproximam é de alguma outra coisa, a alguns muitos quilômetros de distância.
E rumam as nuvens para o norte, e ruma você para lugar nenhum.

19.1.11

Sobre o movimento das nuvens

Quem vê da Lua acha que aqui na Terra as pessoas se mudam todas o tempo todo (mudam de caras, e de falas, e de gestos e jeitos e maneiras) que é pra poder fingir que estão no controle da situação, que as coisas ruins que aconteceram  - e as coisas boas que deixaram de acontecer - fazem só parte de uma grande mudança totalmente planejada.
E daí eu olho na janela e eu não conheço mais ninguém, e eu não conheço nem mais aquela refletida no vidro da janela da casa da vizinha da frente com um pijama parecido com o meu.

Sobre o ponto cego

De repente é você lá, no peitoral da janela, e você vê o mundo todo.
De repente um carro.
De repente uma árvore, uma flor.
De repente é o céu que se faz de azul marinho só porque você acha mais chique.
De repente os bondes, os fogos de artifício e as trovoadas.
De repente o rio.
E, se você ousar esticar um pouco mais os olhos, de repente é o mar.
De repente a ferrovia, a roda gigante.
De repente o entrelaçado de sinalizações para todos os lados.
De repente o caminho da esquerda.
De repente é você lá, com os pés na terra, e você sente o mundo todo.
De repente a chuva.
De repente a lama.
De repente as botas, os sapatos, os chinelos, os remendos.
De repente o céu cinzento... mas bonito.
De repente é o asfalto.
De repente buzina, de repente farol.
De repente a carroceria, a palha.
De repente tempestade, de repente sol.
De repende o arco-iris.
De repente o pote de ouro.
E de repente ouro é uma metáfora para algo maior.
De repente é você lá, em todos cantos, e você vive o mundo todo.
De repente a correria.
De repente a afobação.
De repente o caderno, de repente tesouras, colas, canetinhas.
De repente não é nada disso.
De repente os bodes da praça.
De repente os guisos.
De repente o roquenrol.
De repente a mesa da sala.
De repente o travesseiro.
De repente o galo e a cortina aberta.
De repente é você lá, no peitoral da janela, e você vê o mundo todo.
E de repente agora só falta ensinar aos olhos a ver, sentir e viver também as pessoas dentro dos carros, dentro dos prédios, descansando debaixo das árvores.

18.1.11

"You can kill my body, baby, but you can't kill me."

Eles abrem a porta da frente com um ponta pé.
Eles atiram seus vasos de flores nas paredes e seus quadros se estatelam com estalos de vidros quebrados no chão.
Eles gritam alto por trás dos óculos de aros finos, de grandes lentes, de singela armação; você não ouve porque analisa os óculos.
Eles atravessam o salão da frente a passadas largas, eles destroem os seus tapetes, seus capachos, com pisões nos pêlos delicados. [ e você que pisava com tanto amor! ]
Eles cospem maldições bem no meio do seu nariz.
E você sabe que eles só cospem essas tais maldições bem no meio do tal do seu nariz porque esse tal de seu nariz é seu e você faz o que quiser com ele.
E a sua casa pode cair, e pode cair o mundo quantas vezes quiser.
Eles podem derrubar seu corpo no chão, e eles podem te sapatear os rins.
Esse nariz é seu, e você faz o que quiser com ele.

14.1.11

Sobre substâncias compostas

Presta atenção.
Aquele lá, lá longe, cruzando o rio com as calças enroladas até o joelho e a postura mais curva que a curva do vento, não é você?
Ele anda dois passos por vez e não sai do lugar, porque é um pra frente e outro pra trás. Não seria ele você?
Ele corre desesperado, pra frente e pra trás, pra frente e pra trás, pra frente e pra trás e daí cai.
E o rio continua como uma manada furiosa de hidrogênio e oxigênio (e os elementos todos que compõe as pedras todas e os galhos todos e tudo o mais que um rio carrega de brinde) o pegando de jeito pela esquerda. Dois pra um.
Mas a verdade é que funciona muito bem e o caos químico, de aleatoriedades mil, vive como uma só entidade.
Mas e você? Você, carbono.
Ele, carbono.
E o rio tudo aquilo e é um só, e ele que é somente ele mesmo, age como se fosse dois.
Você, dois.
Um pra frente, outro pra trás.