29.9.12

Diário lupino de calçada e apartamento

Tolha de xadrez, geléia, fotos na parede. Sua dose diária de gentes se esgotou.
Sua cabeça pende torta e você a força ao lugar por fins de educação. Quantas horas ainda até poder voltar pra toca?
Seu ideal seria deitar-se agora mesmo ao tapete e rolar, caninamente, todas as angústias fora...
Mas no meio das gentes - e suas almofadas impecáveis e suas paredes bem pintadas e seus sorrisos espontâneos - a caninagem é grotesca.
Eles jamais saberiam distinguir o desespero de quem tem sarna na alma de uma ingratidão ou de maus modos.
Não... é preciso se manter montadinho e ajustado à poltrona, é preciso manter o cachimbo aceso, e é preciso, ocasionalmente, interagir com um aceno de cabeça.
Quantas horas ainda?
O maior medo de um lobo é uma sala bem arrumada com gente bem arrumada dentro e uma porta de saída inexistente.

28.9.12

Diário de Calçada e Coisas Indestrutíveis

Uma árvore que é fina demais e o vento faz dançar como quem espeta um boi pelas ancas, e a cidade dá um grito agudo de quem sente todas as sensações ao mesmo tempo e por isso descobre que não sente nada - a impassividade absoluta pode ser que seja resultado do desespero absoluto.
Eu vi um cometa de três rabos despencando pra cima à luz do dia e pensei se não seria ele um foguete carregando as sensações da cidade dentro e levando pra um outro mundo que já chegou no ponto pra onde o nosso vai: a secura; e pensei se seria uma troca e se eles estariam mandando algo para nós ou se, quiçá, poderiam um dia, quando a gente precisar muito, mandar nossas sensações de volta numa explosão radiativa que mataria os impassíveis e os desesperançosos. Pensei que esse seria o meu fim: ter que engolir meus sentimentos expelidos com tanto esforço de volta, como quem é obrigado a lamber o próprio vômito no chão.
Fiquei ali vendo as árvores fracas, burras!, que não souberam nascer carvalho de aço, e achando tudo muito volúvel, tudo muito fácil de despencar... e no entanto alguma coisa muito sólida fazia um volume a mais no meu peito, feito fosse uma pedra em forma de coração espremendo o coração real contra as paredes.
Descobri assim que tenho mais medo de carvalho indestrutível que de árvore mansa, apesar de toda a admiração, e quando o cometa sumiu no meio das nuvens levando todas as coisas que podem ser levadas mas me deixando a pedra dentro do tórax eu me perguntei com ingenuidade:
Qual é a evolução natural da saudade?

27.9.12

Tento saber ser gente como quem tenta encaixar uma bila nas reentrâncias de um quebra-cabeça.

Diário de calçada e comparação

A imagem do rosto perfeito banhado pelo sol eletrônico.
O eco do rosto batendo às portas do meu pensamento nos momentos mais escuros que ele tem.
Ontem eu vi as montanhas desmoronando inconsoláveis aos pés da chuva, e eu pensei em mim.
A imagem do rosto perfeito, sem destroços, sem as marcas das mordidas dos ratos da tristeza, vinha feito contraponto a tudo o que eu sou.
"Para ser grande, sê inteiro.", o Reis falou.
Deve ser por isso que o rosto perfeito me transcende, por isso é magnífico: não tem furos.
E eu sou a  chuva cheia dos espaços vazios, onde nada é constante; e eu sou também a montanha que essa chuva esfacela. Eu me esfacelo a mim... e os eu-ratos vêm de noite (e às vezes também pela manhã) para me alargar os poros pro eu-chuva entrar melhor.


25.9.12

Diário de calçada e fome de olho


Esmiucei os dias em um só: longo, arrastado, eterno.
(Os dias só existem pra criatura que dorme e acorda - na cabeça dela.)
A única manhã que já existiu fora aquela em que nasci e a única noite será aquela em que me faltar sangue soprando pensamento na cabeça.

Vejo o dia comendo o rabo do seguinte: eles são a mesma coisa. São feito a lagartixa que achava que o rabo fosse minhoca e quis provar... quando a cabeça começa de novo ainda é ela.
Vejo tudo com o olho do pensamento - que o olho da cara não serve muito ao intento dos malucos.
E afinal o que é um olho senão uma bola cheia de frescuras que se a gente fosse corajoso poderia arrancar fora com um puxão? A fragilidade das nossas fortalezas...
Eu queria comer meu olho que era pra saber se ele tem uma mágica em especial que vai contaminar minha língua ou se ele é só isso mesmo: essa droguinha de carbono e sei lá mais o que.
Eu sou uma droguinha de carbono e mais uma meia dúzia de substâncias que bosta de vaca também tem.
Não sei de onde o homem tirou a ideia de que é mais nobre que um sapato, um avestruz ou uma lasca de granito.
Ou tudo é nobre junto ou nada é nobre junto.
Tudo é a mesma coisa e a vida corre pelo dorso de um único dia que tem alternância de matizes e luzes e nada além de alternância de matizes e luzes.

24.9.12

Diário de Calçada e de Beirada

Você se mescla na margem, na boca da terra com o rio.
Margem é lugar de mendigo e pedra e coisas que estão à parte do resto.
(Um lugar bem próprio para você, essa tal de margem.)
Uma lista improvisada dos habitantes da margem poderia ser:
Você, um mendigo e uma pedra - como fora dito -, e ainda: uma flor vagabunda demais para terem lhe dado nome e espécie, uma lata de ervilha sem ervilhas dentro, uma calota de carro (que foi embora sem ela), pingo de chuva sobrado em buraquinho, ratazanas e santinhos de vereador safado (que são parentes entre si), um clips, uma tampa de bic mordiscada, uma moeda de cinco centavos e resíduos de porcarias genéricas que o tempo já mutilou.
Pela primeira vez você se sentou alí com os teus iguais pra dar uma averiguada no que é que andava nascendo pelas gretas da sua cara, que se partiu no meio há muitos anos, e não sentiu nada. 
Para sua grande surpresa - nem boa e nem ruim - você agora se parece mais com a lata de ervilhas sem ervilhas do que com o mendigo ou a flor ou qualquer outra coisa: você é agora caixa de gente que não tem mais gente dentro.
A surpresa é que isso significa que um dia já teve.

Sobre o Movimento de Coisas

Como que numa enchente, vejo as coisas da minha cabeça boiando irreais dentro da caixa de osso.
O pensamento são as coisas e quando a gente pensa as coisas é a gente buscando a lógica dentro delas - porque a gente mesmo não tem - e quando a gente pensa as coisas é como que um bibliotecário, um literato metódico, que não se cansa de procurar uma ordem perfeita nas estantes.
O sentimento é a enchente.
O sentimento desclassifica e leva qualquer lógica à bancarrota.
O sentimento encharca as coisas, desvirtua as coisas, penetra as coisas quase que vulgarmente, faz as coisas perderem função.

Como que numa enchente de sentimento, eu contemplo o céu avinagrado e vejo os meus pensamento-coisas tomarem formas clássicas de nuvens. (nenhumas)

19.9.12

Se virar o lado dá até pra dizer que uma evaporação é a terra chovendo no céu.

Sobre os Movimentos do Lobo

Gosto de deixar o lobo me fugir pela boca e dar uns passeios noturnos por cima da minha nobreza... ela acorda amarrotada, mas mais honesta (e, vale até dizer,: excitada).

Diário de Calçada e Sol em Excesso

O desespero dos felizes é algo que gostava de observar.
Como um feio que descobre a maquiagem, eles se cobrem de camadas e camadas de simpatia.
Eles gritam por aí, em pleno furor, o nome das coisas que eles têm.
Eles levantam os dedos e eles enumeram as alegrias, como que pra ou se lembrar ou como que pra se gabar - qual que é pior?
Vi eles suando sorrisos pelas avenidas e pensei que deve ser assunto difícil demais esse de competir pelo título de Miss Felicidade.
Vi eles arrotando euforia e pensei que isso era fazer grandes desfeitas para com a euforia.
O descontrole dos felizes faz desfeitas.
Daí me disseram que a tristeza verdadeira não é dita, fica escondida.
Pois eu sou o avesso do mundo.
A felicidade verdadeira é que não digo, maneira nenhuma. Seria desperdício.
Já a tristeza a gente pode jogar pra fora pela boca o quanto quiser. (A gente deve.)
Ela sobe pelo ar vira nuvem e depois é certo que chove....
Mas sem chuva não tem plantação e não tem frescor e não tem verão.. e por aí afora.

17.9.12

Diário de Calçada e Jardim

Os galhos extremos da dama-da-noite se enfiam pelos entrecruzados de uma pérgola.
Não há mais os absolutos. Tudo, nada, nunca e pra sempre são mitologias baratas.
Um cheiro forte de manacá luta pra se sobressair. Há sempre uma intensa e dolorosa luta por todos os lados, até entre os cheiros. (Ou os olhos do carniceiro é que enxergam as coisas assim.)
Vejo os abutres voando magníficos e burros. Sempre aos círculos eles fingem que sondam.
Já não tenho mais coisas a dizer, toda a temática de uma vida soa estraçalhada pela banalidade.
A banalidade é feito franco-atirador que vai destruindo as verdades uma por vez quando a gente menos espera.
Há quem entregue a alma a um deus, a quem entregue ao diabo. Vá lá, tanto faz.
Eu ergo a minha bandeja já sabendo que não há quem se interesse.
Um cheiro forte de passado...

[Estive pensando em toda a minha canalhice em potencial.
A gente já é culpado só por ter nascido com potencial de canalha ou é só depois que a gente usa que a gente merece o cadafalso?
É que eu nasci cheia de talento..]

Quero ser a pérgola violada pelo movimento lento da natureza.
Quero desaparecer dentro do silêncio, como que se o silêncio fosse um manto protetor.
Presa que não é vista não é pega.
Presa não é caçador. Não quero ser caçador.
Quero ser a base da cadeia alimentar do mundo.
Homem que come bicho que come mato que come pérgola. - Eu quero ser a pérgola.

16.9.12

Sobre o Movimento das Nuvens

O interior é um emaranhado de veias de breu.
O exterior é um céu anestesiado, derramado feito lona.
Uma placa alva, secretamente esmiuçada de mini-desastres, se desloca melancólica através do tempo.
Se desloca - é deslocada - para na melhor das hipóteses concluir mais uma volta completa e continuar pelo mesmo percurso até que seja permitido cessar.
Bombas, catástrofes, pessoas que choram: tanto faz, tudo se desloca.
Tudo tão inútil quanto o próprio deslocamento de tudo.

13.9.12

Sobre os incompetentes

Eu não sou (nem) o que eu sou.

12.9.12

Sobre o Movimento do Rebanho



"Essa razão universal, 
prática ou moral, esse determinismo,
 essas categorias que explicam tudo
 fazem o homem honesto dar risada."
- Albert Camus



Você desce pela margem seca das pedras. Existe um apito ecoando no fundo de todo bosque , constantemente, sempre numa frequência que o cérebro do homem civilizado foi ensinado a ignorar.
Mas você ouve.
O Absurdo sonda aos despertos como um lobo faminto a presa.
É pelo lodo das vias principais - as vias demarcadas pelos fazedores da história fabricada - que o ser humano adestrado desce pela vida, deslizando desleixado sobre uma lâmina de papelão.
Ah, se ele abrisse os olhos!
Veria a reinante falta de sentido, debochada, sentada nos ombros dele e fazendo a gravidade pesar mais que devia. Ele nunca vai saber porque é que dói.
Você desce pelas valas laterais, ensurdecido pelo apito do caos.
Só ele soa, o resto se cala.
Se você ainda pudesse fechar os olhos escorregaria pelo lodo também, e poderia imaginar o que quisesse... sonhando, sorridente, humano.
Mas você vai descer pela vida no ritmo de quem está chocado, perplexo. Sempre vários passos atrás dos demais - como que se a velocidade  fizesse alguém subir ao invés de descer!
Você vai descer pela vida engolindo seco, encarando com as sobras de um olho os olhos inexpressivos do Absurdo.
Com o olho que sobra você contempla o céu.

6.9.12

Diário de calçada e altitude (e amor)

"Bem-te-vi" virou "bem-que-eu-queria".
Mas esse canto a gente não escuta, só imagina.
No alto da montanha bem-te-vi é fraco demais, não chega.
(Até as aves de rapina deslizam feito ratos sob os nossos pés, nós somos os senhores das nuvens.)
Bem que eu queria te ver.
Bem que eu queria!
Mas o dia por mais azul que seja só traz mais horas e mais vento.
O resto a gente que tem que ir buscar.

5.9.12

Halo Preto

Acordei pra vestir o meu Halo Preto.
É obrigação do homem ser lúcido ser clarividente ser saudável ser feliz ser... ser.
Eu tinha jogado meu Halo Preto numa gaveta da memória, porque meu Halo Preto - diziam - fechava meus olhos neles mesmos. Pensei que isso era uma doença das grandes, porque me falaram que era.
De mesmo modo, meu coração sempre foi fechado nele mesmo, mas do momento em que resolvi remover as trancas ele parou de funcionar.
(Tem coração que só funciona fora da realidade.)
Passei a pensar, pensar, pensar. Só. Querer ver...
Exigiram que nascesse a estrategista no lugar da "songa-monga" que era eu.
Daí me forcei tanto a ver, que meus olhos arregalados saltaram para fora e saíram rodopiando pelo mundo e vendo tudo às tortas maneiras. Eu vi sim: um monte de delírios.

[A ganancia dos olhos gera os maiores cegos, agora eu sei.
Não quero ver. Não quero pensar. Não quero saber.
Quero sentir.
Mesmo que sejam sentimentos que flutuam neles mesmos e que nunca vão me dar nada em troca...
Tanto faz...  Não quero nada, não quero ter nada.
Quero sentir.
E ser idiota, se esse é o preço.]

O Halo Preto me faz parecer a criança surda brincando de gato mia (nunca vai ganhar)... mas é que talvez eu seja mesmo.
O Halo Preto não é o que me cega - a condição de ser humana é que o faz -, o Halo Preto é só o que me permite viver conscientemente essa cegueira que eu não posso deixar de ter.

Humildade é se permitir percorrer um caminho que provavelmente não vai dar em nada, mas que é o nosso mesmo assim.

4.9.12

Eu quero lembrar as lembranças que uma pedra lembra.
Nenhumas.

Ode à Desconstrução

O homem que nasceu inteiro o homem que aprendeu a sentir borboletas trupicando no dentro. O homem que passou a esperar por elas. Daí o homem que o tempo envenenou com o veneno que é ele mesmo.
O homem que virou nada.
Não sabe mais falar não sabe mais querer não sabe mais pedir não sabe nem ser.
O homem olha pro chão, coração feio, enrugado.
O homem quer enrugar todo até uma ruga comer a outra
e ele sumir.