30.4.12

Claustrofobia

A cabeça pende solta no pescoço, murcha.
Tipo uma flor outonal, o peito que se vira pro chão reverente à gravidade.
Todas as coisas estão no chão.
A garota olha pros cacos dela mesma e os cacos teimam em se refletir mutuamente.
Todo o espaço, toda a realidade, tudo.
Tudo são os cacos.
E se os cacos são a garota, então a garota é tudo o que há...
Na sala sem porta de paredes cobertas por espelhos o que é externo é inexistente, é incogitável, e o universo é infinito e escancarado. Um abismo.
O universo dessa sala é uma visão embaraçante e a boca da garota sangra em aflição, é isso que acontece.
E aí os cacos sangram e aí a sala sangra e aí o universo inteiro sangra junto.
A garota percebe que todos os movimentos e todas as imagens, que tudo é ela e por isso tudo é um esforço inútil.
Não há comunicação.
O cabelo da garota se derrama pelo chão feito fosse caco de vidro ou lágrima (ou ambos). Feito fosse sentimento.
Tudo no singular.
Primeiro o fato daí o pensamento daí o sentimento daí o sentimentalismo daí o descontrole daí o surto.
No final, se se vive ainda, sobra o sentimento (que é ápice) tipo fosse poça que secou.
Todo o resto seca junto com o choro, fica mudo junto com a voz.
O pensamento é um chiado cansado, daqueles que se a gente procurar sentido a gente acha - acha o sentido que quiser. Mas a gente não quer, e a gente não tem força e nem nada.
No final, se se vive ainda, sobra um sentimentoágulo, quase que com textura de osso.
Evento a que se pode chamar "mineralização de alma", ou qualquer coisa que o valha.

28.4.12

Des-infelicidade

Não consigo dizer palavras.
Solto uns ronronos baixinhos, na melhor das performances.
Fui ao campo e o campo não era feio.
O campo (quase que desgraçadamente) era bonito e borboletas deveras bregas saltaram para fora da minha cabeça quando quis me aproximar de qualquer pensamento, quando quis armar arapucas para me apossar de qualquer bom ou não-tão-bom-assim insight que fosse.
Borboleta que bate asa é só borboleta que bate asa, é só um comichão, não é pensamento.
Borboleta que bate asa ocupa todo o lugar do pensamento...
Esse que é o problema. Essa que é a solução.
E no campo que não é feio há algo a que se pensar?
Só se olha e pronto. Só se vê e pronto.
Quiçá, num ápice de sensibilidade, se se lasca um sorriso nas fuças.
Um sorriso desses impensados e sem qualquer propósito, um sorriso desses que são tipo uma faísca espontânea justo no muito além da explosão.
E, sobre explosões, que se exploda o que quiser explodir.
Que se morra o que tiver que morrer, que se pense os pensamentos que quiser se pensar: qualquer coisa dessas já (hoje) não me cabe mais, tudo o que me cabe - ainda que contra vontade - é o alvoroçar desenfreado de asas no meu cérebro-estômago-coração.

26.4.12




You've got to walk that lonesome valley
Well you gotta go by yourself
Well there ain't nobody else gonna go there for you
You gotta go there by yourself


O caminho é cheio de estrelas derramadas no chão.
E não é bonito, não. É triste.
Um compasso cardíaco que não corresponde à realidade, simplesmente não corresponde.
Como tudo e nada. (Nada corresponde a nada, é isso que quero dizer.)
O tempo presente se alterna entre dias sem noites e noites sem dias.
E eu não sei o que é pior: a insônia ou a anestesia geral?
O tempo presente se alterna entre gentes que a gente vê com os olhos - e que, friamente, deixa que passem - e gentes que a gente vê com o coração - e é instantaneamente obrigado a guardar dentro das veias para sempre, talvez.
Obrigado a guardar.

Mas as estrelas estão no chão, morrendo, e o chão queima e cria bolhas nos pés e nos sentimentos.
Todos os sentimentos são inchaços mesmo, daquele tipo de inchaço que torna a dor indistinguível da insensibilidade total.
E os sentimentos são isso e as estrelas são tipo essas pessoas que a gente põe dentro das veias, e as árvores também, e um cachorro e um pedaço de carvão.
Todas as coisas são elas e elas são todas as coisas.
De repente, automaticamente e desesperadoramente... elas são todas as coisas.
Pronto.


["Toda a realidade olha para mim
 como um girassol
 com a cara dela no meio".]


Tudo é tudo ao mesmo tempo. Misturado.
Tudo se torna um exército de moléculas idênticas da mesma gororoba cinza.
O nada faz parte do tudo?
Tudo é nada.
Pensa nas estrelas e nas pessoas e no fundo nenhum pensamento concreto vem à mente.
Pensa por pensar. O limite entre pensar e sentir.
Olha ao redor e procura, mas o que há é mera pedra quente, lixo, e as tais das pessoas estão nos próprios vales escuros queimando os próprios pés nas próprias pedras e carregando sabe-se lá o que dentro das próprias veias.
O ser humano des-sozinho é uma besta mitológica e invejável.

25.4.12

Dos Antônimos



Tem alguma coisa errada com a sua cara.
Eles enfiaram um pedaço de ferro pela sua pele e futucaram.
Sua cara não é mais a mesma, eles concluem.
O tempo todo você muda, o tempo todo você não é mais.
Fosse antes bom, fosse antes ruim; a questão é que era tudo antes e agora... agora é nada porque a gente não tem olhos pra ver agora.  E a gente envelhece e tudo o que o olho vê já foi e já voltou.
Já o coração não sente o antes nem o depois...
O coração só bate nesse exato segundo e em nenhum outro jamais.
O coração é o avesso do olho, por assim dizer.

24.4.12

Sobre o desmovimento das nuvens

Tem dias que o céu é vazio.
Nem o azul preenche nada... só fica por alí meio que fazendo papel de bobo mesmo.
É que ele não se encaixa - tipo eu.
Tem dias que eu tô no meio da multidão, bem no meio da manada de seres humanos e também, para fins de abrangência, seres desumanos.
A manada corre brava em direção a algo... esse algo que eu nunca sei que diabos é.

O céu é vazio feito meu peito em certas manhãs depois de uma noite sem sonho algum.
O céu é vazio e é inútil, feito (o meu) coração sem sentimento.
Tenho pensado que coração que bate, aperta na contração só pra poder relaxar depois.
É isso... e é tipo aquele velho jogo de ser feliz e infeliz.
Os felizes são também necessariamente e automaticamente infelizes e vice-versa.
Só que à parte esses, têm também uns outros não são nem um e nem outro e nem os dois ao mesmo tempo e por isso mesmo que não se encaixam e por isso mesmo que o coração não contrai.
Por isso mesmo que o coração nunca relaxa também.
E por isso que é, pra ele (pra mim), tudo tão inútil quanto o céu cujo azul hoje não faz sentido.

23.4.12

O vento se enfia pelos olhos - você tem certeza que dessa vez os globos atravessarão a nuca e se estraçalharão no muro atrás de você.
Você dá uns berros, não adianta nada.
A realidade é tranquila e o coração é o caos.
Você pisca os olhos e de repente o nada se infesta de fantasmas, umas manchas esverdeadas que sugam o sentido de tudo feito uns vermes desses que comem a nossa carne quando a gente morre.
E eu fico impressionada, impressionada mesmo!, com como é que o tal do vento consegue ganhar força e velocidade em tão pouco tempo.
Eu sinto cheiro de mar das cinco.
O sal nauseia o meu nariz, só que fazendo carinho.
Me arde, mas não quero tirar.
Meu pé soterrado na areia e a areia é fria e o mar é quente.
E ai eu entro mais pro fundo e minhas coxas são do mar também.
A marola faz carinho, a espuma acerta os olhos... nem dói nada.
Eu sinto cheiro de mar das cinco...
E o cheiro apaga os sons e apaga os clarões e os escuros e o cheiro apaga o gosto (de fumaça) e o cheiro existe tipo fosse todo o universo girando só que estático ao mesmo tempo.
O cheiro do mar naquela hora é todo o universo dentro e fora de mim.
O cheiro é a realidade de quem respira e sabe disso finalmente.
A única coisa que o cheiro do mar das cinco não apaga é o toque da marola quente roçando as coxas - isso nada consegue apagar.
Meu nariz engole todo o sal, beijando agradecido, e eu me sinto bem.

17.4.12

Sono



Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.
- Alberto Caeiro


Um dia em que você acorda mas não acorda.
De olho aberto vê o mundo e nada pensa dele.
As mãos esbarram pelos móveis, as pernas trombam as coisas.
E nada sente.
O corpo inteiro coberto por um escafandro duro e congelado.
Ontem te disseram que você era doce, ou qualquer coisa do tipo.
Só que hoje tudo é insosso dentro da carapaça.

Não é só a Terra: o Universo todo gira, tudo se contorce espasmaticamente.
E em você nada disso.
Em você só mesmo o tempo.
A única sensibilidade pras suas mãos grossas de calo é essa: o tempo.
O tempo fez sucumbirem os outros sentidos.
Tudo é uma bolota de nada almofadado.
Nem cair você pode.
Os ponteiros giram (como tudo) deixando um rastro de piedade.
Aquela auto-piedade que você passa a sentir antecipadamente pela sua própria decomposição.
E a auto-piedade é um câncer e você sabe disso.
Mas hoje o escafandro não deixa saírem esses sentimentos.
Nada entra e nada sai.
A lucidez é fracassada, é vil.
Hoje você é inacessível para o mundo, da mesma forma que o mundo sempre foi para você.

Eu quero que ela - seja ela quem ela for, seja ela o que ela for - me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.
Não existe sono pior que o dos despertos.

Posse, Acrofobia e Algumas Outras Paranoias

Passo numa rua e desliza uma moto pela minha esquerda como fosse um trem.
O banco que eu pego todo dia, hoje já pegaram.
Todo dia hoje já pegaram.
Mas o banco ainda é meu por direito. Eu pus meu nome lá, com canetinha, uma certa vez.
E eu fico pensando, eu fico pensando: as pessoas colocam o nome nas coisas também ou sou só eu?
Eu tenho um certo amigo Ziul que me contou uma história sobre um monstro e que escreviam coisas bem na testa desse monstro.
E o monstro obedecia, fosse o que fosse que fosse escrito ali.
O monstro era tipo um Frankenstein e todo mundo a que soldo as minhas etiquetas são meus Frankensteins também - ainda que não saibam disso, ainda que, por eles mesmos,  eles não sejam é merda nenhuma disso. Igual eu.
Fico me perguntando se alguém escreveu alguma coisa na minha testa também... é que nenhum espelho mostra as etiquetas que não foi a gente que botou.
É tipo um raio laser identificador de digitais e tudo aquilo que não veio da gente a gente não pode ver.
E eu queria saber se tem um prego na minha cabeça, porque tem dias que dói ao ponto de os olhos me saltarem da cara.
Eu sinto eles caindo no chão e espirrando cacos de volta no meu nariz e no que sobrou das minhas órbitas.
Foi bem assim, numa queda dessas, que eu descobri que tenho olhos de vidro!
Todo mundo que olhar na direção certa vai ver o que tenho aqui por dentro: a tal da lama e as tranqueiras  que vem junto com ela se a gente se demorar o suficiente procurando, se a gente não tiver nojo de enfiar mesmo a mão e tudo.
O meu banco é meu só no meu mundo.
Os velhos se sentaram alí (hoje foram velhos, ontem foi uma garota gorda) e pra eles o banco é deles.
E se já é difícil ter posse das coisas imagina que traumatizante é achar que a gente é dono de alguém só porque a gente escreveu "Meu" na testa dele e depois descobrir que não é nada disso.
Que o "meu" tem pernas e vai embora, pior que o banco! O banco pelo menos fica alí pra gente olhar...
E a moto já passou e outra já veio e eu etiquetei elas de "trem" porque assim eu quis, porque assim parecia mais emocionante.
Saio etiquetando a vida, tacando canetinha nas testas das coisas, porque a vida como ela é, um monte de coisas andantes totalmente solitárias e alheias e totalmente nadas, a vida assim me faz me sentir como que tivesse as pernas penduradas para fora da janela do vigésimo primeiro andar.

15.4.12

A normalidade é um pedaço de carne engastalhado na goela.
Por isso que os poetas comem feno, por isso que os poetas comem a terra suja do chão.
Antes o gosto ruim que o engasgo.

14.4.12

Boom

Não adianta cantar Across the Universe, não, garota.
Tudo se explodiu.
Esse universo mesmo que você acha que pode cantar, ele explodiu... e tá que antes disso explodiu pra se auto-gerar, mas isso é outra história, isso é outra fase.
E a fase agora é a sujeira.
Os destroços, o entulho.
A fase agora é o ar que ficou no lugar onde antes tinha um palácio.
O vazio onde era justo o coração do tal palácio.
O nada onde era a torre central, aquela existência toda que se via de longe...
E agora tudo tá no chão, em forma de lixo.
E o lixo não se vê nem de longe e nem de perto, que ninguém quer olhar pra merda; ao lixo se dirigem apenas narinas mais que tapadas e uns tristes, esfomeados e sem-solução catadores.
E os catadores comem o lixo e daí os catadores cantam:
Nothing's gonna change my world.

13.4.12

O cara e o muro

É aquela sensação de filme.
O cara sai correndo, a porta de ferro caindo do céu.
A qualquer momento ela se solda ao chão e aí já era e aí nunca mais e aí ele ficou de um lado e o mundo do outro.
É bem aquela sensação.
O cara sai correndo e o ferro fecha de novo antes de ele passar. Por um triz! De novo. De novo. De novo. De novo.
O cara não aguenta mais a repetição. Essa alternancia da credulidade cega com o ceticismo ainda leva o cara à loucura. Ele vai pirar...
É que é sempre por triz!... sempre só o suficiente para ele dar uma averiguada no que é que tem do outro lado: uma lua brilhante que é um diamante.
Comum e óbvia e real e maravilhosa.
Mas por trás da porta fechada o que é brilhante se reduz a um vislumbre; uma faísca no canto do olho que não dura mais que o tempo que uma faísca tem mesmo.
E aí a lua volta a ser escrita com minúscula, ordinária como tudo o mais.
Ordinária como o próprio cara que, agora largado ao chão e escrachado feito um trapo, reconhece que nunca deixou de ser.

Poço

Às vezes colocam a gente num porão úmido e deixam a gente alí marinando em pensamentos que tem cheiro de pó... e a gente vê um monte de coisas que não quer ver, apesar das vendas que eles enfiaram nas nossas fuças.
E eles não nos dão nada, só o nosso pensamento mesmo, para a gente comer.
E a gente come eles e a gente devora tudo e quanto mais a gente come mais a gente engasga e mais eles viram monstros berralhões na boca do nosso estômago.
A gente só não grita porque meteram uma mordaça na nossa boca também.
A gente, as garotas, ficamos alí com os cabelos derramados no assoalho de madeira velha, carcomida de cupim e arrependimento. A gente derrama um monte de sentimentos obsoletos e enferrujados pelos entremeios dos fios
E os sentimentos e os cabelos e tudo, tudo...
Vai-se tudo para o chão em esparrames, meio que só para dar mesmo à vida esse ar de vaso de porcelana arrebentado.
A gente só não treme porque tem cordas sufocando nossos braços e pernas.
Daí a gente fica alí, todo mundo junto, sozinhos nos próprios espasmos existenciais.
Não serve de nada ter mais de trinta numa mesma sala se ninguém se vê e nem ninguém se ouve e nem ninguém se toca e nem ninguém se sabe.
E nem ninguém sabe nada, que eu sei.
Os cabelos  das garotas se derramam pelo chão feito cacos de vidro ou lágrimas (ou ambos).
Feito sentimentos mesmo... feito sentimentos.

12.4.12

Um cara no deserto cuspindo

Sentou-se numa cadeira recostavel no meio do deserto.
A água da boca pingava no chão, escorria pelas rachaduras. Aí acabava e não sobrava nada nem cá e nem lá.
Do céu não caiu nada naquele dia, exceto uma gaivota de jornal que veio de sei lá onde.
As pessoas estão sempre lançando gaivotas aleatórias pro mundo. E as pessoas morrem e as gaivotas continuam procurando gaivotoporto para pousar - ninguém inventou essa bosta ainda.
As gaivotas tem mensagens no lombo que talvez um dia, pra alguém, fizeram sentido.
Mas a chuva (chuva de outro lugar, que aqui nunca chove) borrou tudo de desentendimento.
Ficou só mesmo foi a tinta rota para provar que algum dia alguém pensou qualquer coisa que fosse.

Pegou a gaivota com a duas mãos e espremeu tal fosse mosca de fim de tarde.
Mas era meio-dia e a gaivota era papel, não era mosca.
Vive nessa irrealidade de delírios, apesar de já ter tirado conclusões, após muitas andanças, de que oasis é conversa de pescador... e no deserto nem tem pescador e nem nada...! uma mentira pior que a outra! - era isso que pensava.
E pensava e cuspia e cuspia o pensamento e pensava o cuspe e aí de novo.
O resto de água que o corpo dá, ele joga no chão.. um babaca ingrato e insensível.
Mas essas cusparadas que parecem porcaria deliberada... essas cusparadas... vai saber... vai saber!?
Se algum dia alguém jogou um caroço alí, digamos assim, são esses cuspes mesmo que vão parir o tal do diacho. Não é?
Por isso continua cuspindo ao acaso, porque isso - pensa - dá menos trabalho que agachar no chão e olhar direito.

Noturno

O breu rouba a noite feito o cão apossado do osso.
Eu fujo do escuro do meu próprio mundo para me lançar na boca escura da madrugada - essa, escura de forma literal.
Sempre achei que essa boca tivesse bafo de ranço de peixe, mas hoje (e ontem) ela resolveu me convencer a posicionar o nariz no lugar certo: agora tem cheiro de mar das 5 da manhã. E há uma grande diferença, quer os outros percebam ou não.
Miro meu telescópio para a Lua, aquela que antes era uma pedra.
O carbono diamantou sob a pressão dos meus sentimentos exagerados, sob o drama, e a pedra agora tem ares de solitário.
Ela continua sendo uma lasca qualquer do cosmos, isso não vai mudar, mas hoje me deixo ser mais humana e admito que brilha feito uma condenada. E tanto faz se brilho é só mais um conceito e que no fundo não existe diferença entre lama e ouro; a Lua tem ares de solitário e é maior que todas as estrelas.
A Lua é maior que o Sol, porque pro Sol eu não consigo olhar que ele não deixa.
Então eu olho só pra ela, cheia de permissividades!, e por isso só ela existe então.

10.4.12

Um cara deitado no rio boiando

Um cara deitado no rio boiando.
Tudo escuro.
Às vezes o universo parece um farelo, uma migalha.
E eu como ela inteira e eu penso que acabou. Essa minha arrogância ainda me mata (tomara que mate mesmo!).
Mas aí não.
Mas aí tomo pancadas de Hubble bem no occipital:
Um montão de galáxias se proliferando feito coelhos na primavera.
Um respiro novo e as veias parecem que nem são mais as minhas.
Para ser mais exata: o cara deitado no rio boiando é uma galáxia totalmente nova que acabou de nascer na minha pupila.
Bum.
Não tem mais migalha, agora é o oposto.
Agora o oceano é fundo, fundo, fundo, fundo.............
Quanto mais pra baixo vou, mais pra baixo tem pra ir.
Sinto medo desse todo repentino. Infinidade sempre foi um conceito imbecil em que evitei pensar porque a verdade é que me borra as calças.
Tudo é um bolão monstruoso de responsabilidades, e nada é uma rede e um drink e uma tarde inteira de vazio.
Eu sempre puxei de mão o segundo mesmo.
Mas comigo não há meios termos.
Ou sou cega ou vejo tudo de uma vezada só. Não me resguardo para certas cores feito muita gente que eu conheço por aí.
[ Reticências.
Eu e a minha arrogância... Ou eu mato ela logo, ou então é ela que me mata (tomara que mate!). ]
O que importa é aquilo que sempre importou: aquela coisinha mínima que virou grande do nada bem dentro do buraco negro... digo, bem dentro do seu coração; aquela avalanche descontrolada que surgiu por causa de um grãozinho banal novo no cosmos.
O grão novo aniquila em porrada a palavra "obsoleto", a palavra "gasto", a palavra "cansado".
Não tem pra ninguém.
Um cara boiando no rio de nanquim.
Putz!
Essa é uma cena que eu nunca tinha imaginado, ela é completamente nova.
E ela é isso e ela também me faz perceber que outras cenas ainda mais completamente novas estão por vir e eu não vou dormir tentando descobrir quais são. Eu não vou dormir.
E vai ver que eu até descubro mesmo uma ou duas por conta própria... é pra isso que serve o ser humano, acho.


6.4.12

Sobre ampulhetas desreguladas

Fica essa sensação de uma da manhã na boca.
Porque na sua cabeça já acabou - já acabou o dia, já acabaram os planos, já acabou a história - mas pro tempo não. O babaca nunca que acompanha o seu passo.
23:07.
Ainda.
Fica pensando: "Não, não, não. Não posso dormir... não posso dormir, que dormir demais é matar a vida."
E aí assim mata o tempo: coça o pescoço, tira a sujeira de debaixo da unha...
E a gente está sempre matando as coisas com a nossa forma chula de ser, com o nosso desgranho.
Tem gentes demais por aí fazendo coisas demais.  A essa hora ou qualquer outra.
Fosse uma da manhã (a uma da manhã real), ainda teria gentes fazendo coisas. Certeza!
Mas você está aí, fazendo bolinha com a craca dos entremeios da tua pele.
Pensa: "Mato o tempo, mato a vida, mato a mim e a minha dignidade!"
Oh yeah.
Oh yeah para você e oh yeah para os demais "mansardistas" infelizes à la Pessoa que o mundo pariu.

Sobre os acuados

De repente é o reverso.
De repente a gente sai da trincheira dando tirombaço pro alto.
O rabo entre as pernas virou uma bazuca, nós somos irreconhecíveis.
Minha pele é malhada de camuflagem.. e antes tão pálida!
A correnteza - impressionantemente - sempre corre pro lado que a gente rejeita.
[Ou vai ver que a gente é que corre pro lado que ela rejeita, vai ver que é a gente...
Que se a gente se deixar ir, a gente chega "lá" rápido demais e aí nada mais tem graça.]

A gente virou o avesso de tudo aquilo que a gente defendia.
Ou porque a gente não sabia do que tava falando ou porque é agora que a gente não sabe.
A gente não sabe mais. Eu aposto nisso.
Antes eu falava baixo e ninguém ouvia.
Agora eu falo alto, eu grito mesmo, só não sei se os berros têm qualquer valor... muito provavelmente não.
Muito provavelmente têm valor de escarro de calçada, daqueles que qualquer mendigo dá - daqueles que mendigo dá.
A gente trocou a implacabilidade da semente bem plantada (aquela que demora séculos pra dar o ar da graça) pelo imediatismo da bomba que só altera o agora.
E a bomba destrói, e a semente não.
E tem isso e a gente sabe mas a gente resolveu se dar o direito de sermos humanos, o direito de vermos as coisas acontecerem enquanto ainda estamos vivos e vermos o circo pegar fogo mesmo e o diabo.
O que penso é que talvez o tal do circo esteja cheíssimo de gentes.
Talvez esteja... e aí que me dá o nó.
Sinto uma vergonha enorme quando me retiro da sala de jantar antes da hora para tomar o terceiro banho do dia - quanto mais banhos melhor!
Sinto uma vergonha enorme da minha contradição.
Minha voz sempre desprezando o mundo só que o desprezo talvez fosse só inveja  porque despencou feito maquiagem barata quando eu deitei de noite pra dormir.
E assim me vejo lamentavelmente rastejando por debaixo dos criados mudos das casas de todo mundo, as casas de qualquer um que seja, com as fuças enfiadas nos carpetes imundos pedindo pra me darem um cantinho no sofá.
"Deverasmente" lamentável.
É quando passo na frente do espelho e me vejo com a poeira do chão dos outros entrando pelos olhos e o nariz, que não me conformo, que me sinto insultada pela gravidade que me fez agachar ali. E é aí que aquilo de que falei a princípio acontece: o sair da trincheira, a correnteza represada e agora livre, a perna que chuta involuntariamente por causa daquela questão do reflexo.
E acho que no fim das contas tudo se resume mesmo a isso: porrada e reflexo.
E aí eu saio atirando pro alto.

5.4.12

Olho de esguelha pro sol lá no alto. Meio dia em ponto, ele deve estar bem no meio do céu mesmo, bem no meio de tudo, bem no meio da minha insignificância.
O sol se mete pelas beiradas das roupas, o sol se mete nas ideias.
E o sol é uma bela mentira, se você quer saber a minha opinião.
O sol só faz carinho em quem tá longe. Eu odeio o sol.
Eu quis ir dar um abraço no desgraçado e o desgraçado me arrancou a pele.
Foi isso que ele fez...
Eu quis ir acampar sobre os ombros do desgraçado e o desgraçado descarnou o que sobrou de mim.
O sol é impiedoso como tudo o mais, o sol não permite aproximação.
E eu continuo insistindo, dando passinhos de formiga enquanto ele dorme.
Mas é que eu nunca vou saber se ele dorme mesmo ou não... eu não confio mais nem um pouco nem no sol e nem em nada.
É que tudo no céu é também mentira que eu já vi...
No zênite noturno tem um ponto brilhante.
E quem é que sabe? Provavelmente esse ponto já morreu há milhares de anos... tipo esse comichão que insiste em permanecer dentro do meu peito e o meu cérebro continua (toda hora) lhe gritando: Você já não existe mais, infeliz! Você já está mais que enterrado!
Mas ele continua coçando lá no fundo, pinicando, me deixando uma pilha de nervos.
Sou uma pilha de nervos agora meio-dia sob o sol.
Enfio cravos e anis e pimenta  e whisky por entre os entremeios dos meus dentes só pra sentir a boca inchar... só pra sentir alguma coisa que não seja o tal comichão.
É isso. É por isso que eu me jogo tipo kamikaze na bola de fogo distante.... deve ser por isso.
Que me arranque mesmo a superfície e que chegue logo no meu cerne pra me arrancar também as raízes de plantas ruins que ficaram por aí tentando estrangular meu coração, envenenar meu coração!... essas raízes, que minha mão não pode arrancar sozinha porque é fraca demais.

3.4.12

Resume-se a vida de um homem, na melhor das hipóteses, na construção de um alfabeto inteiramente novo.
Ele trabalha feito um louco debruçado nos dias traçando as letras, fazendo as correspondências...
Ele um dia consegue formular uma frase inteira com esse alfabeto.
Mas daí ele descobre que só ele entende.
Descobre que levaria mais que uma vida pra criar um alfabeto sem brechas, cada dia sendo uma gota da tinta, e que por isso não existem dias no tempo sobrando pra que se ensine alguém a pronunciar qualquer palavra.
Aí o homem fraqueja. 
Fraqueja porque queria conversar, o homem cansou de tentar responder às próprias questões.
Por isso ele pensa em nunca mais fazer uso de papel algum, de palavra alguma.
O homem cala a boca.
Mas é de sua natureza querer tudo que é do pássaro.
O homem vê o pássaro voando e quer voar e não pode.
Isso não tem jeito.
A segunda opção é o canto.
Aí o homem se inspira, porque isso ele pode.
O homem sofre de epifanias.
Ele então retoma o alfabeto no peito, uma lufada de propósito finalmente preenche sua vida vazia.
Se der sorte, antes de morrer ele cantará o próprio hino.
A poesia dele, escrita no alfabeto dele, pra uma melodia que ele cunhou no instrumento que ele inventou.
Pena é que ninguém entende, ninguém nunca vai entender, que é que diz a voz do homem.
E não há uma só alma pra cantar junto... 
[E o pobre homem sofre muito, porque quando era criança lhe contavam aquela lenda dos cantos em dueto.
Tudo mentira...]
Ademais, todos estão ocupados detalhando as próprias tipografias, gritando pras crianças como é que se faz o novo A.
E o homem fica velho e o homem fica só; melhor dizendo: o homem percebe que é só.
E o homem só morre só e com a voz falhando, e o alfabeto que o homem escreveu com bisturi nos próprios ossos se enterra imediatamente no esquecimento.

Sobre pessoas e rastros e eu

Você se senta sozinho num canto.
Um dia mais inútil que o outro, sempre.
Passa um avião louco no céu deixando um rastro de fumaça.
Tudo deixa rastros, é isso que as pessoas fazem.
As pessoas não são o que são, elas são esse tal do rastro.
Fica no inconsciente coletivo, acho, e por isso todo mundo sai por aí comprando fumaça pronta.
Providenciando o padrão!
Lançando repetição no céu... as nuvens ficam todas iguais.
Mas você não se vê como avião.
Você vê o avião e você sabe: esse não sou eu.
Você não tem turbinas, sua fumaça é regular como um arroto.
Não, não. Avião você não é.
Fica pensando:
Qual é o propósito de fingir que sou o que não sou?
É pra fazer os outros acreditarem ou é pra me fazer acreditar?
E ainda: o que é mais desonesto?
O que é mais lamentável?
Não há resposta.
O canto é frio e mudo, mas ainda é mais aconchegante que a mentira.
Por isso você permanece por alí mesmo, um trapo mal ajambrando de nariz entupido (e olhos entupidos e boca entupida e alma entupida também).

Fome II

Fui deitar pensando nas raridades.
Soube de um moleque que passou quinze anos sem música.
Um dia soltaram ele na floresta e o primeiro passarinho que passou cantando ele meteu na boca e engoliu.
Soube de uma mulher bem casada que passou a vida toda sem amor.
Um dia o carteiro passou e piscou um olho por causa de um cisco. Ela arrancou o olho do carteiro e pôs numa redoma de cristal.
Soube de mim que passei as últimas milhares de noites sem poder sonhar lá grandes coisas.
Quando deu umas quatro da manhã um vento passou e falou que podia sonhar sim senhora...
E daí que o dia amanheceu e eu não preguei o olho, e daí que acho que nunca mais vou pregar, que vai saber que é que eu faço comigo mesma agora que os portões liberaram uma brechinha dessas?

1.4.12

Fim

NãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNão.

Você não vai morrer, não.
Mas você também não vai viver.
Não com essa faca enfiada no baço... não com o sangue escorrendo.
Os médicos vão vir eles vão limpar e eles vão costurar e eles vão...
Mas eles não vão tirar a imagem da faca da tua cabeça.
Isso não.
Vai ficar lá, a faca imaginária perfurando seu corpo.
E ela não vai ir embora de você, mas você vai tentar ir embora dela.
E não dá.
E o tempo todo você em negação.
Não.
Não existe faca não existe faca não existe.
Existe. Existe sim e dói.
Lembrança também dói... tipo eco que não é som, mas só que é.
E falando nisso, me prometeram que um certo eco ficaria por aí, impedindo as coisas de morrerem.
Mas esse certo eco talvez fosse (temo que fosse) filho de uma enorme mentira e depois que a gente sabe disso fica difícil continuar ouvindo a sinfonia e achar bonita. A gente pensa em como ela foi feita: batuques na tampa do ralo, gatos estrangulados, etc.

E na verdade não, na verdade talvez não seja nada disso. Na verdade talvez a gente quer acreditar nisso porque a música é bonita demais pra gente ter que passar a eternidade toda lidando só com os espasmos fracos que sobraram dela.
Eu não sei. Será que alguém sabe?
Você não vai morrer, você não vai.
Só que talvez fosse melhor, talvez fosse mais fácil que viver essa vida de papagaio:
NãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNãoNão.

A gente vai negando até onde dá, de todas as formas possíveis.
Até a gente topar com uma parede e daí a faca (não tão imaginária assim) penetrar de novo e ainda mais fundo a nossa carcaça deprimente.