17.1.12

Rebanho

Vejo os senhores e as senhoras pelas rebarbas dos meios fios que me escoltam  tragando o espaço sideral feito fumantes passivos.
Vejo criaturas medonhas emergindo das lagoas e que nunca que rastejam para fora delas - e eu bem que queria que sim!
Vejo os morangos silvestres esparramados no percurso e os pés que pisoteiam e que logo mais fazem alarde que é sangue. Quando que é assim eu rio alto pra mim mesma, passo um dedo chão e dou uma lambida.
Quando que é assim eu me olho inteira - até as costas onde os olhos não vão eu tento ver - procurando pelos calos ensanguentados só pra ter certeza da procedência da hemoglobina.
O espaço sideral está aí para ser tragado, isso é bem verdade, isso já é bem sabido... e a questão é só se a gente deve olhar pro alto e escancarar as bocarras esfomeadas, plenos de consciência e escolha, ou se a gente deve esperar o tempo transformar a gente nos senhores e senhoras do meio fio também, que assim pelo menos sobra tempo pra brincar de sangue falso com os tais dos moranguinhos.

10.1.12

Tem esse momento esquisito em que você deixa de se assustar com o bicho papão.
O bicho papão ficou banalizado, ele deu as caras vezes demais.
Ele deu as caras tantas vezes que você já fica até esperando por ele na sacada e quando bate as dezoito horas e ele não vem uma pontinha de decepção deságua no seu íntimo.
Você não tem mais medo do velho do saco, você acha até que talvez possa ser uma ideia que ele venha te levar embora.
Pena é que o velho do saco só leva embora as crianças e você já pesa mais de cinquenta quilos - está fora.
É a mesma sensação, eu diria, de quando você vai ao parque e se mede na reguinha da montanha russa e vê que não tem a altura mínima necessária. Salvo uma diferença: a altura mínima necessária você sabe que virá com os anos, é uma questão de paciência, e os quilos a mais (os anos a mais, os centímetros a mais, as experiências a mais, os desabores, desamores, despedaços, estilhaços, coração quebrado a mais) você sabe que não pode perder. Já era!
A vez é da nova leva, a vez é da fruta fresca... você se sente velho.
Você se sente grande, ocupa espaço demais! Não cabe no saco do velho do saco.
Ele não vai te levar embora.
O bicho papão talvez venha amanhã mas pode que seja (como diria o Marco) que ele tenha mais medo de você do que você dele... essa tua cara enrugada e cheia de olheiras!
Você cansou, tuas pernas não correm mais.
Você fica alí esperando e quando ele chegar você sugere uma partida de xadrez, vocês se sentam para assistir tv juntos, fazem panquecas.
Acho que todo homem morre casado com seus medos.

7.1.12

La Reina

Estive com sede pelas últimas vinte e quatro horas.
Um caminhão passou pela rua gritando horrores e o céu se fantasiou de corvo.
Amadureci meus sentimentos pela chuva enquanto caminhava pela mesma desprovida de proteção, bem como quem se desfaz dos rosários para reunir-se às bestas e só assim pode vê-las como são.
Traguei a companhia de um amigo querido, viciada nas palavras esfumaçadas que meu cérebro tentava captar (deixei que passe batido aos meus olhos o formato de seu rosto).
Meus olhos viraram ouvintes e meus ouvidos viraram cadáveres.
Não posso mais não me perguntar que parte então do meu corpo se ocupa da missão de ver.

Estive com sede, mas ah!, como estive.
Esparramei os livros pelo chão procurando a cura para minha dor de cabeça e as letras miúdas se propuseram a enfatizá-la apenas.
Troquei meu vestido de noite pela pele crua de um banho fervente e longo; as vidraças logo se embaçaram e assim a minha mente se esquivou de mim.
Abri a boca e engoli a água suja do chuveiro sentindo minha sede piorar.
Em todos os meus anos de existência a palavra "sede" nunca me teve as mesmas significações das enciclopédias; em todos os meus anos água apenas me nutriu, nunca me saciou.
Busquei os braços dos meus amores mortos e descobri que lhes faltava o movimento do peito que sobe e desce para acalentar cabelo cacheado de mocinha de torre de castelo; descobri que meu corpo pelando entrava em choque com as geleiras-humanas prostradas em minha cama.

Foi num momento de desesperança quando me sentia a última das mulheres - um pedaço de carne tolo pendendo imbecil sobre a fronha - que se derramou sobre os livros do chão um cálice latino que me pediu que lhe desse a vez:

"Yo te he nombrado reina.
Hay más altas que tú, más altas.
Hay más puras que tú, más puras.
  Hay más bellas que tú, hay más bellas.
Pero tú eres la reina.
Cuando vas por las calles
nadie te reconoce.
Nadie ve tu corona de cristal, nadie mira
la alfombra de oro rojo
que pisas donde pasas,
la alfombra que no existe.

Y cuando asomas
suenan todos los ríos
  en mi cuerpo sacuden
el cielo las campanas,
y un himno llena el mundo.

Sólo tú y Yo,
  sólo tú y yo, amor mío,
lo escuchamos."

E os caminhões se calaram e o céu se transvestiu em carmim e eu não senti mais sede então.

3.1.12

Atropelamento

Não sei o que estou fazendo.
Não sei se estou olhando a flor ou o penhasco: as visões se embaralham.
Falo em primeira pessoa porque perdi a vergonha na cara, porque tenho desesperanças várias, porque não tenho mais força facial para forjar qualquer outro sorriso.
Existe uma queda brutal bem diante do meu nariz, mas meu nariz gosta mais de cheirar a flor e me deixa bêbada demais e é por isso que eu não sei mais terminar frases e textos e lapidar as palavras pra que elas sejam o que elas deveriam ser.
Esses dias eu tropecei num anel enxovalhado de pedras.
Já conheci gente que mataria por ele, mas penso eu comigo mesma que se o desgraçado não tivesse tantas pedras eu não teria ralado meu joelho no asfalto quente.
Me apoiei direto com as mãos e agora perdi meu tato, sou uma bolha gigante de queimaduras tristes e ridículas.
Meus pais me lançaram numa banheira de gelo que disseram que vai passar.
Parte de mim pensa na banheira como uma excelente oportunidade para um afogamento, outra parte gosta mesmo é de sentir a dor da queimadura.
Fiquei assim: um pé para dentro e outro para fora da tal da banheira e um pé meu congelou e não sai mais do lugar e o outro pé meu se lança persistente para frente; uma frente que ele e eu sabemos que será sempre um passo adiante.
Nunca dei tantas liberdades assim para minha língua sair vomitando metáforas quando bem entendesse; hoje por exemplo a gente combinou que cru era mais legal.
Mas é assim que é, eu em mais de duas décadas não pude ganhar sequer respeito de mim mesma, do meu corpo.
Como é que eu poderia esperar não ser atirada em banheiras de gelo, em piscinas de cimento?
Esperar que as pedras visem meus dedos e meus bolsos e não meu caminho?
Esperar que adiante da flor tenha uma rede e um ombro pra descansar e não uma queda de sei lá quantos quilômetros?
Eu queria não me esborrachar no chão, pelo menos uma vez!
Mas o chão é o meu oposto magnético, o chão é o cara que me quer por esposa! Talvez por isso viva me oferecendo pedras e eu - babaca! - não entendi até hoje...
Vai ver que é isso... ou vai ver que não?
Quem sabe do que eu estou dizendo?
Eu não sei, as nuvens não sabem mais e a minha língua é uma máquina de gerar frases aleatórias.
Queria saber parar de relinchar!
Queria saber frear o galope, porque saltar alto o bastante eu já sei que não posso...
Mas estou vendo, camaradas, estou vendo bem:
A próxima cena é a flor esmagalhada pelas minhas ferraduras e a seguinte é a minha cara estraçalhada pelas ferraduras do fundo do poço do mundo.
E é tudo culpa do desgraçado do meu nariz.