31.3.11

Sobre recusa

E daí dá um aperto, goela engole seco.
Dá pra ver de longe:
Gulp.
Não sabe mais de nada, não sabe mais de nada... fica repetindo.
Não sabe.
Não quer saber.
Fecha os olhos prá poder dormir.
[Tenta.]

Inocente até a última gota, o sujeito que pensa que fechar os olhos impede de ver.
Fechar os olhos pro mundo, agora sabemos, é simplesmente escancarar as cortinas pra um ponto de vista (pelo menos) estupidamente mais caótico.
[E sincero.]

Sobre o amor próprio que a gente devia ter

Não, não, lagartinha.
Não se rasteja não.
Olha só o gato como vai... de rabo empinado, por cima do muro, por cima do mundo.
Não se rasteja não, lagartinha, que ele nem te viu. (E nem vai...)
Ele só olha o gato, e aí, lagartinha, você olha pro gato também e tenta fazer "miau!" também, assim parecido com o dele.
Mas só te sai rouquidão, não é mesmo?
Eu vi...
Comigo também.
Só me sai rouquidão... e eu que queria dizer tantas coisas!
Eu queria dizer assim um "miau!" bem baixinho, bem pouco esforçado, e ganhar um afago dos bons, igual ao que o gato ganha. (E a mão se estica toda, e os pés na pontinha, só pra tocar o pêlo macio do gato que não está é nem aí...)
Mas aí pra gente só sai mesmo é ausência, só sai negação.
Frustração... porque os olhos se negam a ver nosso corpo coitado que se encolhe e se retorce sob o sol queimador, porque se recusam a ver lagartinha rastejando para ficar mais pertinho, o pouquinho que der pra ser...
E aí então é assim que é: lagartinha rasteja por horas e quando chega lá o sapato idolatrado se afasta pro infinito com uma única passada.
Que humilhante, lagartinha!
Que humilhação.
Lagartinha vai rastejando, como uma completa idiota!, sob os pés dele, por baixo do muro, por baixo do mundo.
Não se rasteja não, lagartinha, não se rasteja não que é capaz de ele ainda te pisar.
Vira logo borboleta, lagartinha, e vai embora logo visitar o céu onde tem nuvens carinhosas que nunca vão te dizer que "sim", mas que  também nunca vão enfiar sola de bota fundo no seu coração.
E,  se a tarde cair mais cedo, será possível vê-las a rastejar por todos os cantos, fingindo que miam baixinho, enquanto você desfila com suas admiráveis asas de cores mil.

26.3.11

É como se você estivesse numa festa de gala trajando farrapos.

E você não é pobre nem nada, você poderia estar mais bem vestido que muita gente alí.
Mas você caiu alí assim, você não teve tempo.
Você queria dizer a eles... você não teve tempo.
Você queria se explicar...
Mas não tem desculpa, você sabe, eu sei.
E eles fingiriam que sim, mas não entenderiam.
Você quer se esconder, você não quer que ninguém te veja, te conheça, fale com você.
Você não quer que eles pensem que você é daquele jeito, você queria que eles te vissem como você é, com a roupa que você escolheu.
Você se sente grato quando um ou outro vem conversar, mas você nunca vai deixar de achar que eles irão te olhar de cima abaixo assim que lhes virar as costas.
E o pior é que eles teriam razão.
Você faz o mesmo, se conseguir reunir um pouco de coragem.
Você se olha dos pés à cabeça no espelho do banheiro e aí bate um cansaço... mais que um desespero, uma desesperança.
As vezes você sai de lá com a cabeça erguida: "todo mundo já me viu mesmo!" e fica a vontade.
Mas aí vai percebendo que quase ninguém tinha te visto ainda, e as cabeças começam a se voltar em sua direção. As cabeças que você realmente queria conhecer.
Você quer ir lá e quer cumprimentar, são pessoas legais, você queria trocar uma idéia...
Mas seus farrapos te fazem querer desaparecer, só e simplesmente isso.
Você queria que eles soubessem quem você é, mas tudo o que eles vão saber sobre você no final das contas é que você é "aquele cara doido com as roupas de mendigo".
Nada contra roupas de mendigo, estaria tudo bem se fosse uma festa de mendigos.
Mas naquela ocasião você só querer estar no zero a zero, só isso, estar no mesmo nível, ter uma chance igual a de qualquer outro.
E se a música toca e a pista se enche de pernas bailantes você quer dançar.
Você sabe que você sabe dançar, você sabe que eles iriam gostar... mas você se inibe.
Porque antes de ver teus passos eles vão olhar sua roupa.
Você sumiu dentro dela, você sumiu.
Você só queria que eles te vissem como você é... você só queria se ver como você é.
Você não tem pra onde ir, por todos os cantos surgem pessoas e puxa, o pior é que você adora pessoas.
Mas você sente que se apresentar a elas assim é destruir completamente suas chances de que elas te conheçam de verdade.
Às vezes você entra no papel, mas não tarda e engole o seco se lembrando saudoso da normalidade... porque só na normalidade existe clareza para se perceber as sutilezas.
E é disso que o homem é feito: sutilezas.
Sua roupa não é nada sutil.
Te afoga, te sufoca, te mata.
Você morreu, aquele dalí é outro.
É por isso que você acha extremamente injusto se apresentar aos outros convidados se chamando pelo seu próprio nome... a sua voz fica fraca e você não fala nada.
Você hesita; um passo pra frente, dois pra trás.
Você só queria se livrar da sua circunstância extravagante, você só queria ser você.
E que eles pudessem te ver...
Ah, se eles pudessem te ver..

25.3.11

Donde haveis (vós) de vir a julgar os vivos e os mortos.

E se eles te impuserem verdades sobre você como quem impõe uma religião?
Antes você aceitava e acreditava perfeitamente.
Você seguia os mandamentos.
Mas de repente é você agindo como não deveria e vem a dúvida.
Daí eles te queimam em fogueiras de vinte pés, porque você é um perdido.
Eles agem como se você fosse cego, iludido... "coitado!", eles dizem.
E se você comete mais dessas blasfêmias, se você de repente despenca num poço de heresias, eles te prometem mais que a fogueira, te prometem o fogo do inferno.
Porque você é confuso, você vai sofrer.
Mas teu mundo faz mais sentido quando você esquece as lições formuladas por terceiros e passa a confiar no próprio tato.
Você então deixa teus próprios olhos olharem e o que eles olham não é nada.
É uma página em branco.
Só existe inferno (e paraíso) para quem já morreu e você ainda tem muito o que viver até que te caiba perceber se errou ou se acertou.
Ademais, nunca é tarde para criar a própria religião... ou virar ateu.

23.3.11

Feira beneficente

Eu ainda não decidi se é mais relevante o fato de os doadores (só) de coisas serem desvirtuados ou se é mais relevante o fato de os doadores de coração serem burros até a última gota.

Sobre os que se excluem do roteiro

Quando via as festas dos outros pela janela pareciam perfeitas, mas assim que botava os pés lá dentro as coisas mudavam drasticamente.
Não conseguia mais ver com clareza, era muito tumulto.
O salgadinho sempre caia no chão.
Aí a tia vinha e tinha que limpar também a coca-cola derramada na toalha.
Nunca soube participar dessas festas.
Nem da sua própria.

Não gostava dos bolos de aniversário.
Daqueles de quase dois metros que a avó fazia.
Não gostava dos presentes.
Daqueles de muitos reais esbanjados que o pai trazia.
Não gostava dos balões.
Daqueles enchidos a custo dos pulmões fracos da mãe.
Era tudo muito... não "muito ruim", nem "muito chato"..  não diria isso.
Era tudo simplesmente muito.
Via o bolo e tinha certeza absoluta que não lhe caberia comer mais que duas fatias.
Os presentes?
Do jeito que era, quebraria em uma semana. 
Os que sobrassem, perderia dentro de um ano.
Os balões, veria seus amigos estourarem um por um por pura falta do que fazer.
Passaria o dia assim, sentindo que não soube usurfruir como devia.
Nunca conseguiu ver sentido em coisas assim e os convidados sempre aproveitaram mais do que ele mesmo.
Se frustrava.
Tudo em que se intrometia desmoronava, perdia o sabor, deixava o brilho pra trás.
Quando mais rapazinho, se afundou em filmes e músicas e livros, onde era possível viver as histórias sem estar lá de fato para estragar.
Foi Indiana Jones, Capitão Nemo, Luke Skywalker, Vlad, Gandalf e até mesmo o Idiota na Montanha.
Cantou as palavras do Dylan como se fossem suas... sem gaguejo.
Sem tropeços, sem coca-cola derramada.
Um dia decidiu que sua presença seria substituída por uma câmera e um microfone.
Levantou acampamento no próprio quarto - trancado pro mundo - e incumbiu alguns familiares e amigos mais confiáveis que lhe passassem as fitas e cadernos com relatos minuciosos por debaixo da porta.
Um dia as entregas escacearam.
Não tardou e falharam completamente.
Ficou um ano inteiro de tocaia ao lado da porta e da janela e nunca mais ouviu barulho de ninguém.
Nunca mais viu as sombras se mexendo pelas frestas...
Passou fome.
Daí num dia, louco em febre, completamente delirado, se lembrou que certas vezes viu em fitas e leu em cartas que a irmã iria fazer faculdade na capital, que o pai e a mãe se divorciaram e mudaram de rumo, que os amigos foram morar longe.
Nos filmes, quando acaba uma história, a gente coloca outra... pena que ele se esqueceu que não tinha outra pra colocar no lugar. 
Quando ele nasceu foi essa que lhe coube, soretada na roleta das possibilidades.
Boa ou ruim, era essa que era e ele não entendeu que se quisesse mudar teria que fazer como os outros e procurar a próxima fita em outro lugar porque o quarto é um espaço pequeno demais e porque um dia a locadora fecha e a livraria fecha e os discos se arranham.
Daí era ele, barbudo, descendo as escadas e rumando dessa vez para o próprio set de gravações.

22.3.11

Sobre a gente tentando chegar lá

Em situações como essa nós temos duas escolhas:
Ou a gente finca os pés na areia e aguenta o tranco ou simplesmente deixa a próxima onda levar a gente de volta pra praia.
Ou vocês realmente acham que taxis marítimos caem do céu? Acham realmente que topam fazer o serviço de graça? - a gente não tem nem um tostão, ou vocês esqueceram disso?
Além do mais, coitados, essa rota que a gente quer não tem mapa e não tem direção e nem foguete dá conta do recado.
E o seu cavalo alado também não serve de nada porque eu já tentei com o meu e não funcionou.
Eu já tentei com o meu submarino, eu já tentei com a minha nave espacial, eu já tentei com asas que você me emprestou, eu já tentei de patins e de carroça, já tentei de teletransporte e carona na garupa do Flash.
Não funcionou, não funcionou, não funcionou, não funcionou, não funcionou, não funcionou e não funcionou, respectivamente.
Quase sempre cheguei, mas sempre no lugar errado.
Acho que esse tipo de percurso a gente traça a braços e pernas, e essa é a nossa única opção se a gente ainda não sabe exatamente as coordenadas, se a gente não sabe onde é que é "lá".
E a gente não sabe, que eu sei.
Eu sei também que tem onda que bate e dói, e que gela até a alma.
Eu sei que arde, que os olhos se cegam pelo sal e aí fica escuro... tudo escuro.
E sei que se a gente tenta mergulhar pra evitar as trombadas doídasl, fica surdo.
E perde o ar... a gente perde o ar, a gente engole água e pensa que vai morrer.
Não, não... a gente não pode mergulhar, agora eu sei.
A gente tem que ficar de pé!
Se vier marola, a gente relaxa e deixa passar e se vier daquelas grandalhonas espumantes e raivosas a gente faz a mesma coisa!
É... a gente faz a mesma coisa, mas antes finca os pés no chão.
Já falei né... ou é isso é deixar ela te levar de volta, você não quer voltar, você sabe que lá não é .
E daí depois vai ter que nadar de novo aqueles metros que você deixou pra trás.
Você não quer isso, acredite.
Eu não sei o que acontece quando fica tão fundo que a gente perde o chão... suponho que a gente deva se esforçar ainda mais! - e puxa! a gente não consegue nem imaginar o que é isso!
Mas eu acho que é assim que é.
Tem gente, eu vi, treinando no raso e ergue as pernas e boia e chora com medo de morrer afogado.
Engraçado né?
Acho que eu também já fiz isso, quando não sabia que dava pra ficar mais fundo.
Agora eu sei... e sabe uma coisa?
Saber não serve pra nada, porque eu continuo às vezes agindo como se esse negócio duro sob meus pés fosse tudo menos chão.
Você também, ou pensa que eu não vi?
E, se quer saber meu palpite,  acho que quando a gente perder ele de verdade aí sim gente vai aprender como é que se nada e aí nossos braços e pernas vão ser mais fortes que qualquer tsunami.

20.3.11

O Jantar está esperando por você

Colocava primeiro a toalha branquíssima e com cuidado posicionava os pratos e talheres e guardanapos.
Daí acendia muitas, muitíssimas velas perfumadas, e só então trazia as flores.
Lindas.
Olhava pra elas e pensava...
Pensava bastante que era uma grande pena que elas nunca resistiam a noite inteira... pena é que a lua se alimentava da vitalidade delas (!)... pena é que logo logo só restariam os espinhos de pé.
E era aí que as pétalas derramadas na mesa iriam começar a manchar o branco (tão cuidadosamente escolhido) de todas as cores intrometidas e vulgares que misturadas não passavam de um belo borrão tom de merda.
Mas felizmente também em breve se esgotaria a parafina das velas e antes que você chegasse meus fracassos se tornariam irreconhecíveis, e então finalmente quando isso acontecesse tudo já teria sido tragado pela escuridão e já não haveria mais nada a ser visto... nem o bom e nem o ruim.
E nem eu.
Por isso (ou por descaso?) você então passaria direto por nós - eu e meu carinho e minhas expectativas - e capotaria no sofá encardido num pulo só.

[E quem me dera eu pudesse realmente conjugar tudo isso somente no futuro do pretérito.]

Sobre suas frustrações

Me preocupo quando você não chama as coisas pelo nome que elas têm.
Porque eu mesma só faço isso quando simplesmente não posso aceitar a condição real delas na minha vida.
E aí você faz comparações esdrúxulas, você tem o seu padrão.
E me preocupa, porque o seu padrão não faz sentido, me preocupa porque meus próprios padrões sem sentido são meus ideais mais românticos disfarçados de obviedade.
E me preocupa, confesso, porque esse seu padrão aparentemente me transcende.

19.3.11

Sobre os decepcionados

Tem um pedacinho de lagoa perto da sua casa onde você costumava brincar.
É nesse pedacinho de lagoa, tão pequeno que só cabe você, que você construiu seus melhores sonhos.
E talvez porque só coubesse você é que você fez isso, se coubessem outros, os sonhos teriam que ser a dois ou três e você nunca achou que algo assim fosse dar certo.
["Quem além de mim sonharia com um céu desse jeito que eu sonho e com um mar desse jeito que eu sonho?"]
Esse pedacinho era curto, mas era fundo o bastante para te encharcar.
Você ficava com o nariz para fora, só enquanto não havia aprendido a ser peixe ainda - algo em que você estava trabalhando desde o verão passado.
["E aí o meu céu do jeito que é e o meu mar do jeito que é vão ser pra sempre do jeito que eu sonhar que eles sejam."]
Você achou que você soubesse tudo sobre seu pedacinho de lagoa, aquele tudo que você sabia que jamais iria conseguir saber sobre nada mais.
Tudo era tão grande, tudo tanto te transcendia não é mesmo?
Quando você tropeçou no pedacinho de lagoa você achou que havia encontrado algo com o que pudesse lidar.
Só que daí um dia você se atirou lá dentro e ele, naquele dia, talvez por causa da chuva, era mais fundo do que você achava que fosse.
E você não se afogou, antes tivesse sido isso...
Você escapou de lá, sem nenhum arranhão.
Mas seu céu do seu jeito morreu, e da mesma forma o mar que você criou.
["..."]

No dia seguinte era você em algum outro canto do quintal fazendo o funeral daquele pedaço do seu coração que acreditava que dava sim pra se conectar com algo além da própria pele.

18.3.11

What if the storm comes from the boat?

Parece difícil lidar com vento e chuva e lidar com ondas gigantes quando elas atingem a nossa modesta embarcação.
Mas isso passa.
A gente gira o leme e espera.
A gente tapa os furos no casco e se esconde por uns dias.
Difícil mesmo, eu sei, é conseguir salvar teu barco das próprias trovoadas.

16.3.11

Sobre meninos e meninas

E daí ele o mantinha estrangulado entre os dedos (que se diziam) fortes, o mais alto que sua altura de menino nem lá nem cá permitia.
E daí ela com um dos braços esticado ao máximo, nas pontas dos pés, tentando reaver - sem sucesso - seu coração.
O outro braço era mantido junto ao rombo do peito, pra não deixar que ele visse nem por um segundo sequer como é que era alí dentro.

15.3.11

Sobre desprezo

Contei todos os meus segredos pro mar, porque vi ele me dando de presente tantas conchas e tanta sorte de artefatos de suas profundezas e quis retribuir com algo das minhas.
Mas aí era ele recuando estrategicamente para melhor me atingir em ondas e me fazer engolir verso por verso, goela abaixo com aquele tanto de sal lacrimejado que ele fez questão de recusar.

13.3.11

Sobre moldes (e hipocrisia)

Eu A menina nunca gostou de como remexiam na alma no jeito dela.
Mudavam de opinião blusa, passavam varias camadas de esquecimento batom, mandavam manter a boca fechada o pescoço esticado.
E ia a menina com o coração na mão os livros na cabeça tentando aprender como é que se faz pra  fazer os outros felizes ser feliz também.

Sobre quando a gente amanhece pensando que hoje ainda é ontem

Três quarteirões cidade abaixo e a vista era espetacular.
Meu passo apressado corria atrás de alguma pista, do tipo de pista que a gente não faz a menor idéia se está nas pequenas ou nas grandes coisas.
Daí ia eu girando a cabeça e olhando pro alto e olhando pro chão, ora perguntando ao sol, ora perguntando pruma fomiguinha apressada: Você viu pra onde é foi o último bloco de carnaval?
Cadê o meu bloco de carnaval?
Eu não sei pra onde é que foi!
Eu nem sei como é que ele é, só sei que ele é assim... meio assim.
Aí eu mexia as mãos numas contorções disparatadas e daí a formiga ia embora e o sol também ia se pondo antecipadamente atrás da primeira nuvem que passou mais devagarzinho.
E aí eu ficava sozinha, numa rua superlotada de outras gentes, mas sozinha.
E os pombos sacanas não paravam de grasnar que eu perdi meu bloco, que eu perdi meu bonde, que eu fiquei a ver navios.
E serpentina pelo chão e confete no alto dos telhados e vozes por todos os lados... mas sem sinal de música.
Cadê meu bloco?
Eu não sei pra onde é que foi!
Eu só sei que era pra eu ter ido junto.
E BAM, era eu trombando numa placa improvisada especialmente para mim (todos nós que somos "mims" perdidos por aí) e que dizia que a festa acabou, que não tem mais espuma, que não tem mais batuque, que não tem mais dança, que não tem mais carnaval.
Que isso tudo daí foi ontem, quando também me foi deixado o rastro de miolinho de pão pra eu chegar lá onde devia...
Mas vinte e quatro horas e vários minutos é tempo demais, tempo que dá de sobra pros pardais encherem a pança e limparem a rua pra nós enquanto eu continuava dormindo.

12.3.11

Sobre movimento e inércia

Me mantive no vai e vem, deitada com o rosto afundado em céu já quase anoitecido, e daí eu via os galhos contorcidos de árvores várias que se misturavam as copas, que se intrometiam umas nas outras, e daí eu olhava e sentia elas como sinto a gente quando fica de mãos dadas.
Entrelaço no alto e eu por um instante sem aquelas cordas todas que cismam em brincar de namorar comigo...
E daí o céu picotado ia iniciando sem pedir licença o sutil borbulhar de estrelas aqui e alí, erupções macias de cada um dos pontos cruciais deixados de brinde para as minhas idéias descobrirem os desenhos escondidos das constelações.
E eu ia e eu vinha e eu ia e eu vinha e assim se mexiam as ursas e os cães e os signos, como se valseassem ao comando da minha batuta.
Eu só precisei dar o impulso inicial, e gravidade fez o resto pra mim.
A gravidade fez o resto pra nós, porque eu esqueci tudo aquilo que doía e só ficou uma danada de uma boa sensação de que pra ir pra sempre, navegando entre os lânguidos galhos e os milhares de portos seguros iluminados no céu, minha única tarefa verdadeira se baseava simplesmente em dar cabo do artrito.


Sobre arrogância e etc

A gente continua resumindo tudo a duas polegadas adiante do nariz.
O que vai além disso é mar desconhecido, que a gente também continua (a gente nunca cansa...) tentando agir como se soubesse bem.
Mas o mar desconhecido provoca ondas inesperadas e aí a gente sofre um solavanco em cada uma das veias e se pergunta todas as coisas sem saber bem o que seriam essas "todas as coisas".
No fim fica de sobra um sozinho "????" que nem mesmo sabe se existe ou não.
?
?
?
...
.... ?
Daí a gente duvida se duvida mesmo, porque a certeza da dúvida já é uma grande certeza por si só e se a gente vira pro mar e grita a plenos pulmões algo como "tudo bem, você aí, admito sua superioridade, admito que meus olhos me enganam a seu respeito a todo instante e admito que minha mente nada detém sobre as tais das suas profundezas!" ele, certamente, cuspirá aos nossos pés escrevendo na areia com tinta invisível que confessar ignorância é a maior das arrogâncias que uns estúpidos feito nós poderíamos ter feito.
Sem resposta para dar, a gente volta as costas pro imenso azul marinho espumante e a única coisa que acontece a partir daí é nosso coração pulsando desenfreadamente:
?
??
?
??
?
??
?
??

8.3.11

Sobre sobrecarga

Daí se contorcem as entranhas e sopra um vento geladíssimo na nuca.
Você olha pra cima e é o céu todo manchado e não é nem nuvem e não é nem sol, e você daí não sabe se sente frio ou se sente calor.
Você põe o casaco nas costas, mas deixa o peito nu.
Seus olhos lacrimejam feio, e é por causa da tempestade de fora ou por causa da tempestade de dentro?
Você não consegue descobrir de onde vêm e nem pra onde se vão os pingos daquilo que você acha que pode ser que seja uma chuva.
Os outros todos gesticulam alto, com as testas suspensas e as veias do pescoço latejantes como você nunca viu e você não sabe se todo o alvoroço é porque estão zangados ou se é porque eles são assim mesmo.
Você se sente diferente.
Você é diferente deles e é diferente de você mesmo.
Putz grila! Você achava que se sabia... pelo menos um pedacinho.
Mas da forma como as coisas andam acontecendo você não sabe o que pensar, não sabe o que sentir e é por isso mesmo que nada faz e é por isso mesmo que tua expressão não muda e tuas veias não saltam como a deles.
Porque teu corpo não reage aos teus pensamentos...e isso porque teus pensamentos são picotados demais para que a gente possa chamar eles realmente de "pensamentos".
Daí o corpo não entende, colapsa.
E é esse você colapsado que agora se mantém numa "pode ser que seja uma chuva" e espera enferrujar.

7.3.11

Sobre eclipses e ciúmes

Semicerrava-os ao Sol, como se não houvesse nenhuma outra direção a voltá-los que não fosse essa.
Eu, por minha vez, desviava... como se houvessem todas, menos aquela.
Daí franzia as sobrancelhas e as deixava bem justas, severas, e eu olhava curiosa pra saber se a bronca era comigo.
Nunca disse nada em momentos como aquele, e mesmo se dissesse eu não iria entender com esses ouvidos que só ouvem o que querem, daí a gente deixaria pra lá.
Talvez fosse por isso mesmo que ficasse de boca trancada, pra evitar tumulto e pronto.
Daí era uma angústia completamente descabida que me acertava como um tapa na cara, e me dizia soletrando devagar que desviar palavras é muito fácil para quem é mestre em desviar olhares.
E aí eu olhava e olhava de novo e o olhar que eu queria como nada mais nesse universo era pro Sol.
Cegante Sol, eu te invejei algumas várias vezes e muito mais ainda...
Se doía olhar pra Estrela, tenho certeza que culpava a si e não a ela:  seu corpo imperfeito, sua fragilidade. Mas aí, se doía olhar pra mim (e doía mesmo), era por conta dos meus pedaços faltantes, que eu sei.
Era com isso em mente que eu olhava dos meus joelhos pro riacho cheio de luz refletida lá de cima e pensava comigo mesma que em próximas vidas terei de nascer Lua se quiser me por entre o meu amor e seu maldito farol.

6.3.11

Sobre estratégia

Deixa quieto que uma hora volta.
Se na hora não sai uma palavra sequer é porque é melhor calar. E pronto.
E se na hora as mão se enrijecem e todos os movimentos que podem fazer são patéticas contorções sem sentido, é porque é melhor mantê-las no bolso.. (só até aquecê-las um pouquinho, pelo menos.)
E daí, se na hora os olhos não souberem olhar pra frente, não adianta mirar até dar vesguice porque não é assim que se faz, não é assim que vale a pena ver o mundo.
Deixa quieto, que uma hora eles vão querer olhar e vão saber ver nas cores certas.

E a janela tem dias que não abre... emperrada, sufocada, empoeirada, trancada a cadeado.
Daí você se sente passarinho engaiolado?
Eu também me sentiria...
Mas tem dias que as asas se resguardam, tem dias que seu corpo não sabe mais usá-las.
E aí?
Deixa quieto, passarinho... deixa quieto que uma hora volta.

Tem dias que as nuvens cobrem o sol e não cedem a vez... aí não adianta soprar!
Não adianta perder o fôlego, não adianta se virar do avesso... (e se adiantasse, valeria a pena?)
Deixa quieto que amanhã faz sol...
Se amanhã não faz sol, depois de amanhã faz.
E se não for assim, não esquenta que logo logo janeiro está aí de novo.

E se a Terra parar de girar não adianta girar você até cair tonto no chão.
Já fiz isso tantas vezes, que era pra ver se ela girava mais rápido pra eu crescer logo de uma vez, e só me fez precisar de gente segurando meus braços pra eu poder levantar.
Deixa quieto que não é assim que se faz.

Se as palavras não vêm, escuta.
Se o corpo não age, sente.
E a verdade é que sempre tem alguém pra dar um abraço sem pedir outro em troca...
Deixa quieto se não puder dar, deixa quieto que abraço hesitado é pior que nenhum.

Deixa quieto passarinho, que às vezes a janela fechou que é pra te proteger do vendaval.

5.3.11

Sobre o Moço e a Moça VIII (e finais de contos de fadas)

O Moço nunca parou pra pensar na Lua.
Se ele tivesse, uma vezinha qualquer que fosse, olhado para cima, ele veria seu próprio reflexo e entenderia que o tempo todo a Moça esteve observando atentamente cada mexer de mãos dele, e cada piscada inconsciente.
E se o Moço quiser um dia saber por que é que ela nunca deu uma piruetinha de nada, de uns sessenta ou setenta graus mais pa cá ou mais pra lá para poder haver o cara-a-cara, eu aposto minha alma que a resposta seria essa daqui:
A Moça olha pela Lua porque tem medo que o Moço só tenha se apaixonado pela metade que conhece e que se conhecesse todo o resto bem que poderia ser que percebesse que a Moça não é nada daquilo, que a Moça é outra coisa... outra coisa que ele não gosta.
Daí por enquanto ficam assim, os dois se encarando pela Lua até que esta se evapore para dar lugar ao Sol (tão opaco) e daí a saudade obrigue um ou outro a dar o primeiro passo.

Não é inveja

É que às vezes olhava por trás das saias floridas da avó e via as meninas, também de nove anos (mas tão mais crescidas...), que iam desfilando pela calçada com suas franjinhas impecavelmente bagunçadas pelo vento gente boa e seus vestidos de cores várias, de cores que as saias floridas da avó nunca sonharam em ter.
Daí batia um "aiaiai!" tão fundo no coração, de querer ter também as pastas de bonequinha e os cadernos caprichados... e quando a avó dava a pasta de bonequinha era legal só na hora e depois já não era mais a mesma coisa e que frustração!!
E os cadernos nunca que conseguiu deixar limpinhos por mais que uma semana.
E depois era a professora puxando pela orelha, e doía que só vendo.
Menina sujinha, escondida atrás da saia da avó ficava vendo escondidinha as tais das outras e suas pastas e seus cadernos e suas franjinhas e seus sorrisos tão largos e sinceros (desses que nunca conseguiu dar), e tudo o que queria era também fazer parte de tudo isso que é tão mágico... sem tropeços, sem gaguejos, sem hematomas de moleque nas perninhas finas... com os cadernos caprichados.

Sobre a terra onde crescem as disparatadas ervas daninhas

De pé pelado rente ao chão, eles sabiam que era só rente... que nunca encosta, que nunca se apoia, que nunca pisa.
Eles caminhavam de dois em dois.
Seguindo uma trilha inventada na hora prumavam para o sul onde, dizem, há fartura e há respostas.
E afinal de contas é pra lá que todo mundo ruma, a questão é que alguns acham que é no sul, outros acham que é no norte (e outros no leste, e outros no oeste, sudoeste, sudeste, nordeste, noroeste, centro-oeste... quê mais?).
Essa terrinha aqui no centro é cheia demais de ervas daninhas demais e bichinhos mordedores esfomeados e é por isso que ninguém quer pisar no chão.
Flutuam-se todos por aí suspensos, como nos desenhos, pelos narizes arrebitados cheiradores de sabe-se lá deus o que.
E ninguém nunca que chegou numa terra, seja em qual pétala da rosa dos ventos fosse, que não tivesse as tais das disparatadas ervas daninhas donas de tudo.
Às vezes tem grama fresca, às vezes tem mosquitinho...
Mas sempre tem também as danadas daninhas por tudo quanto for lado, e os tais caminhantes, se frescos forem para sempre, para sempre hão de viver com os pés cansados flutuantes sem saber do gosto (agridoce) de chão firme.

4.3.11

Sobre filmes de terror

Não temo os mortos-vivos tanto quanto temo os vivos-mortos.

3.3.11

Sobre os leitores de nós e seus diagnósticos tendenciosos

Fiquei deitava imóvel por várias horas enquanto os tais brincavam de escanear a minha alma, com seus óculos na pontinha do nariz e suas máquinas turbulentas, injetando situações controversas em minhas veias e troncos de árvores inteiros entre meus dentes para sei lá fazer o que.
Na hora nem doeu...  só quando saiu o resultado é que o mundo pode ouvir o meu "ai!".
Não cabe aqui transcrever o diagnóstico, mas, se alguem se interessar, basta procurar meu nome no google.

1.3.11

Sobre discussões domésticas

"Aqui não cabe o que eu realmente tenho pra dizer."
Dizia um, enquanto tentava pendurar na testa do outro uma placa de aço com meia dúzia de instruções grosseiras.
"E aqui não cabe (mais) o que eu realmente tenho pra sentir."
Dizia o tal do outro, enquanto se agachava no tapete segurando um coração totalmente esfolado em uma mão e uma lupa bem gorda na outra que era pra ver se descobria onde é que tinha perdido o restante.

Sobre becos sem saída

Dirão que é tudo sobre momento.
E o momento se escoa a cada levantar de pés para o passo a frente, e aí acaba, simplesmente, e o que a gente pensa que é o presente é na verdade apenas o gosto que restou num canto de boca.
Tem boca que sustém.
Se poupa, delicada, percorre espaços calados em si mesma buscando um restinho, por menor que seja, daquilo que já se evaporou faz tempo.
E o que é que é tempo mesmo a gente nem sabe.
Tem tempo que é presente, o tempo todo, e a gente tenta sair dele mas ele é persistente demais e quando a gente vai ver a gente foi embora junto num pulo só... tem tempo que é ausente, tipo aquele no futuro que a gente espera nas pontas dos pés na sacada e ele nunca que desponta no horizonte.
E o horizonte sempre a várias milhas de distância.
A gente corre gritando pra ele esperar que a gente já tá chegando, mas ele nem escuta (e eu prefiro pensar que ele é surdo do que que ele não me quer por perto).
E taria tudo bem se dentro da gente a primavera não se tornasse necessariamente ou ausente, só lembrança inconformada, ou gasta demais para que a gente possa continuar sentido cheiro de flor.