29.3.10

A Grama do Vizinho

Um dia, de brincadeirinha, coloquei um espelho de face dupla no meio do riacho que dividia as duas cidades mais invejosas da região.
Os infelizes da esquerda olhavam os infelizes da direita com enorme inveja.
Os da direita, olhavam os da esquerda da mesma forma.
O dia em que alguém descobriu que andavam invejando a eles mesmos, tudo mudou!
...
Agora, além de invejarem com intensidade dobrada, ainda gastavam os dias sonhando acordados com as maravilhas que poderiam haver do outro lado do rio, por trás do espelho.

Sobre aqueles que vivem nas baias

Criou seus cavalos e burros e vacas e cabras todos da mesma forma.
Todos comiam do mesmo pasto, todos bebiam da mesma lama água, todos viviam no mesmo celeiro. Em baias iguais.
Vieram e se foram muitas cabras e burros e vacas e cavalos e a comida e a bebida e as baias e os castigos sempre foram os mesmos.
Os rebanhos se renovam, mas o pastor é o mesmo e os mesmos são seus métodos.
E não há grandes novidades em nada disso.
Mas um dia morre o pulmão, traído pelo cachimbo amigo, e leva com ele o coração, sufocando-o sem piedade.
Sendo assim ou de outro modo, de doença ou de idade, um dia morre o corpo do homem.
E quando morreu o corpo do homem e seu chicote, morreu a ordem, morreu o grito e a intolerância, morreu a lei, o abate desnecessário, o castigo justificável.
Mas viveram os cavalos, na terra sem Rei. Viveram as vacas, cabras e burros, viveu o trinco e a fechadura, o claustro da baia lacrada, a obediência e a ferradura, a reverência ao grande nada e a submissão.
E sobra, para quem olha do alto, a grande questão:
Em um dia morreu o corpo do homem.
Quanto tempo para que morra o seu rastro fedido?
Quem liberta os cavalos (e vacas e cabras e burros) poderia até dizer-lhes em sua língua - com mugidos e relinchos, balidos e zurros - que não há mais limite; mas se existe algo mais assustador que o limitado, este algo se chama 'ilimitado', porque se se treme com a pequenez do mundo, se revira do avesso quando se contempla o incontemplável do espaço sem fundo nem fundamento.
E o novo homem que veio e achou que mudou tudo, mudou só a poeira de lugar, tirou um pouco do excremento.
A liberdade foi quem não veio. Não veio o vento do norte, não veio a boa sorte, sol forte e os bichos e quimeras de que só se ouviu falar.
O passo à frente não veio. O trote ficou estacionado na hipótese.
Não veio mais para perto o horizonte, porque mesmo sem sela e sem cabresto, mesmo sem rédeas, mesmo se a estrada é reta e o motor ruge, existe freio.
Primeiro era o freio de quem sente medo do açoite, mas, se o açoite se vai, basta umas voltas no relógio, quantas forem, para que se vá o resto numa noite qualquer.
Só que depois que o resto se vai sobre espaço para vir o comodismo e este nem tempo resolve.
Aqueles muitos que ainda vivem nas baias o fazem porque a palha é certa, do lado de dentro não chove e é mais fácil "chegar lá" se se pensa que sabe onde está o fim do caminho.
E assim é que [quase todos] os cavalos, vacas, cabras e burros existem por todos os cantos: com o mesmo desgosto pasto, a mesma ignorância água, o mesmo conformismo celeiro.
Em baias iguais e a vitória a dois centímetros do focinho.

27.3.10

Todo estrago será trago do mar.

O verbo é "tragar".
Se o verbo fosse "trazer", eu não poderia mais buscar meu consolo nas ondas.
Pior ainda: se o verbo fosse "trazer", eu teria conjugado errado.

26.3.10

Perder o corte

Pior do que ser Queijo Suiço é ser Faca Cega, que bate no mesmo ponto sabendo que de nada serve e bate com toda a força que tem só pra fingir que ainda sabe o que faz, só pra não deixar a vítima sair impune da desgraça que é para a faca ser despropositada, só pra não deixar que outra faca o faça como se deve e desmascare a vida vazia da faca que nem sabe mais se faca ainda é.

Seleção Social Artificial

Vejo as pessoas que tanto esperam que borboletas se libertem do casulo e, ao mesmo tempo, tanto esperam que as lesmas continuem quietinhas na concha.

Dou um tostão pra quem me der uma justificativa moralmente razoável.

Cênica

Quem me dera saber onde é que acabam os bastidores.
Eu me vejo ainda vezes e vezes procurando uma frestinha por entre as muitas cabeças que passam para cá e para lá como se tivessem de fato algo a fazer.
Eu não sei o que elas fazem, só sei que lhes falta algo, tanto quanto a mim. Nós não sabemos onde terminam os bastidores... se nós soubessemos onde terminam os bastidores nós saberíamos o que, do todo, nos cabe. Saberíamos onde terminamos - ou onde fica o novo começo.

Eu gostaria, além disso, de poder descobrir exatamente o que é que separa o palco e a platéia... mas assim, de longe (tão longe que acho que inventei!), eu não sei. Só sei que também não o sabem o sonoplasta, que coloca a música tão alta (tão além da conta...), e o técnico de iluminação e seus holofotes voltados para si.

Acho mesmo é que eles não querem saber...
Eu quero. E por isso que já tanto gastei de mim perguntando por aí.
Mas as coisas não falam. Não podem gritar para mim o que lhes distingue. ["Tablado diz para Cortina: Bom dia, bela senhora! Posicione-se à minha esquerda, por favor."]
As pessoas, que têm boca e falam, falam muito mas não dizem e não dizem porque não ouvem e se não ouvem não respondem. E eu, mimada, só quero ouvir as respostas e nada mais.
Fico eu assim, por isso, perdida entre o concreto mudo e a carne de palavras inúteis.

Se desisto de perguntar, é só para ver se descubro a resposta com os olhos.
Mas que perda de tempo...
Sequer posso saber qual é a diferença entre os atores do palco e os atores das cadeiras voltadas para nós. Eu olho e re-olho até me cegar, mas não percebo tal sutileza.
Quem sabe se não baixassem todos as máscaras?

Existe tanto que me escapa sobre o teatro e tudo o mais... acho, na verdade, que tudo - exceto o espacinho escuro em que estou - me é transcendente e por isso que, tão forte, me desperta o 'querer'.
Eu quero tudo, mas só de gula.
Juro que ficaria satisfeita se alguém me contasse simplesmente o que eu estou fazendo aqui e porque não tenho uma cópia do roteiro.

22.3.10

Jardinagem

Se sentar ao lado do jardim para esperar as sementes de sonhos darem frutos, corre o risco de perder a vida esperando.
Se, com normalidade, for tentar viver a vida, corre o risco de esquecer que um dia plantou com as próprias mãos os sonhos no quintal.
E que pena que seria perdê-los de vista.

Se quer um palpite, tente Bonsai da próxima vez.

21.3.10

Queixa

Ninguem me ensinou a existir.

-Seu segundo dedo do pé é maior que os outros...
-Sim.
-Isso significa que você é autoritária.
-Eu não sou autoritária!
...
E pára de olhar para o meu pé!

Ao entardecer, antes da tempestade.

Que curioso é o céu azul-cinzento e as nuvens mal-encaradas que se intercalam com umas poucas estrelas; dessas que, em sua enorme ousadia, deram as caras antes da hora para ver o que se passa.
Que curiosas, as montanhas e as árvores... perdendo tudo o que as torna visualmente reconhecíveis - cor, sombras, formas, matéria - e se transformando em um só ser, um só monstro que, com escuridão, interrompe a luminosidade do céu e se lança de um lado para o outro com o vento frio.
O vento frio, que balança também os cabelos e as migalhas e me obriga a engolir mais ar do que preciso, é rápido e traz algumas gotas de sabe-se lá onde, como um bom amigo que delicadamente sugere um guarda-chuva.
Na ausência do guarda-chuva ele se torna o cruel zombador.
Mas de certo zomba sozinho, pois quem há de pensar no vento - causa invisível - quando as consequências tão visivelmente explodem aos pouquinhos em todos os cantos e desmascaram o Gran Finale das dezessete horas?
Dezoito horas e o primeiro raio. Curioso... É por ele, só por ele, que se apagam as estrelas... ou simplesmente se tornam desinteressantes demais para que as percebamos.
Tudo ao redor então se torna uma grande arena, a disputa de poderes entre raios e ventos. Os raios trazem o som e os ventos trazem então a chuva bruta que nunca vai deixar de ser notada.
Quando abrem-se enfim as cortinas para o show eu já não acho nada mais curioso, já não tenho mais qualquer interesse pelo palco.
Me deito, nessa hora, no escuro do quarto, para recordar com carinho o entardecer antes da tempestade: o único momento do dia em que sei que os sons do seu mundo estão em concordância com os sons do meu.

19.3.10

Estudar o roteiro

AZULAMARELOVERDELIMÃOVIOLETADOURADOVERMELHOROSACHEGUEI.


Cores.
Só para não duvidarem da minha capacidade de ser feliz.
Se quiserem, posso ir buscar os fogos de artifício.

Querida, isto é o que você nunca vai ser.

Quando eu nasci me apresentaram ao mundo maravilhoso dos elásticos... e assim, ainda fascinada, é difícil para que eu hoje me conforme em ser barbante.

Prós e Contras

Cada decepção [quase sempre comigo mesma] se transforma numa bolha na sola deste pobre pé cansado.
É por isso que ficou fácil pra que eu ande sobre o fogo.
É por isso que ficou difícil pra que eu mantenha os pés no chão.

Desencaixe

Que triste é a vida da pecinha de Playmobil esquecida na latinha de Legos...

18.3.10

Eu por vezes pego uma flor da rua e coloco na minha mesa.
Ela fica bem, sem água nem nada, por alguns dias.
Quando ela já está encolhida e escurecida no cantinho eu resolvo ver se ela ainda vive.
Mas como afinal a gente pode saber que uma flor morreu?
Quando é que a "alma" dela se vai? Quando é que, de um organismo dotado de funções, ela passa a ser apenas matéria?
Deveria, eu penso inconformada, ter como medir suas pulsações!
Então eu poderia dar o atestado de óbito, organizar o funeral e entoar algumas muito hipócritas orações (não que eu não goste de flores, não gosto é de orações!).
Mas não há como saber, por mais que eu me esforce em descobrir.
A flor apodrece devagar, o fungo toma seu miolo e o cheiro fúnebre paira ao lado de minha cama.
Não obstante a colônia se formando silenciosa, a cor das pétalas e caule permanece e, em alguns casos, se torna ainda mais poderosa.
Estando alí prova irrefutável de sua "presença", me pego pensando que eu jamais poderia deixar de ver vida em sua estrutura frágil e macia, ainda que decomposta.
E ainda, não posso conceber que tenha deixado de haver vida abruptamente quando o processo de decomposição é tão flúido - sem começo, nem fim.
Então quem sabe devo entender que não existe essa hora? Quem sabe não existe um ponto onde se esvai a vida? Mas, se a vida não se esvai, me vejo num beco que, se não sem saída, é bastante apertado.
Ora, ou a flor nunca teve de fato vida (o que sabemos que não é verdade, diante de tantas provas como, por exemplo, a fotossíntese),ou a vida da flor persiste independentemente do que aconteça com o corpo.
Se isso acontece de fato, acontece com todas as flores e sempre e em todos os lugares.
Pensando assim, me sentiria estranha sentada aqui onde estou - um enorme depósito de vida vegetal invisível.

Mas, sabe, eu sequer acredito em alma humana.
É por isso que a flor sempre vira adubo quando o fungo aparece e eu, delicada mas firmemente, a deposito sem arrependimento no pé do pinheiro do quintal.

15.3.10

Nossa psiquê é nosso rabo de pavão.

Decadente?
Eu acho romântico.

14.3.10

Só para me justificar.

Existem duas razões para calar: Não ter nada a dizer ou ter tanto a dizer que imediatamente se reconhece o fracasso que seriam as palavras.
É por isso e por aquilo que eu ando meio muda.

Dúvida matutina

Sonhei a respeito de um medo antigo.
E o medo foi meu companheiro por toda a madrugada, mas quando já era dia não havia mais resquício algum dele, e até mesmo achei graça.
A minha pergunta agora é: O medo real é o que a gente sonha ou o que a gente vive?
E mais, a gente é mais a gente no mundo que criaram para nós ou no mundo que nós mesmos criamos?

13.3.10

Meus olhos criaram o mundo que vejo.

Qual é, enfim, a diferença entre a moça no alto da escada e o moço no pé da escada? A diferença é que a moça existe. Está lá de fato e sabe SER. A moça, que É tanto e É sempre - por cada segundo que se passa, ela É -, não vê (porque não há tempo) que o preço da existência plena, de viver, é deixar que lhe escape a inexistência.
Não existe o ontem, nem existe amanhã.
E é por isso também que não existe para a moça, o moço - a quem ela nunca viu.
E o moço assim inexiste por completo; porque não faz parte do mundo da moça que é, ainda, o único mundo em que ele sabe (e quer) viver.
Um dia o moço descobre que a moça também só "está lá de fato" porque há quem a contemple: ele.

9.3.10

Grande descoberta

O Presente faz mais sentido agora que desembrulhei. Primeira vez que uso, desde o Natal de 1989.

Deveria vir com manual de instruções.

Yeah! Eu faço parte!

Se tiver medo, é fácil: respire e conte até dez.

Era o que sempre me dizia eu mesma quando olhava pra frente (durante giro de 360 graus) e via (via o que? via tudo!).
O por quê dos números eu já bem entendi, fácil, fácil: é o por quê do respirar, já que a gente só conta pra prestar atenção e não esquecer de inspirar e não esquecer de vomitar o ar devagarzinho pelas narinas obedientes.
Então assim juntei tudo numa só questão: Por que que eu (só eu?) respiro tanto quando me acerta o pavor com uma cacetada na cabeça?
Respiro que é pro corpo funcionar? Mas isso ele faria eu querendo ou não - as vezes peço pra ele me dar uma trégua, tirar umas férias, mas dou com burros n'água!
Vai ver então que a gente não conta pra não esquecer de respirar; vai ver que a gente conta pra não esquecer que respira e, de fato, que baita alívio é saber disso... não pra se sentir vivo (mesmo porque tenho a grande impressão que respiram também os quadros da parede e o copo e o violão), nem pra que corra o oxigênio pelas veias, pois química é o de menos quando se pensa na importância da física do ar que entra e que sai e que leva e que trás e conecta nossa cápsula insignificante ao Todo deverasmente significativo.
E da próxima vez que me perguntarem o que faço parada sozinha respondo que não estou sozinha, estou trocando experiências com o Grande Cosmos.