29.2.12

Capra

A gente achou um lado da Terra que era inclinado demais.
Disseram pra gente que era uma montanha e que estava ali que era pra gente aprender a fazer curvas.
Mas a gente não caiu nessa. A gente achou que montanha era objeto que ensinava a subir, a ficar mais alto, a ficar mais perto das nuvens. Talvez coletar umas estrelas...
A gente pôs um pé na frente do outro, com as línguas para fora ofegantes como uns desgraçados cães.
A gente passou umas noites (todas elas) à céu aberto, vendo os sinais de fumaça dos índios e os chineses que tentavam construir uma muralha mais alta que nossa montanha.
A gente aprendeu código morse, porque a gente não falava o mesmo idioma.
Mas daí eu batia no seu peito como quem bate à porta do céu, e você nem sempre abriu.
Acho que nossas escolas usavam livros diferentes afinal de contas.

Às vezes quem sobe montanha acaba achando que é mais rápido subir de costas.
Eu te via cheio de si, tropicando morro a cima com os calcanhares cheios de bolhas.
Ainda não sei se você tinha medo do que vinha pela frente ou se é só o tipo de cara que faz as coisas por fazer mesmo... assim, porque deu vontade.

Hoje a gente chegou num patamar reto e tudo o que tem adiante é um paredão vertical.
Não há como fazer curvas tão alto assim...
Agora ou a gente sobe, mesmo correndo o risco de cair feio, ou a gente desiste e deixa as estrelas por aí pra próxima dupla coletar.
O sol desce estreito pela janela da varanda e um pardal esganado teima em me fazer rir com o jeito que anda (me faz lembrar de alguém... talvez seja eu).
Sou menina obediente, quero dar pro universo uma resposta a pergunta que ele me fez.
Ele me perguntou o que que eu faço se me tirarem mais uma lasca, dessas lascas minhas que se espalham pelo chão feito planta no outono - só que, putz!, meu outono dura o ano todo!
E eu estive pensando.. eu realmente estive. Eu deitei minha carcaça na soleira dura, feito roupa úmida que o vento deixou cair do varal, e pensei mesmo, pensei sério. Queria formular a frase que matasse a charada. Que que eu faço se me espedaçar mais uma vez? Que que sobra?
Só que aí o pardal me fez rir.
E é que no fundo não existe seriedade. Cada vez que a gente abre a boca pra falar um "A" isso já é quase um sorriso, se você quiser pensar por esse ângulo.
Acho que (de novo), pelo menos até o sol se pôr, o universo continua sem resposta.

27.2.12

O problema com quem viveu sob o edredom por toda a vida é que não aprende a diferenciar foguete de meteoro.
Nem tudo o que voa alto vai pra cima. E pra ser realista a maioria está em bruta queda e a gente não percebe porque somos uns pobres coitados deslumbrados.... É isso que a gente é, a gente, os da cabana de cobertor...
Me disseram que eu não tinha mais idade pra juntar cadeira e jogar o lençol, me disseram que casa de gente grande a gente faz com ferro e pedra.
Tentei pegar as pedras mas elas voaram na minha direção feito bombas e as que minhas mãos puderam deter acabaram se esfarelando.
Finquei minhas fundações de aço no solo firme mas o solo firme era um belo de um pântano e agora tudo o que eu juntei não é mais nada além de lixo enterrado no piche.
Tentei ser como eles, eu quis aprender a andar à largos passos, a vestir o traje certo.
E eles podem até entender de trajes mas não sabem nada sobre casas e fundamentos, eles só sabem a superfície, eles não entendem a base.
Sou uma pessoa suja, não nego.
Não tenho graça, não tenho sal, meu super-poder é a camuflagem.
Facilmente posso desaparecer, só é preciso me jogar em uma sala com mais de 3 pessoas.
Eu tentei seguir o manual, pus meus óculos escuros e arranquei fora o pano das cadeiras. Coloquei uma mesa de sinuca no lugar da minha cabana.
(Não sei jogar sinuca.)
Subi no foguete, acenando pro mundo trouxa que ficava pra trás, só que o foguete era uma pedra bruta rumando ao chão.
Me sinto nua, me sinto envergonhada e me sinto embaraçada.
Meu cabelo é uma peruca de nós, tenho vergonha dos meus dentes.
Não sou nada, nunca serei nada e não quero que me descubram...
Não quero que me vejam, quero enterrar minha cabeça no chão de areia e só voltar quando não houver mais nada que tenha olhos e ouvidos para me ver e me ouvir.
Quero reconstruir minha cabana e não voltar mais.
Não acredito mais em manual e não acredito - acho - mais em nada.
Só acredito na minha cabana, na minha armadura à prova de balas e na solidão de quem se esconde debaixo delas.
there isn't enough shit on my face.
come back and shit on my face again.
(Tao Lin) 

Até o momento todos os acidentes que sofri foram fatais.
Morri (ou pelo menos minhas partes morreram) infinitas vezes e de infinitas formas.
Já me atropelaram com um trem de chumbo e me amputaram as pernas, já me arrancaram a cabeça com uma corda de forca (talvez tenha sido eu mesma).
Já me cortaram os fios e me desconectaram do mundo, fiquei sozinha, infamemente sozinha.
Perdi um olho, capengo por aí numa perna de pau, meu espírito gangrenou e eu joguei no lixo.
Mas, pergunto: que que é que se faz quando te estilhaçam o braço apenas parcialmente?
Que é que faz? Nada pode ser pior que se arrastar por aí, meio-a-meio, pendurado.
É melhor morrer logo de uma vez, é melhor não ter mais braço que ter esse peso esverdeado cuspindo seu sangue no chão a cada trombada... te deixando mais anêmico...
Estilhaçaram meu braço, mas apenas parcialmente que é só pra manter a dor doendo... só pra dar gás ao suspense, ao medo.
E, em réplica, eu vou assassinar a humanidade inteira usando apenas meu punho lacerado.

Estou enjoada. Quero vomitar um elefante desses de circo.
Quero vomitar um raio laser, um canhão.
Quero vomitar mil faquinhas afiadas no meu próprio pé.
Quero que caia uma chuva violenta e misture meu vomito com a lama e misture eu com a lama.
E eu com o vomito.
Quero uma casa com vinte telhados, um sobre o outro... aí sem chances de eu ficar desprotegida. (Mas é que eu sempre esqueço das paredes e do chão!)
Queria escrever um texto que falasse de astronautas e astronaves mas só sei falar de porcarias...
Sou uma porcaria.
Meu vizinho morreu e se enterrou no próprio terreno, não sei o que isso quer dizer só sei que o corpo dele anda fedendo há vários dias.
Eu podia chamar a polícia mas é que talvez o cheiro venha de mim e eu honestamente prefiro não descobrir de onde é que ele vem afinal de contas.

Se quer saber sempre fui um solo infértil, nunca deixei crescer por aqui grandes coisas por ninguém e nem se eu quisesse...
Acho que pessoas são sementes de origem duvidosa, você nunca sabe com certeza se está plantando margarida ou uma carnívora, tudo o que você sabe é o que eles escrevem nos rótulos.
E aí você compra, confiando cegamente  no que as impressoras deles tem a dizer.
Digo "você" , segunda pessoa mesmo e intencionalmente. "Você", porque eu não.
Pras eles e pras impressoras deles eu sempre lancei sorrisos vários, por vezes até palavras de motivação.
Eu sempre deixei eles me abraçarem se eles quisessem mas eu - me chame de falsa se quiser - nunca realmente os abracei de volta.
Nunca até topar com uma lata de semente de Psychotria viridis tão convincente que me deixei levar.
Ou então estive bêbada ou então estive dormindo ou então eu não era eu. Fato é que comprei e no meu solo infértil uma (só uma) das sementes germinou.

Nem deu tempo de saber o que era, cresceu dois centímetros e passou um rapazote na bicicleta (ou talvez fosse uma garota... acho que era uma garota) e degolou minha mudinha e agora somos só eu e meu campo seco mais uma vez. E agora permanentemente.
Um dia eu caí no chão e alguém pôs o pé de sapato mal engraxado na minha goela antes que eu pudesse me levantar.
Toda vez que dou o impulso o sapato me aperta contra o chão. Não consigo respirar, não consigo soltar sequer um grunhido.
Me sinto fraca e cedo e caio.
Aí me lembro que tenho braços e pernas e tento dar um chute ou um soco, mas o sapato é rápido demais... ou vai ver que são vários! Vários sapatos com sola de esgoto...
Meu braço, minha perna, minha cabeça e o meu coração são imediatamente inutilizados, me sinto uma cobaia presa a uma cama de cimento. Pior.
Me sinto uma cobaia presa a uma cama de cimento e esquecida, nenhum experimento vai ser feito, só estou aqui por estar... meramente porque fiquei.
E não existe chance. Vou ficar aqui envelhecendo presa ao chão enquanto vejo os donos dos sapatos tomando a água gelada que era pra mim...
Olhando de baixo todos eles parecem monstros. Ora, vai ver que eles são mesmo.
Monstros bem vestidos e de alvarás variados em suas maletas para garantir o direto de pisotear.
Me sinto como quem prendeu a cabeça entre balaustres de ferro e não sabe mais como é que se tira, como é que se salva.
Fico com vontade de chorar, mas chorar só me molha o rosto e me incha os olhos.
E isso serve pra que? Pra que que isso serve?
Fico aqui presa, angustiantemente presa, até que os sapatos e os balaustres decidam que eu não valho a pena nem pra bullying.
Segundo eles, mais ao norte (na parte congelada) existe um laboratório e nesse laboratório existe uma saleta com caixas grandes de madeira de feira.
Segundo eles, nas caixas eles guardam todo o tipo de coisa que a sociedade não sabe o que fazer; todo tipo de coisa que não pode ser enterrada, destruída, assassinada, que não pode ser lançada no espaço sideral, que não pode ser depositada em lixões de material radioativo, que não pode se decompor por si só.
Eu queria poder jogar lá dentro todas as minhocas que começaram a devorar meu peito de dentro pra fora, como se eu já tivesse morrido.
Eu disse pra elas e pra deus que eu ainda não morri e que ainda dói, que eu adoraria virar comida de bichinho mas que ainda não. Porque eu ainda to aqui e o meu corpo ainda tem febre, porque ainda me sai sangue e meu coração ainda ameaça parar de bater (só o suspense alfinetante mesmo).
Na última semana eu fui visitar o mar e enfiei minha cabeça contra o fundo de areia que era pra ver se matava as minhocas por afogamento.
Mal-sucedida e com o cabelo pingando sal fui até a beirada de um vulcão pra ver se havia jeito que se dar por lá, mas elas não morrem nem por fumaça e nem por fogo também.
Queria poder jogar elas dentro das caixas do laboratório porque não sei mais ser sua hospedeira e suspeito que não tenha mais grandes coisas a serem devoradas aqui dentro.
Eu quero que elas vão embora, mas não consigo fazer elas irem...
Sempre que as empurro mais pra frente quem cambalhota um passo adiante sou eu.
Vai ver que eu sou elas, vai ver que eu fui reduzida à isso então.
Eu quero que eu vá embora... quero que eu vá embora de mim e não volte mais.
Quero deitar numa caixa que me caiba e ficar lá adormecida com todas as outras coisas que ninguém sabe o que se faz também.
Nunca fiz par com seres humanos, eu não entendo como é que um ser humano funciona.
Vai ver que é porque eles têm engrenagens e órgãos e cordas de piano plenamente afinadas e tudo o que eu tenho são minhocas. Tudo o que eu sou são minhocas.

23.2.12

Você se desloca marchante para o oeste objetivando ver a lua mais de perto.
E engraçado é que não. Pelo oeste também não faz diferença alguma.
Depois de todo esse tempo você ficou esperando um momento de reviravolta, um abrir-de-olhos, um estalo. E não. De novo. Nada aconteceu, nada vai acontecer, a lua continua longe.
Quando te embalavam no berço a história dizia respeito a várias desgraças mas também sobre um final deslumbrante. Fosse que história fosse, era sempre assim.
E a questão é que no fim, o fim real, você estará velho demais para ter qualquer brilho ou deslumbre; a questão é que no fim você não sabe mais o que isso significa, você caducou!, e a questão é que até lá você sabe mesmo só o significado, um grão de farelo do deserto que imagina o temporal.

Não existe deslumbre. Não existe brilho. Tudo é cinza pra tudo quanto é canto e o mundo não se chama mais mundo: agora se chama Kansas.
Você acordou e nada é bom, de repente. É que seus olhos é que são ruins... é, deve ser.
E que diferença faz? Esses são os seus olhos e você nunca terá mais nenhum outro. Serviria de consolo pelo menos experimentar os olhos das mocinhas que atravessam as high-ways sem deixar borrar a maquiagem, sem cair do salto, sempre com aqueles dentes brancos demais...
Serviria de consolo pelo menos saber se é tudo uma máscara de momento - e cê dá sempre o azar de estar lá na hora H - ou se elas realmente não tem fios de cabelo caindo pelo chão feito um rastro de porcaria como os teus.

Enfio meu punho cerrado no corpusculo de uma mosca passante. Direto contra a mesa.
Ela já não existe mais enquanto qualquer coisa a que se deva dar um nome, agora é apenas uma mancha.
Mas eu a mantenho sob meu soco, porque se não for isso então voltamos ao status inicial do dia: a mosca da vez volto a ser eu, e o punho é a vida.

15.2.12

Não existe sono, existe o cansaço. Uma noite não-dormida e um estômago vazio e uma janela escancarada pra um mundo alienígena. (Tudo me é alienígena.)
O pensar que existe intimidade e então a percepção do oposto. Qual é o oposto do íntimo?
Sou astronauta sem nave, meu capacete hoje se descolou do resto da armadura, estou em apuros e ninguém vê.
Um debate interno para decidir com qual porcentagem de auto-piedade e com qual porcentagem de mágoa real estou lidando.
Li uma carta com réplica que não cabia aos meus olhos lerem, de papel que era corrosivo às minhas mãos; e teimei e peguei e li e agora estou destroçada e não só meu coração é um "balde despejado" à moda de Pessoa, como também o resto inteiro... se escoando... se der sorte, rumo a um ralo; se não, rumo a avenida para se empoçar e me envergonhar (ou não... o descaso é sempre uma enorme e possivelmente pior possibilidade).
Gostaria de acreditar que as coisas que foram embora foram embora mesmo, mas não me é possível tal façanha tendo que espíritos de idéias existem e persistem e assombram. Idéias reencarnam. Neste sentido pode-se dizer que sou uma crente fiel.

Feito criança impressionada com a sombra da árvore na cortina, tenho medo do escuro e não durmo. Vejo as idéias mortas me puxando pelo pé direto para o inferno, esse inferno solitário de ser consciente. Sorte a do tolo, do burro, do cego. Sorte a da pedra, do mar, da folha que a formiga carcome e carrega. Sorte a do deus, que não existe.
Sorte a do meu travesseiro, que carrega o peso da minha cabeça mas não o sente, tal qual a Terra que se move devagar e infalivelmente para a destruição mas não o sabe e por isso continua girando e pronto.
Nunca sei se chamo as pessoas que continuam caminhando de sábias ou ignorantes. Talvez a sapiência e a ignorância sejam convergentes, talvez eu não seja nem um nem outro, talvez eu esteja à margem; talvez esteja num estado de espírito que envolva exatamente os piores aspectos da sabedoria e da ignorância.
Sempre os piores aspectos.