20.12.09

Cenário

Seu mundo era dentro de casa, afinal nada poderia haver do lado de lá que não houvesse do lado de cá.
Até mesmo o céu azul, este poderia ser visto pela janela da cozinha todos dias, todas as horas.
Vinte anos depois, quando a idade já lhe garantia certa racionalidade, a xícara de café se espatifou no chão quando na janela o céu azul não era mais azul e sim de um tom berrante nada celestial.
Timidamente abriu o basculante e lá estava a parede da casa do vizinho, colada à sua e antes azul, sendo pintada de laranja.

17.12.09

Cru

Quando a gente descobre que a realidade de todas as dores é a ausência, a gente está a um passo de descobrir que a a ausência por si só é uma grande irrealidade e que o irreal nada causa. Não tardaremos a descobrir que a realidade da ausência é a presença do inalcansável e que esta por sua vez só existe porque existe a vontade de ter. Se formos suficientemente honestos e humildes, no fim da vida poderemos entender que somos todos um bando de mimados.

Consolo

E então o descabido e a impossibilidade vieram à tona com toda a força; barreiras foram atravessadas debochadamente, obstáculos foram ultrapassados sem hesitação e estava bem alí, diante de mim, o perfeito cristalizado em forma de improbabilidade.
Eu, que sempre esperei um dia encontrar a perfeição nos astros, em Deus, na arte ou, mais fervorosamente, em uma pessoa, a encontrei num grão de areia.
Sentada de frente pro mar com o vestido roçando a pele queimada, pouco me importava o horizonte infinito ou a glória reluzente do Sol; alí estava O Grão de Areia entre zilhões de grãos de areia, alí estava algo que me tirou o fôlego e que me fez adormecer em idéias tão lúcidas quanto fugidias. Alí estava O Grão de Areia e nele nada pude ver que o tornasse especial, exceto sua inacreditável especialidade.
Quis tê-lo, mas de certo isso afetaria tudo. Não, não... ele deveria ficar alí para continuar sendo eternamente o perfeito e ainda que viessem os ventos e as chuvas e que lhe pisoteassem e lhe desviassem o destino, ainda permaneceria intocado em minha memória. Assim passei a apreciá-lo e apenas apreciá-lo, não pretendi então fazer parte de sua existência mais, nem pretendi compreendê-lo. Aceitei sua soberania perante tudo o mais e aceitei a própria aceitação.
Ainda que sob as lentes de um microscópio se revelassem suas imperfeições, nada poderia afetar o sentimento que me provocou sua serenidade e então seria ele o Perfeito para mim, mesmo que a razão de tudo isso seja apenas confortar-me das angústias de minhs próprias imperfeições.

15.12.09

Lavagem

Enquanto o mundo todo vive tudo o tempo todo, o homem forte do cais enfrenta a própria tempestade, que ele mesmo cria todos os dias. As ondas sempre cessam antes que lhe falte ar aos pulmões, mas, todas as vezes em que uma das grandes lhe atinge como uma pedra, ele se sente como quem já morreu.
E aí eu acho que ele morreu mesmo, e no dia seguinte aquele que desamarra a corda dos barcos é apenas um estranho.

13.12.09

Dor

Às vezes a gente atravessa uma fogueira sem perceber, e só entende tudo quando se queima com as faíscas do ontem no dia seguinte.

3.12.09

Eco

De olhos fechados, o gran finale:
"Era bom SER pra isso."
Saudades do meu objetivo evidente.
Era mais fácil caminhar enquanto a recompensa no fim do arco-iris valia meu suor.

Ingratidão

Um dia eu aprendi a fazer de cada pensamento uma bolhinha de sabão.
As primeiras 50 foram boas de olhar e me encheram os olhos e me encheram a vida.
Aí o meu mundo ficou pequeno pra elas, e agora o cheiro me enjoa.
Sou eu e minhas mais de 100 bolhas de nada que se perdem com um estouro no vazio.
Será que é assim que se preenche solidão?
Com um exército de criaturas temporárias?
Com cascas vazias que se desmaterializam quando você começar a precisar delas?
Quando minha máquina parar de produzir, eu vou apenas fechar os olhos e esperar ecoar o último "Ploft!".

De Birra

Sempre digo para mim que não deveria esperar catástrofe de estalinho, mas não tem jeito: PÁ! E de novo meu coração explode por tabelinha.
Só se recompõe depois que vejo a causa do estampido, mas aí é mais uma cicatriz, mais uma costura, no meu pobre miocardio retalhado.
Pra compensar, nas muitas e muitas vezes em que desaba o céu em minha cabeça eu, ainda anestesiada de sonhos, nem sequer recolho as nuvens do chão.

Sentir com Lupa

Caiu do céu a primeira gota e me afogou.
Veio a brisa, tocou meus cabelos e me deixou de cabeça pra baixo.
Havia uma folha no chão, e ela foi a causa da minha maior queda.
O mundo todo gira o tempo todo, mas é o carrossel que me deixa tonta.

1 + 2 = X

Aquele relacionamento sempre foi um X, e um numa ponta e outro noutra.
Mas sempre acharam que fosse um i, e um no traço e outro no pingo - entre eles o inverso do grafite, abismo e impossibilidade.
O que nos faz ficar parados e evitar o centro da encruzilhada é a pequenez, a miudeza e incerteza... por mais que nos dêem uma fotografia panorâmica, não há como saber as formas da estrada, sobretudo se se tem medo de que ela seja um Ponto Final. O melhor jeito de entender é trilhando o passo a passo, mas explica isso para aqueles dois parados na beirada do penhasco imaginário?

Dois Mundos

Ajoelhou-se diante d'O Grande Lago, fechou os olhos e fez uma oração.
Então, ainda de olhos fechados, viu-se alí.
E viu-se escorregar devagar e fundir-se ao veludo líquido, que por sua vez formava ondas sutis a cada milimetro de profundidade que alcançava o corpo visitante.
Sentia-se leve e deixava que os pensamentos escapassem todos, fossem embora...
Mas, como um martelo, o pio do gavião acordou-lhe.
Abriu os olhos, sentiu dor nos joelhos.
Sem pensar muito, tentou escorregar para O Grande Lago, fechou os olhos [novamente esta mania de negar a realidade] e se atirou.
Não demorou nem meio segundo para aprender de uma vez por todas que as coisas são muito mais fáceis quando imaginadas do que quando vividas e que água parada pode ser mais gelada do que deveria.

2.12.09

Desnível

Era uma moça no topo da escada.
Era um moço no pé da escada.
Era o moço aos pés da moça, e a moça aos pés do nada.
Era o moço que se dizia pouco. Pouco pra moça, que a moça é tudo [tudo para o moço, ao menos].
Era a moça que não via o moço, não ouvia o moço, existia sem o moço. A moça vivia virada pro vento. E o vento sempre ao norte, e o moço sempre ao sul.
E que pena ter alí, entre o moço e a moça, escada tão cheia de degraus...
Não fosse isso, o moço diria à moça que se quer mesmo a Lua, ele lhe dá.
Não fosse isso, a moça ouviria do moço o que ele tanto repete baixinho, mas lá do alto a moça não ouve...
O moço queria mais que tudo que a moça viesse pra perto, descesse tudo aquilo e o olhasse ao menos uma vez.
Mas a moça lá do alto não via o moço...
Mas o veria se ele subisse até lá e lhe entregasse a flor que ainda guarda no bolso esquerdo desde de maio.

Como o Mato Pode Ser um Mundo Maravilhoso

Eu que não sou Padre para ver Deus em todas as partes, nem sou Biólogo para entender a importância do mato, que não sou Poeta para ver beleza no caos, eu que não sou ninguém além de mim e que nada sei além do que eu [acho que] sei, só posso dizer que o Mato é um Mundo Maravilhoso porque nele eu plantei um pé de feijão que vingou, se integrou à vegetação ao redor e vive.

1.12.09

Hesito, logo existo.

Eu estava falando sobre "levar adiante".
Não sobre "empurrar com a barriga". Apenas levar adiante, de mãos dadas... sem pressão. Dizia que às vezes levar adiante pode significar "interromper imediatamente", porque às vezes estamos num beco sem saída e aí mudar de rumo é a única forma de levar adiante. E não existe outro modo de mudar de rumo que não seja começando com a suspenção, o silêncio, o escuro e a desistência.
Eu dizia tudo isso e, juro pelo o que quiserem, apaguei tudo.
Eu desisti do meu pensamento e logo depois me arrependi, mas o Control Z não funcionou dessa vez.
Foi assim que terminei de cara no muro. Esse beco não tinha saída.
Esse post é um muro de tijolos e além dele pode existir um mundo maravilhoso ou apenas mato. Vou deixar pra falar de como o mato pode ser um mundo maravilhoso na próxima vez.
Tenha uma boa noite e desculpe qualquer coisa.

Neuro-tricotar

Justamente naquele momento percebeu que era sim possível, na verdade, era completamente viável, driblar as adversidades simplesmente sendo um pouco mais vigarista e trapaceiro consigo mesmo.
E essa epifania inesperada foi só uma consequência de outra epifania: ter percebido que os sentimentos e as vontades não são uma linha reta. Na verdade são milhares e milhares de milhas de linhas entrelaçadas (muitas vezes emboladas) e desnorteadas, e que no fim das contas resultam num grande nó.
Sorriu largamente quando realizou que tinha controle sobre o que sentia, não por ter condições de inventar sentimentos e aniquilar outros, e sim por ter poder o bastante para escolher qual dos sentimentos sentidos (muitos dos quais absolutamente contradizentes) seria enfatizado naquele momento.
A questão seria só escolher qual linha usaria para começar o novo cachecol.

DéSjà vu

Para quem achava que nenhuma sensação poderia ser mais esquisita do que achar que sepre conheceu algo que na verdade nunca, nem em sonho, teve qualquer tipo de contato, foi atordoante acordar de manhã e não reconhecer nem os próprios pés.