27.10.11

Não quero ter mais interesse em metáforas, me esgotei dos balões e dos monstros de oito tentáculos.
Álvaro de Campos fumou a ansiedade, e daí do mal estar que sentia sobrou a superficialidade - que é no fim das contas tão essencial quanto água se o sujeito quiser se manter são.
Eu não fumo, e eu nem bebo e eu nem nada.
Na frente da minha casa existe outra casa e a única coisa coisa que dalí me salta aos olhos é matéria. Janela, vidro, portão e chaminé.
Queria alí um sujeito empastelado de gel e boa vontade pra olhar, pra tragar.
Queria também um sujeito sem metafísica.
Sou uma invejosa confessa.
Ademais, procuro razões pra me sentir mal, como já me foi dito.
Quê coisa posso dizer depois disso?
Forjo as minhas histórias sim, eu bem sei... vai ver que é por causa tipo daquilo que o Borges disse sobre cegueira.
Tanto faz.
Escrevo agora só pra matar o tempo, pra ver se me bate um vento carregado de tabaco e me apaga também as especulações.

26.10.11

Gueixa de três segundos

Fiz um monte de poses, prendi meu cabelo num coque alto.
Caminhava por uma rua estrategicamente estreita, a passos curtos e premeditados.
Meus pés mais deslizavam, delicados, que se erguiam do chão.
Aprendi a sorri pelas beiradinhas da boca...
Meses de treino pra tudo isso.
Pra "tudo" isso.
Hoje minhas mãos mal conseguem erguer uma xícara de chá sem estrangular-lhe até que se exploda em cacos que me matam de vergonha.
Hoje tropeço, despenco.
Hoje meu coque pode ser visto de perto e não passa de um nó.
Não tenho mais fôlego para lhe acertar os fios soltos, nem para fingir que deslizar me é natural.
Hoje sou pedra que trota, pele rígida cheia de asperezas.
E logo logo hão de me chutar da ruazinha estreita, que nela já ocupei espaço demais.

25.10.11

Alles Nahe werde fern

Tudo escurecido - digo, o céu e tudo o mais.
Você descobre na penumbra seu arqui-inimigo caído à tua direita feito um pedaço de merda.
Um esqueletinho espichado pelo sol, mas com os olhos marejados de humilhação ainda impecáveis.
Você recua.
Desde que você acordou, ontem deixou de ser qualquer coisa mais que um mero delírio; desde que você desfez a sua bagagem, não existe nada mais que remeta às largas avenidas e às próprias canelas desenmordaçadas.
O sol não impede o escuro.
Ontem, enquanto você sonhava, você descobriu que o que os cegos veem é brancura, e assim ficou mais que explicada tua aversão à claridade.
Só que você sempre fugiu também do silêncio e não adiantou muito.
Teu arqui-inimigo caiu e tu não se tornou feliz.
Seria fácil agora chutar-lhe os restos para longe das tuas vistas, só que ainda te revira o estômago a idéia do toque, da aproximação.
Teu arqui-inimigo é eterno... é isso que você descobre enquanto dá duas passadas assustadas pra trás e cai também.

22.10.11

Dos ordinários (e seus dias ordinários)

Quando da pane no sistema, deitava-se ao chão com a cara de pão dormido que nunca foi capaz de deixar de ter e punha as mãos sobre os olhos. Meio que como se isso fosse impedir a luz de clarear as coisas.
Não tinha vontade de saber, tinha vontade de não sentir vontades. Era meio que isso.

Meio-dia é um horário danado de ruim.
Se levantava a contra-gosto e  tentava se atirar pelas calçadas largas da avenida, trupicando feito pobre coitado. Queria ir pra frente.. só que não, talvez não quisesse não.
Era a teimosia do meio-dia de sexta, visitante semanal assídua.
Sentia um calor subindo até o rosto, chorava e só saía farelos.
Ninguém, nenhum desses que trupicavam também pela avenida, faziam a menor a idéia; esses suspiravam por aí com suas bocas debochadamente escancaradas - uns insensíveis! - e sequer notavam a costura que o mundo fez pra selar seu bico por umas boas várias horas.
Tinha então vontade de mandar todos se danarem.
Só que também não.

Entre as canelas magrelas e o chão pairavam duas feridas desgraçadamente doloridas.
Daí que se sentia Jesus Cristo, e daí que punha os pés descompromissadamente à mostra, esperando que algum dos insensíveis ao menos tivesse olhos no meio da cara.
Passavam direto.

Uma hora da tarde um helicóptero voava baixo numa linha perfeitamente paralela ao quadro da janela do sétimo andar.
Não conseguia se decidir se mais rápido era ele ou as nuvens. E o que importa? O fato é que ele e as nuvens estavam ambos se indo, fugindo do seu campo de visão... exatamente como tudo o mais.
E não era do tipo de dormir de tarde nem nada, mas, como numa tentativa de adiantar o desfecho de um livro ruim, repousava então de novo as mãos sobre os olhos e forçava o ronco pra ver se desse jeito o sono vinha.

13.10.11

Manuela

Manuela se fantasia de trapo no carnaval. E também fora dele.
Manuela tem sob os pés uma pilha de lixo, e estende sobre ela o pezinho delicado enmeiado em lã marrom.
Manuela é rainha da própria baboseira, com fones de ouvido king-size pendurados no pescoço feito forca.
Nunca usou pra ouvir uma música.
Manuela se contradiz em absolutamente tudo, é uma louca varrida.
Sob as mechas loiras-quase-brancas se rebelam os cachos castanhos, os verdadeiros donos do pedaço.
Uma guerra entre o real e imaginário que nunca vai ter vencedor ou perdedor... que pra Manuela o caos é a medida certa, que pra Manuela a pilha de lixo é pilha de "interessâncias" e ela poderia nadar alí meio que como uma sereia cheia de classe.
Só que Manuela não tem classe alguma, é uma porca.
Senta-se no sofá da sala da lareira com as pernas abertas feito macho, e em seu auto-retrato preferido ela tinha apenas oito anos e usava uma meia arrastão enquanto apontava um rifle pro mundo. Só de brincadeirinha.

11.10.11

Jardinagem

Abri meus olhos pela manhã mas só acordei agora, às vinte e duas e três.
Penso agora, então acordada, que quem dera fosse eu uma das quatro rosas.
Ou talvez uma número cinco, se não fosse pedir muito.
Penso que quem dera tivesse eu também despetalares tão bonitos assim, desses de deixar rastro de cheiro no chão...
Não nasci flor, porém. Nasci gente:
Meu despetalar é de pensamentos...
E é que pensamento não tem cheiro nem nada.

As quatro rosas se dispõe em linha reta a quatro palmos do meu nariz, suspiro-lhes.
Penso que são todas da mesma cor, só que de cores diferentes.
É bem isso mesmo.
Se estendem nas extremidades das pétalas, tipo um meio que um repuxo de olhos orientais.
Bate um vento e elas balançam, mas permanecem.
Quem dera fosse eu uma das quatro rosas.
Bate um vento e eu entorto, bate chuva e eu enferrujo, bate frio e eu estrago.
Em dias de sol, empeno.

Nasci mortal - o tipo de mortalidade que rosa não tem.
Quando é que rosa acaba?
Rosa se dilui, não perde o sopro vital em nenhum momento específico, que eu saiba.
Já a mim, me dirão a hora da morte com precisão de nanosegundos.
E meu legado é tão pálido quanto minha cara de defunto.

Não deixarei rastro de cheiro, tal qual as quatro rosas enfileiradas; só rastro de coisas por fazer.
Essa é a minha herança: o "deveria ter sido" ou, na melhor das hipóteses um verbo mais camarada.
Poderia.

8.10.11

Sobre garotos e diversão

O garoto escolhe no saco um balão qualquer acinzentado e o sopra com toda a força.
Em dez segundos o balão ocupa uma área de vários metros cúbicos e promete crescer cada vez mais, tudo só depende mesmo daqueles lindos movimentos pulmonares.
E o balão avança contra a janela, a todo vapor. Ele quer vai voar.
Mas é justo nessa hora que o menino larga as mãos e afasta o bico e aí o balão sai voando pela sala feito um total idiota, sem saber onde vai parar, quando vai parar, se vai parar, perdendo com inacreditável velocidade tudo o que um dia pensou que tivesse (mas só pensou).
E no fim o balão é um frouxo e deprimente pedaço de borracha cuspido no chão.

Choque de realidade

De repente nasce essa sensação forte de que aquelas plantas exóticas que você plantou na sua sacada são completamente despropositadas e um trator passa na rua lançando poeria sobre elas pra ressaltar a inutilidade do seu esforço em prol de tornar seu ambiente algo "assim" ou "assado".
Nada faz muito sentido em manhãs de sábado, quando você deveria estar ouvindo Lynyrd Skynyrd mas tropeçou em algum tapete pelo caminho.
E o cara em cima da árvore que você achava que ia te dar uma mão só tá lá porque não sabe descer, porque um dia decidiu que tinha ares de maçã e perdeu as noções básicas de humanidade. Um coitado.
Você planeja arrancar as carnívoras (já que nem são tão bonitinhas assim, e que as moscas pseudamente-engolidas já perderam a graça) assim que conseguir se desenrolar do desgraçado tapete, e ainda de quebra vai gritar pela janela para o sujeito-maçã que você nem tá mais tão afim assim de olhar o mundo de cima... até porque no final das contas ninguém é bom o bastante pra subir ao nível do Sol, que ele fique bem avisado disso.

5.10.11

CMCA I


eu fico atrás da porta
ouvindo com um copo
por alguns instantes achando que faço parte
mas a maior parte do tempo tendo a certeza de que não faço parte coisa nenhuma
e a questao é que eu poderia me levantar e tentar abrir a maçaneta a qualquer momento
só que eu nunca sei se agora é a hora, dai eu fico lá mesmo, esperando um sinal
fingindo que sinto cãibra (botando a culpa da cãibra)
esperando alguém abrir a porta pra mim pelo outro lado
ou esperando eu estar me sentindo de outra forma
ser outra pessoa.
e sobre "outras pessoas",
outras pessoas simplesmente caminham rumo a porta e abrem sem nem pensar
porque porta no idioma delas significa passagem
e no meu, empecilho.

Da pratica do camping

Quando você era criança, você e os seus dois melhores amigos pegaram uma certa trilha errada e foram parar "mais pra lá" do que deviam.
O vento batia de uma forma estranha demais, meio que espalmeando as folhas do chão, e o sol queimava mas não iluminava tão bem assim o caminho. Algo a ver com o tipo de vegetação... ou não.
Vocês golpeavam uns galhos intrometidos e pisavam (a princípio) com passos firmes.
Quando interceptados por uma encruzilhada, você mandou eles pegarem a esquerda mas parou para olhar uma bolha no pé.
Anoiteceu em um intervalo de dois segundos e meio e quando o dia abriu os olhos novamente você estava sozinho.

White Christmas e demais canções natalinas

Um pé na frente do outro, cinco minutos e cai o toró.
Subo a ladeira a todo vapor enquanto respingos brincam de ameaçar os transeuntes desenguardachuvados.
Chego em casa as 16:32 com os fiapos do cabelo polvilhados da chuva que no fim das contas ficou só na promessa, e a casa cheia de gente... o poço lamacento de ontem transvestido hoje em pura algazarra de carnaval fora de hora.
Nem sequer sei quem são essas gentes, nem sequer quero saber. Me fecho no primeiro ambiente fechado que encontro: um armário.
Daí fecho os olhos e vejo com bastante clareza os dois meses depois deste como é que serão.
Sinto um arrepio na nuca, os pisca-pisca não tardam a preencher cada canto desta casa, deste armário.
As árvores da praça sucumbirão à ira das trepadeiras artificiais luminosas e extravagantes.
Já vi tudo. Os galhos este ano, tenho certeza, não irão aguentar.
Eu este ano, tenho certeza, irei me afogar também, debaixo dos colares de semáforos cheios de prepotência e instruções que aquelas gentes do outro lado da porta (que vou continuar fingindo que não conheço) hão de pendurar no meu pescoço mais uma vez.

2.10.11

Me dê um bom motivo...

"...para não excluí-la da minha vida? Você me fez muito mal, estou me livrando de pessoas assim."


Daí ele ia colocando na pilha de sacos mais um cadáver, enquanto eu olhava embasbacada o lunático de menos de vinte falando com rouquidão de homem feito.

"Eu só queria sentar na porra do seu lado e olhar as estrelas, saber que alguém se importava e que eu não estava completamente sozinho."


Ele estava tentando ser salvo por um algo completamente imaginário, enraizado nos confins do pensamento humano, chamado "amor".
E estava, pasme!, vindo falar comigo de solidão! Logo comigo!
Que audacioso!

Ele continuou, meio que assim:

"Eu só queria saber que alguém poderia sentir algo por mim, me dar algo que não custaria nada..."

O céu era cheio de estrelas, aquele tipo de estrela que é meramente bola de fogo e nada além disso, aquele tipo de estrela que não tem nada a ver com coração e sentimento e blablablá de encheção de saco de poeta amargurado.
E eu olhava pro alto e via essas tais dessas estrelas, as estrelas de verdade, sozinha, enquanto ele olhava pra mim de olhos vendados crentes que eu era realmente aquilo que as artimanhas de seu cérebro perturbado haviam criado por conta própria.

Ele me vinha com essa, essa de "dar algo", quase uma da manhã!, falando de preços de coisas, preços de pessoas, preços de sentimentos... Um monte de baboseiras!
Algumas coisas não têm mesmo preço, mas isso não significa que estejam por aí para serem pegas por qualquer um que passar.
Minha companhia para noites estreladas, por exemplo, já não está mais na vitrine.
Essa já levaram, e foi isso que eu falei quando dei meu primeiro passo pra trás e ia indo cada vez mais pra lá enquanto ele por sua vez continuava murmurando pros cadáveres imaginários mais um monte de porcarias a respeito de chances, padrões e vida!
VIDA! Sim senhores, a respeito de vida!
Pessoas que enterram coisas só sabem de mortes e, na melhor das hipóteses, delas mesmas.

Desapareci por trás de um salgueiro e, de certa forma e para o bem de todos, dentro de uma cova das mais fundas.

H. s. sapiens

OM, traduzido para o idioma humano, não passa de uma gargalhada debochada.
O dia em que o mundo descobrir isso, talvez pare de colocar seus habitantes para se degolarem mutuamente no coliseu invisível... e eles achando que estão indo pra alum lugar...
Alguém tem que contar pra eles que a arena é circular e não tem começo e não tem fim.
Se nasce alí, se morre alí, e nada tem valor, ninguém tem valor.
Todos os participantes estão ali involuntariamente, mas crentes que tem uma grande missão.
Sua grande missão, caro alistado, é se demorar o máximo possível no tatame, subir o mais alto que der na torre de carcaças humanas e lá enfincar sua bandeira.
Sua grande missão é passar as próximas aproximadas setecentas mil e oitocentas horas fingindo que tem uma grande missão que é para não dar o azar de olhar para as arquibancadas e ver uma platéia de ideologias que ganharam vida própria pagando o preço da aposta pra ver sua cabeça no chão.

Matadouro

Assim como o boi, nascido e criado pra produzir carne, também o homem: nascido e criado pra produzir dinheiro.

Madrugada do dia 2 de outubro


Conversei com um tal de Vicente ontem por volta da uma hora da madrugada.
Os carros uivavam feito uns debeis-mentais noite a dentro, como que uma afronta às janelas já mais que encortinadas da vizinhança.
Minha casa era um deserto, pelo menos enquanto as luzes se mantivessem apagadas.
Sempre tive esse surto de querer evitar a simplicidade da realidade.
Não! É pouco!
E a verdade é que o escuro facilita.
Vicente era um cara triste, me disse que sentia os ombros, as pernas, o pescoço e o maxilar completamente deslocados.
Vicente disse que tinha certeza de que com um corpo tão arrebentado assim mal poderia ele se sentar para ler um livro.
Eu olhava o homem e pra mim ele era normal.
O homem olhava para mim e para ele eu era normal.
Só que tinha eu também, por baixo de tanta pele e roupa e etc, as minhas próprias veias estilhaçadas e minhas vértebras se calcificando umas às outras - como que insatisfeitas pela minha falta de postura, resolveram tomar suas próprias providências.
Se a gente quiser ser acreditados temos que dar algo em troca.
O que Vicente queria era credibilidade, eu idem.
O acordo foi selado com muxoxos e dares de ombros e o resto da noite foi um longuíssimo "eu sei como você se sente".
No dia seguinte os carros latiam com normalidade para as janelas escancaradas e suas donas de casa penduradoras-de-roupas-no-varal.