29.11.11

Planos e pisoteios

Não me lembro mais qual foi o último por do sol que consegui ver.
E fato que as cigarras do Marco continuam os pios cismados a um canto, e o rabo de cavalo pende torto tipo assim um coração cansado de bater.
A gente fez que disse que ia subir o pico e olhar todo o azul lá de cima se tornando vermelho, mas interrompemos a caminhada no pé do morro algumas várias vezes que já se perderam em contas estúpidas.
Filhotes de ratazana abortados permanecem largados ao chão feito alertas de verso de envelope de cigarro.
Me identifico. Meus sentimentos se abortaram, meus planos se abortaram: tudo se epilogou largado no tal do pé do morro apenas em fase de projeto.
E o sol se pôs antes de a gente achar uma brecha entre os galhos pra olhar melhor.
A natureza as vezes pode ser bem ruim... vou hoje dormir à céu aberto com essa verdade entalada na goela.

27.11.11

Como um gato eriçado pelo medo, caminho pelo tempo.
Não consigo ouvir o cuco gritando as horas, não há nenhuma janela pra me avisar se está chovendo ou não.
O meu corpo inteiro se arrepia na ausência do vento, e o arrepio injustificado provoca outro arrepio. Uma reação em cadeia é o que temos então.
Não é de hoje que me chamam de super-garota, nem é de hoje que fazem o favor de me listar todos meus calcanhares de Aquiles em seguida.
Peço (mentalmente, sempre mentalmente...) aos tais que se contradigam menos, porque eu adoraria acreditar em palavras tão garbosas do tipo mas do jeito que vai não dá.
Me pronuncio escada abaixo com as duas mãos agarradas ao corrimão enquanto outros passageiros se lançam em saltos mortais pra enlamear mais ainda de sangue o chão do hall.
Eu amassei a lista dos meus defeitos, aquela com tipografia forçosamente rebuscada, e tasquei no vaso sanitário antes de começar a descida.
Não esqueci de dar a descarga, mas esqueci de esquecer de ter lido certos itens que agora julgo ofensivos.
Carrego as ofensas comigo degrau à degrau, como quem carrega as roupas do corpo.
[Sobe a sensação de que existe uma flecha na minha cabeça e cada vez que alguém me ultrapassa voando pelas laterais e me olha torto o arrepio grita pra me dar certeza de que ele também viu a artilharia pesada que anda tentando fazer par com o meu cérebro.]
Tenho mania de perseguição, tomo tudo para mim, e os olhos caminhantes em minhas paralelas são espelhos tortos em que eu cismo em acreditar ainda. Depois de tudo, ainda sou uma crente afinal.
Me aproximo do hall (de entrada ou de saída?) e vejo um, dois, três, vinte copos de cerveja estraçalhados no chão feito passarinho em dia de caça.
Quem foi que fez? Quem foi o artista?
Não tenho voz pra perguntar e nem ouvidos pra ouvir a resposta. E tanto faz, se quer saber.
Os corpos apressados que continuam a se arremessar pela escada às minhas costas aterrizam no chão de cacos e misturam seu sangue aos dos demais.
A humanidade se resume a uma poça diante dos meus olhos, uma sopa triste de sei lá o quê.
Minha nuca se eriça mais a cada passo, como um cachorro que tenta fugir de uma coleira apertada.
Não existe jeito de voltar e subir tudo o que já desci e de todo modo lá em cima a única coisa que me aguarda é a mesma privada onde já afoguei umas certas várias dúzias de cartas cretinas.
Meus pés acertam enfim os primeiros cacos. Meu sangue vem a tona de mansinho e escorre pelos últimos degraus até se unir com o resto espalhado no chão.
Pronto. A sopa tem também o meu gosto agora... (mas na verdade isso não importa muita coisa, já que ninguém nunca vai saber qual é o meu gosto e qual é o gosto do carinha barbudo sangrando pelos olhos à minha esquerda.)
Sinto a dor do corte e essa dor anestesia outras dores velhas companheiras. E é um baita de um alívio, eu admito.
Munida da mais nova experiência, acho que entendo ao menos um pouco mais o mundo aparentemente feliz boiando nos cacos, e os suicidas doidos para chegarem até a dor logo de uma vez, quanto mais rápido melhor.
Degrau demais faz a gente pensar demais, a nuca se arrepia demais - um dia ela foge de vez.
Certos emaranhados de palavras rebuscadas disfarçadas de conselho e bem-querer enforcam os mais fracos pelo caminho.
Ninguém escuta o cuco, por mais que ele se esgoele ao fundo.
Ninguém quer saber que horas são, ninguém quer saber da previsão do tempo.
O ser humano é empurrado pelo instinto do esquecimento escada abaixo, é isso que é e agora eu sei.
Quanto mais rápido, melhor.
O mundo dos que aterrizam é uma bacia de carcaças que acreditam estar nadando para algum lugar.
Queria dizer pra elas que (a maioria, sejamos justos) estão só boiando inutilmente, esperando afogar.
Mas eu aqui, não posso simplesmente me colocar como superior só porque olho tudo de cima da minha confortável visão panorâmica na escadaria.
Eu sempre soube, mais a cada metro que desci, que em dado momento eu seria uma delas, uma das carcaças. Mas sou covarde, não sei pular.
Daí a cada trombada que me dão pelas costas cruzo os dedos e fico na torcida pra ver se não caio também por causa disso (não por culpa minha! jamais por culpa minha!) de cara no diacho do lamaçal.

25.11.11

Decomposição

Fecha os olhos pro dia quando percebe que a visão de uma semana inteira (quiça mais de uma!) é tempo demais.
Pensa que um farelo de pão talvez pudesse aniquilar um homem, se na velocidade certa, se na direção certa.
Não falará mais de venenos com as nuvens como costumava fazer.
Quando as coisas são de verdade a gente senta e olha (a gente, os covardes) e não fica mais tentando dizer.
Nunca foi de evitar assuntos, nem de evitar prazos, nem de evitar visões.
Só que todas as coisas mudam. E essa sentença é mais uma das coisas que agora evita.
Não quer mudar, não quer trocar de coração e sentir outros sentimentos.
Sempre achou que fosse uma boneca russa e que dentro de si havia outra e depois outra e depois outra.
Agora que lhe tentam enfincar órgãos de outrem no seu íntimo é que percebe que, ainda que vasta, nunca nada ali deixou de lhe pertencer e ter seu cheiro.
Quantas camadas tivesse, uma dentro da outra, todas elas convertiam as pulsações desordenadas e divergentes em uma bela de uma sinfonia.
E agora tentam macular o conjunto.
Uma semana é tempo demais e a qualquer momento qualquer coisinha ridícula atingirá velocidade suficiente para destruir-lhe até a última boneca.
Não dá pra viver na paranoia, isso já sabe de longa data.
Quer reduzir-se a qualquer coisa que não tenha consciência do tempo, que não tenha consciência das feiuras...
Se demora olhando uma piaçava de vassoura esquecida no cantinho do tapete e então lhe envia uma mensagem telepática cheia de esperanças: "Quer trocar tua alma pela minha?"

24.11.11

Dente de alho

O que se faz com as mandingas?
Quero dizer, o mundo já acabou, as bombas já explodiram, não existe mais nada pra que se rezar.
Não existe mais razão pra se proteger.
Você passou algumas boas estações acumulando toda sorte de objetos místicos que, disseram-lhe, te salvariam da perdição.
Na tua cabeça pende uma infinidade de colares, com umas espécies de nós, e eles envergaram seu pescoço para frente e te causaram uma nada bonita corcunda.
Você nunca se importou com isso, a proteção era mais importante... sempre te doeram os braceletes apertados e sempre te preocuparam aqueles que teimavam em cair do seu punho já esquelético: você passava os dias contabilizando pra ver se não havia nada sumido. Se sim, você caía no choro.
Se sentia fraco, se sentia à mercê do apocalipse, à mercê da própria degradação.
Eu não sei se foi por obra de outros ou se foi você mesmo que te ensinou a acreditar no poder de coisinhas tão estúpidas.
Nada disso poderia te proteger do vendaval, nem o anel mágico que você mesmo projetou.
Ele foi o primeiro a voar.
As paredes da sua casa eram cobertas de posters e fotos e pinturas sagradas, você olhava uma por uma antes de dormir, para sentir a presença divina.
Deitava-se na cama e esta dividia com você o peso dos escudos. Era sempre uma boa noite de sono, apesar dos demônios debaixo da tua cama... que poderiam eles causar a alguém como você, tão cheio de artefatos poderosos?
Você estava para escrever alguns versos de um mantra que você acreditava ser carregado de proteção na sua própria pele, bem em cima das próprias costelas, mas não deu tempo.
Você ainda pretendia colocar o seu manto de peles e sair à caça mais umas vezes, mas não deu tempo.
As granadas dispararam todas ao mesmo tempo, tudo o que você conhecia se tornou uma mancha... só sobrou você (ou uma parte de você) e as suas mandingas.
Sobre você mesmo você não sabe o que fazer, mas sobre as mandingas você sabe.
Você sabe que é hora de arrancar uma por uma, que é hora de perdê-las todas pro vento sem remorso.
Que é hora de deixar as pulseiras caírem pra sempre, colocar seu pescoço de volta pro lugar..
Mas é de seu feitio se sentir desprotegido, no matter what.
E é de seu feitio ser tolo, acreditar no que tiver para ser acreditado enquanto sua inteligência se recusa a aceitar os fatos como eles são: tudo o que havia para ser perdido já se perdeu, tudo o que havia para morrer já foi morto, tudo o que havia para acabar já acabou.
E você ainda se sente vulnerável, talvez mais do que nunca...
Você ainda quer cobrir seu corpo inteiro de santinhos, procurar umas palavras mágicas que revertam toda a destruição. Só que elas não existem.
Seus artefatos não te protegeram da tragédia e menos ainda serão capazes de dar-lhe uma transformação.
Ou você joga tudo fora agora ou seu pescoço logo logo se encosta no chão; ou você joga tudo fora agora ou da próxima vez que ouvir uma trovoada forte não vai conseguir correr de novo.

23.11.11

Happily Ever After





"They caution us against idolatry
And tell us that we should not jeopardize
 immortal life for anything that dies
And not to be bemused by mere beauty."
(R.D. Laing)




Chega-se ao tempo em até a mais funda das lagoas seca.
Eu me levantei da minha confortável poltrona e fui olhar pela janela; não pude conter o engasgo.
As garças reais levantaram vôo, todas elas... como fossem maltrapilhas.
O lago era na verdade uma cratera, um soco no chão da Terra que se encheu com que quer que fosse que caísse dos céus. Qualquer coisa mesmo.
Eu sempre soube essa verdade - que a lagoa era mera coincidência -, mas a mantive trancafiada no meu íntimo pelo bem de nós duas.

Me debruço no pórtico, cheia de cansaço, e tento ser indiferente.
"E tudo afinal é mera coincidência."
Mas generalizações nunca serviram de consolo... meu estômago se revolve mesmo assim, nauseado.
As garças vão embora levando o último peixe e a previsão do tempo não prevê chuva nenhuma.
Em poucos segundos o sol se põe pálido, enquanto a silhueta de um caminhão soterra sem dó o que sobrou da minha lagoa.
Não deveria estar chovendo.
Não senhor, não deveria estar.
Tanto não deveria estar chovendo que pus uma saia que pus um chinelo que pus o cabelo num rabo pro alto tipo verão.
Mas e aí como que lido com os respingos?
As poças?
As trovoadas?
O mundo quer sempre me apresentar um cenário que se contrapõe às minhas expectativas, é como um jogo.
Se quero amarelo, ele sempre me dará o vermelho.
Em compensação criei calos: nada na tempestade me amedronta mais, continuo tranquilamente de pés de fora como quem pisa em grama, que teimosia tenho de sobra, que teimosia me transborda.
Vai ver que eu é que me contraponho ao mundo, vai ver que o jogo é meu.
Que eu fui dormir como um mendigo ingrato choramingando sob o sol acolhedor e acordei como uma bendita Deusa, bem debaixo da pior das tempestades.

22.11.11

Fome




"Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos?"
(Pablo Neruda)


Hoje eu gostaria de dizer algo feliz, como por exemplo: o sol está maravilhoso! 
E ele está maravilhoso mesmo de fato, mas é totalmente externo.
(E o máximo que pode fazer por mim é me queimar a pele.)
Eu gostaria de dizer: todas as coisas me satisfazem - exceto uma.
E o problema todo é que essa uma pesa dez mil vezes mais que todas as outras:
Não estou nem perto de satisfeita.
Me armaram um banquete farto, mas só de folhas de alface...
E o prato principal (o verdadeiro enche barriga) ficou para algum dia desses aí.
Acordei morrendo de fome, ao ponto que começo a roer os pratos e as paredes.
Diz-se que há essas pessoas que se alimentam do sol e hoje eu gostaria de dizer para elas o seguinte:
Foda-se.
Ninguém pode se nutrir de sol, é preciso muito mais!
Brilho não é suficiente, é preciso algo especialmente elaborado para o nosso organismo.
Sinto falta do meu prato principal.
Talvez seja aquele tipo de coisa que a gente vira a noite pensando só porque não pôde abocanhar.
Porque a verdade é que em todos os outros dias também não tivemos prato principal, mas pelo menos havia o cheiro e havia a promessa.
Eles vinham até mim e eles diziam: Pode ser que... talvez possamos... temos possibilidades de... é viável que...
E ainda que o final da frase fosse carcomido pelos ruídos do mundo e dos problemas eu entendi que era só uma questão de tempo até que esse algo triunfante viesse calar os gritos do meu estômago vazio, do meu âmago vazio.
E a grande verdade, amigos, é que idéias e esperança também são boas preenchedoras de sacolas (diferentemente do Sol, eu garanto!).
Mas é como eu disse:  dessa vez não houve promessa alguma, só uma negativa! Um "parece que não teremos".
E, puxa!, parece mesmo que barriga tem ouvidos... acordei de boca selada mas com o corpo inteiro aos berros.
Minhas mãos se recusam a pegar as coisas, meus pés não sabem mais o significado da palavra "passo".
Eu nunca me senti muito alguém que pudesse se classificar "ser humano" e sempre tive esse desejo mais que latejante de me tornar uma pedra algum dia logo de uma vez, mas hoje eu não sou ser humano e eu não sou pedra e eu nem sequer posso dizer que "não sou nada" como sempre tive ânsias de enfatizar.
Hoje eu sou um alienígena, uma minhoca, um parasita.
Não sei exatamente o quê, mas certamente algo bem grudento e repulsivo... algo deprimido e rastejante.
Gostaria de dizer o quão maravilhoso o sol está hoje e o céu azul e coisa e tal e todas as coisas girantes e lindas e sempre felizes apesar de.
Mas só me escapam arrotos e roncos famintos, virei uma máquina de sentir saudade necessidade do meu prato principal e deve ser bem por isso mesmo que ele acabou mais rápido do que eu pensava...
Pensamento come as coisas?
Vai ver que sim... porque raras foram as vezes que tive nas minhas mãos e na minha boca meu prato farto de comida, mas agora o universo cisma em me apresentar a bandeja vazia e me dizer que "sinto muito senhorita, mas acabou."

21.11.11

Tem uma flecha bruta atravessada no meu peito e a sorte dela (ou dele) é que faz algumas horas já que não existe mais nada alí dentro que atravancasse sua travessia de um lado para o outro do meu corpo.
Meu coração é a água despejada do balde; se espalhou pelo chão e grande parte rolou pra debaixo dos móveis, outra parte se evaporou.
Sobrou um pouco encharcando meu colo, fazendo minha roupa grudar na minha pele, gelada como o fundo do oceano.
Eu nunca fui grandes coisas, sempre tive só a pretensão.
Há um momento na vida de cada um em que se acha que se achou o rumo e nesse momento a pretensão se confunde com a certeza de ser... mas só se confunde.
Quando se apagam as luzes do palco de repente e sem aviso, no escuro é inevitável ver de novo toda aqela mesma história repetente: não sou nada, nunca serei nada, não posso (não devo!) querer ser nada.
Me apaixonei por uma poesia como quem se apaixona por um ser humano de carne e osso.
Infelicidade a minha que poesia não sabe amar de volta, poesia não sabe repetir: te amo também!
A ponta da flecha que me atravessou o vazio é espetada como o espinho mais cruel da flor mais bonita, mas ainda assim me atingiu como um soco seco e largo e imperdoável de uma pessoa querida que se decepcionou quando descobriu que você não era tudo aquilo.
Meu coração aguado se empoça debaixo das coisas, do tapete, que eu já vi.
Começa a criar mofo e o cheiro ruim não tarda a aparecer.
Fui uma mulher que aprendeu a usar perfume todo dia, que aprendeu que podia usa maquiagem e se esforçar pelas coisas sem que isso deixasse de ser real e sincero, mas hoje meu coração se espatifou subdividido em uma quantidade incalculável de lágrimas e as lágrimas varreram tudo e o cheiro do mofo se sobrepôs ao perfume.
Minhas mãos são trêmulas demais apra alcançar o frasco na última prateleira. Me sinto pequena.
Tem uma flecha entre as minhas costelas e eu não sei o que faço com ela. Deveria arrancar?
Eu não sei, eu não sei o que se faz...
A poesia que me ensinou como se ama  não é só mais um pedaço de papel desses que se rasgam e se amassam com o tempo, é uma maravilhosa ideia dentro dos meus pensamentos e eu adoraria me tornar uma pedra livre desses mesmos pensamentos que me engrandesceram no passado.
Mas meu cérebro lateja, gostaria que a flecha o tivesse atingido em cheio ao invés de o rombo já pre-existente onde deveria haver meu coração.
Mas meu cérebro foi poupado e me sinto como um zumbi.
A única coisa que posso fazer é continuar um passo depois do outro, fingindo que tenho um enorme propósito e me tornar mais uma parte pequena de uma multidão de miseráveis que não têm consciência dos próprios farrapos.
Eu posso queimar o papel onde a poesia foi escrita, mas meu cérebro já foi condenado: decorei os versos um por um e os treinei diante do espelho dia após dia.
Sou a mais miserável dos miseráveis, gravei a ferro quente todas essas palavras grandiosas dentro do meu avesso mas me foi provado contra a vontade que elas carecem de sentido, que elas carecem de uma finalidade. Exatamente como tudo o mais!
Declamei cada estrofe como uma oração e hoje não me é mais permitido entoar essas "palavras insinificantes" que nada mais são que o devaneio que um pobre louco como eu (ou talvez eu mesma) que um belo dia não tinha mais nada de bom para fazer e resolveu descrever o por-do-sol e um abraço e um imprinting nas cores mais lindas que um alguém poderia sonhar.
Mas era só isso mesmo, um monte de palavras aleatórias montadas tipo lego.
Não sou nada, nunca serei nada.
E também a poesia que me deu uma razão para levantar todos os dias e me posicionar diante do espelho.
Nada é nada.
E o mundo continua girando, mesmo depois que você descobre isso, e a felcha continua engasgada no seu peito mesmo se você tentar arrancar com todas as forças.
O coração continua empoçado por todas as partes mas, dizem-me!,  é uma mera questão de tempo até que se evapore por completo.
E enquanto não aprendo a aceitar essa idéia continuo agachada sobre as poças tentando inutilmente juntá-las com as mãos e recolocar minha máquina-de-vida de volta no lugar que é dela.

20.11.11

Força centrípeta

Monto no meu alazão branco e parto com bravura para onde meu destino chamar.
Milhares de sensações de todos os tipos invadem meu corpo e os pensamentos se reproduzem na minha cabeça como malditos coelhos.
Parece tudo maravilhoso por alguns segundos, sinto vontade de me dar um enorme high-five bem na frente de todo mundo.
Mas daí vejo o senhorzinho do algodão-doce mais uma vez e não posso fugir da realidade: reconheço essa paisagem e tudo o que a compõe. Olho para o alto e o céu estrelado é uma tenda de plástico, sinto meu estomago revirante me avisando pela última vez que não estamos indo para o norte, apenas estamos girando os 360 mais uma vez e sempre voltando pro mesmo ponto patético.

17.11.11

Dos ordinários e seus dias ordinários II

Dois pombos esgarçados de chuva me fazem companhia enquanto eu, também esgarçada de chuva, aguardo que qualquer coisa interessante aconteça. Meu coração está completamente esgarçado da mesma insuportável porcaria de chuva e tudo o que se vê adiante (isso, claro, pros que tiverem cara de olhar com força) pode-se resumir a uma poça.
A gente - eu, os pombos e meu coração -, a gente não aguenta mais.
Os carros se atolaram nas próprias rodas e os delinquentes que se auto-proclamam pedestres zanzam de um lado pro outro com feições ranzinzas tipo meio que como se fossem, cada um deles, fumaça de cigarro me atormentando os pensamentos.
Os pombos agora me bicam os sapatos como que eles fossem comida, mas dou-lhes uma bica para longe.
Fico sozinha.
Daí me ocorre de repente que talvez na Índia, ou qualquer um país desses aí, talvez neste exato momento haja alguém com um coração tão esfarelado de aguaceiro quanto o meu.
Suponho então, momentaneamente dotada de uma centelha amarelada que pode ser classificada como "meio que uma esperançazinha boba", uma amizade com o camarada hipoteticamente tão desacalantado quanto sou, mas daí vejo que não faz diferença.
Não faz diferença, não. 'Que a Índia (ou qualquer um desses aí) é completamente fora da minha realidade, essa minha realidade de poça, de gentes esfumaçadas tão indiferentes assim, de barrancos derrubados, de boas ideias soterradas e toda sorte de más-sortes que se possa imaginar.
Esqueço essa baboseira sentimental de acalanto, me foco na sobrevivência e os pombos voltam a bicar-me monotonamente.

13.11.11

Bode expiatório

Em virtude do auto-perfeccionismo, aprendeu com os anos que seus próprios olhos proporcionam (às vezes em frequência simplesmente inacreditável) uma bela quantidade de imagens distorcidas e modificadas pelo inconsciente temeroso, angustiado, tristonho; pela alma cansada.
Daí que quis se auto-corrigir e daí que decidiu que fazia parte da estratégia de retificação olhar pelo menos algumas várias vezes para o mesmo quadro, de todos os ângulos possíveis, antes de reconhecer que o mofo das paredes é realmente mofo.
Por causa disso, hoje não sabe mais o que criou e o que é o que é de fato, feio como realmente parece; por causa disso, hoje é presa fácil de situações absolutamente repugnantes, dado que serão sempre os próprios olhos o alvo preferido de acusações e culpa pela feiura e o cheiro ruim que as coisas por elas mesmas têm.

11.11.11

"I can love you

But we can't romance."
E nesse caso, sinto lhe informar, o amor não serve pra muita coisa.

Sobre tecnologias, decepções e cavernas

É que você tem medo de pegar uma insolação, se isso serve como resposta para todos os questionamentos que eles têm acerca das suas tantas reservas quanto aos dias de sol e etc.
Você, putz!, você morre de medo de transformar algo maravilhoso na pior coisa que poderia existir.
É meio que isso: de coisas ruins a gente já espera coisas ruins mesmo, daí que nunca vai haver decepção, mas nunca! É fácil e é simples assim.
Mas e as coisas maravilhosas? E quando elas maltratam a gente quando deveria ser o oposto?
Você fica dentro de casa, que é melhor pra você... que o seu marcapasso é até bastante high-tech, ele até que é!, mas eu sei e você também sabe que ele não vai aguentar mais uma porrada dessas.

10.11.11

Comida de verme

Eles não olham pro lado, eles não conseguem ver.
Ia subindo a escadinha trôpega como ela só, só que eles não conseguem ver nem os tombos nem os levantes nem o voo nem o deslize nem nada.
Eles não conseguem ver, eles não tem olhos no meio da cara, eles só tê órbitas vazias beliscadas por aves carniceiras em dia de ação de graças.
E o cérebro é deles pra eles e o coração é deles pra eles e a alma é deles pra eles e é tudo deles pra eles e nada escapa dessa bolha de vidro fosco - o tipo de bolha que finge que promete que faz ver mas que só propõe, no final das contas, borrões imbecis.
É tudo deles pra eles, e eles se abraçam cheios de amor enquanto alisam os próprios topetes... e a verdade é que os corvos logo logo partem pras tripas e o diabo à quatro se eles continuarem dando um mole desses.

8.11.11

Sobre medidas clínicas de última instância

Fazia dias que minha goela fazia greve que não sabia se dizer.
Ficava repetindo, feito velha esquizofrênica, que não sabe, que não sabe, que não sabe.
Hoje pela manhã arranquei ela fora com um murro. Sangue para todos os lados, que eu até me dei ao trabalho de antes enfincar um molho de chave entre os dedos (meio que um soco-inglês de pobre assustado).
Daí foi tudo pro chão, as chaves, os dedos, a goela, os tendões.... phew! Tudo mesmo.
E, se quer saber, acho que nem foi com tanta surpresa assim que contemplei depois pelo espelho aquelas boas dúzias de tico-ticos se espreguiçando e daí então dando o fora de lá, dando o fora à toda velocidade... feito umas balas espavoridas de espingarda top-de-linha.
E daí que no fim só ficou mesmo foi um belo de um rombo... e eu vou deixar como está por enquanto. Pelo menos até ter alguma boa ideia (ou uma ideia razoável ou qualquer uma ideia mesmo!) do que é que se põe no lugar da própria língua quando ela resolve que tem assas e daí no pé e daí deixa a gente assim despalavreado sem aviso-prévio.

7.11.11

Sobre crachás e tentativas

Hoje você sente que há uma certa burocracia interna que te impede de dizer as coisas.
É bem isso mesmo, tipo politicagem.
O mundo todo é uma gravata e uma meia dúzia de palavras solenes.
Daí que você se pega tentando aderir à pompa, puxar um cantinho da gravata para si. Só um traguinho.
Só que o vento não perdoa e empurra tudo quanto é pano que só faz fazer peso pra fora. E como se não bastasse, essa gravata não é do tamanho do seu pescoço.
Esse seu pescoço que é largo, esse seu pescoço que é espaçoso.
Alguma coisa dentro do seu cérebro te manda dar um jeito nisso, te vira!
E daí fica aquela sensação de que não existe escolha, de que vai ter que servir, sim senhor. Nem que seja preciso para tal arrancar a própria cabeça (e quem sabe depois improvisar uma de palha no lugar!).
Assim sendo, você apela para toda sorte de artifícios de costura e remendagem e no final do dia o trapo emendado com alfinetes permanece no seu pescoço, enfim, parecendo estar de fato firme e protegido contra vendavais dos mais potentes.
E você, bonito que só, continua se sentindo um idiota (ainda mais) deslocado só que dessa vez com um diacho de um nó do bem apertado que só faz tornar estéreis suas cordas vocais. E nada além disso.

4.11.11

Sobre objetos flutuantes e métodos de resgate

Ele se posiciona em mar aberto com uma mão pro alto cheio de expectativas, que é isso que ele faz de melhor.
A moça passa nadando numa boia bem rente dalí, meio que tirando "um fino" mesmo.
Só que a moça não vê o cara, a moça só vê o mundo todo - o mundo todo menos ele.
Ele não tem uma boia, ele não tem nada! É um coitado de um miserável!
O que ele tem, senhoras e senhores, é unicamente a visão de uma sereia de pele clara nadando a largas braçadas em sua boia colorida e  mandando beijo pro mundo, escrevendo poesia pro mundo, pintando obras-primas pro mundo.  fazendo de tudo pro mundo - esse mundo mesmo que o moço nunca soube fazer parte.
E o moço continua alí, desde que nasceu, se afogando, engolindo água, tentando sobreviver, achando que vai morrer, pedindo socorro com os braços pro alto - o tipo de pedido de socorro que helicóptero nenhum nunca - jamais! - soube entender.
O moço continua alí, agarrado à visão da sereia maravilhosa, a sereia cheia dos dons aquáticos, que essa (a visão) é a única boia que deus ou diabo se propuseram a dar a ele até o momento.

Uns muxoxos de sexta-feira, apenasmente

Sinto minha cabeça vazia feito uma grande bolha de nada.
Me sinto num lapso onde as palavras me saem pelas mãos e não pela voz. Super esquisitíssimo.
É aquela velha historinha que eu sempre choraminguei pelos cantos: é que eu sei, só que eu não sei dizer, não...
Eu adoraria dividir tudo em versos, me ver saindo assim, meio que facetada em rimas ou qualquer coisa que o valha; eu adoraria ter o dom de manejar minhas cordas vocais tipo corda de harpa, de violino, de viola vagabunda... qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo.
Só que hoje não sai nada daqui (só hoje?), acho que se arrebentaram de vez, todas as cordas - e provavelmente por mau uso, já confesso de cara.
E tem gente que me vem correndo pelas beiradas me gritando dicas várias sobre como se dizer as coisas, sobre o que se dizer sobre as coisas.
Sinto muito minha gente, mas no momento minha única e verdadeira questão está mais para "que coisas?".
Que coisas? Não tem coisa alguma, não tem nada, não vejo nada. O Universo se esvaziou pra mim feito balão de festa de semana passada. Ficou murcho e ficou feio e ninguém quer.

Mais ao oeste desse mesmo universo (ou de algum paralelo) existe um riacho que transborda coisas, do tipo de coisas em tons pastéis, do tipo de coisas em si bemol... nunca entendi direito de tons de cores e de tons de músicas. Nem sequer sei dizer o que é cor e o que é música.
Mas o que importa é que nesse riacho tem uma correnteza que é tipo assim um animal, do tipo de animal que é selvagem. Bem isso mesmo.
E é como diz aquele ditado que alguém um dia inventou só pra eu poder copiar agora: as coisas selvagens correm mais depressa.
Meus olhos se brilham todos, se revolvendo no próprio eixo, cheios de admiração para com os animais selvagens e ferozes e cheios de poder e cheios de velocidade e cheios de coisas várias (em si bemol e tons pastéis!)
E o causo é que talvez eu seja só um passarinho doméstico mesmo, nascido e criado em gaiola.
E daí te pergunto: de que é que servem asas ao nati-engaiolado passarinho?
De nada, não serve de nada. Nem de nada e nem pra nada.
Ora, queridinha! Não foi você que me disse que hoje não tem voz? Já viu passarinho sem voz? Em gaiola ou fora dela, tudo que tem pena pia, em si bemol ou que diacho de nota for.
E bom, daí é nesse ponto e meio que por isso que me assumo, não menos que com tristeza, também uma metáfora mais que falha.
Sou e serei sempre só mesmo a da gaiola, tipo aquilo que dizia o Pessoa, e ainda que a portinhola esteja aberta, não tenho mãos para puxar nem pra dentro e nem pra fora.
Sou o passarinho engaiolado que perdeu a voz, simplesmente porque não entendeu que asas e cordas vocais pouco tem a ver umas com as outras.
E o fato é que voar e cantar ao mesmo tempo seria ótimo, mas é privilégio para as aves do tipo selvagem e o fato é, tico-tico engaiolado, que imitar falcão de nada vai te servir num momento como este.

2.11.11

Sobre os iludidos

Se você tiver os olhos fechados, vai é se safar de uma porção de coisas... vai se safar, por exemplo, de saber que aquela mão que você segura com tanto cuidado e força é só uma mão mesmo, que ela nunca chegou a ser uma pessoa inteira, uma pessoa de verdade. Teu tato te enganou, patinho, teu tato te enganou. E pode parar de fazer carinho agora, que não existe coração nenhum ligado à palma e aos dedos que você se esmera tanto em adular.

1.11.11

Showman



"the more she destroys herself
the more frightened of being destroyed by him

the more frightened of destroying him
the more she destroys herself"
- RD Laing

A gente nadava pelo Báltico como se ele fosse quente.
Era esse tipo de coisa que a gente fazia...
E eu me lembro bem das suas largas braçadas
Desnecessariamente largas, se quer mesmo saber.
Você não era forte, agora eu sei.
Você era só extravagante.

Exodus II

Não sei o que estou fazendo, me perdi.
Não sei que linha do metrô é essa, não sei quem é que são esses que tentam me dizer em que estação eu parei, pra que estação eu tenho que ir, etc, etc.
Vejo com curiosidade que ela, a menina do lado de dentro do trem, prefere não se sentar apesar de quase todos os lugares estarem vagos.
Ela se mantém de pé, num saltinho discreto mas bom o bastante para dar aquela levantada estratégica na panturrilha. O cabelo dela é oleoso, e ela é bonita mesmo assim.
Já eu me visto como um trapo. Ainda que coberta de brilhantes, eu estaria vestida como um trapo, eu sei disso.
É que eu não sei ser cabide pra moda, é que eu só sei ser cabide pra problemas.
Parece que passam pelas minhas tangentes e penduram nos meus ombros e pescoço toneladas de palavras inúteis (tenho preguiça de lê-las!).
Mas ninguém me passa a mão na cabeça para me ajeitar os fios soltos.
Nem eu.
Mas espera, acho que me expressei mal... acho que eu sei exatamente onde estou, não me perdi.
A questão na verdade, agora vejo,  é se é aqui mesmo que eu deveria estar, se é mesmo esse trem ou se é o da esquerda. Sobre a estação eu sei, sobre a linha eu sei, sobre o trem eu sei, sobre o percurso eu sei, sobre a menina eu sei (e até sobre o shampoo que ela usa , eu sei). Só que eu não sei de mim.
A porta continua aberta, por sabe-se lá quantos segundos mais, mas eu não consigo dar o passo adiante com tantas bagagens verbais à tiracolo, com tantos diamantes (teóricos) mal vestidos por todo o corpo.
E me dá vontade de rir, porque não importa o que me diga o joalheiro: aposto que são todos falsos.

Sobre comparações

Moro nesse lugar que é tipo uma fazenda.
Tem um catavento que eu nem nunca vi girando apesar de todas as folhas do chão do terreno ao lado estarem em constante alvoroço.
Acho que ele é grande demais, ou então enferrujou.
No lote ao lado tem uma garota de franjinha bem rente e canelas magrelas e ela nunca me deu oi, e ela nunca nem nada.
Ela só anda por aí conversando com coisas inconversáveis tipo lascas de casca de árvore e os próprios joelhos.
Dentro da minha casa existe uma grossa camada de pó sobre todas as coisas e por mais que eu tente espanar nunca pude fazer nada sobre isso. Parece que é tipo um feitiço que já estava lá quando eu cheguei.
Meio que como o catavento, nada na minha propriedade funciona. Nem eu.
Em tardes como esta me sento na beiradinha da cerca de arame farpado correndo todos os ricos de me ferir. É o que há de mais emocionante para se fazer por aqui, correr o risco de me ferir.
O riacho fica no terreno da garota de franjinha, e ela nunca me chamou pra ir por lá.
Fico aqui debaixo do sol mesmo, vendo minha pele descamar em outras peles que não sinto serem minhas de verdade.
Tenho certeza absoluta que a qualquer momento chegarei a uma camada de mim que é na verdade outra pessoa. Completamente outra pessoa. Certeza disso.
Mas em compensação a garota nesses cinco anos nunca cresceu sequer um milimetro, e nem a sua franjinha. Tampouco suas canelas engordaram.
E tem dias que o sol me fere tanto a sanidade que penso que a divisória entre o meu terreno e o dela é um espelho ou uma televisão em constante replay de algum filme antigo de família.