29.12.11

Ice

Não existe borboleta na Antártica.
O subsolo esverdeado me dá claustrofobia e curiosamente esse subsolo esverdeado é a minha casa.
De longe alguém inventou uma sequência de notas que canta a superfície, porque de longe é só o que se pode ver: o exoesqueleto do continente.
O subsolo esverdeado é a minha casa e ninguém fez uma música para ele ainda.
É que música não toca debaixo d'água... deve ser bem isso.
Eu também não posso viver debaixo d'água e minha casa é o subsolo esverdeado sem espaço pro ar, minha casa é o lugar onde eu não posso fincar os pés nem permanecer por mais que uma centelha de segundo.
Eles falam de transformação: verme que cria asas e vai embora.
O verme não pode ir embora para a Antártica, e nem eu.
Alguém inventou um jeito de chorar que descreve com precisão as imensidões branco-diamantadas e algumas transparências com quês de azul; e é só a pele: uma casca fina de pó.
Igual minha pele que me serve como enciclopédia de mim: absolutamente não me serve.
E ainda assim é o único hino que tem, ainda assim se for para cantar o gelo a gente canta a brancura mesmo; a gente deixa o verde para lá assim como a gente um dia deixa para lá a casa que é nossa e que a gente simplesmente não pode colocar capacho de boas-vindas para borboletas, a casa que é nossa mas só se a gente fosse outra coisa que não nós mesmos.

24.12.11

Alles Nahe werde fern II

Tudo o que está perto se afasta, como os farelos de João e Maria que os passarinhos vão levando embora sem a gente se dar conta.
Quando a gente chegar lá (se é que a gente um dia vai) não a gente vai ter nada nos bolsos pra gente lançar no canteiro e ver se dá árvore de pão.
E não interessa se árvore de pão não existe: era isso que a gente queria, foi isso que a gente sonhou...
Mas a gente foi largando as sementes por aí, uma de cada vez, cada vez com uma desculpa diferente; e o caso é que não dá mais pra pegar de volta que o caso é que o passarinho não volta mais.
E eu não sei que é que se faz com estas mãos incontinentes que deus engenhou, tão cheias de espaços entre os dedos, e eu não sei que é que se faz com esses braços fracos que não abarcam as coisas importantes por tempo o suficiente. Eles são magros demais: a qualquer hora elas sentem frio e vão embora.
Tudo o que está perto um dia vai para longe, e a saudade é sempre o capítulo final de todo livro.

20.12.11

Ás de Copas

A Lua entra escandalosa pelo par de janelas e a mesa central espelha o céu e os outros pares de janelas dos outros edifícios.
Há uma lembrança carcomendo as paredes - essas paredes que em compensação são tão novas -, um monstro sem olhos que engole todas as coisas e que se arrasta pela minha sombra como se estivesse atado aos meus pés. Meio que como se fosse meu cachorrinho de estimação (ou eu o dele).
Não existem dúvidas sobre como é que se chega no céu: se chega no céu indo para cima.
E ainda assim a gente senta para conversar, a gente arremessa o pêndulo um para o outro esperando uma solução.
O céu é pro alto, é pra lá que se vai.
Mas como é que se vai?
Eu não sei, você também não, e nem o monstro e nem as paredes novas.
Ou talvez a gente saiba, mas é que não temos foguete. É bem isso mesmo...
Puxa...
Nós não temos um foguete.
A gente não tem nem pipa, nem molas gigantes e nem asas.
A gente tem um par de braços cada um e a gente agita eles por aí e isso só faz cansar os ossos e a gente termina alí na esquina mesmo, sentindo cãibra e só. nos dois sentidos.

Não há muito o que ser dito. A gente tranca as bocas por um tempo e fica só ouvindo o chiado do monstro se alimentando das coisas que a gente achava que já tinham ido embora, se alimentando das coisas que a gente tem medo que um dia venham fazer coro.


["La noche esta estrellada y ella no está conmigo."

Não sei o que acontece com a minha cabeça que se enche de poesia dos outros quando minha boca não sabe versear por ela mesma.
Saio do foco, do ar, do mundo.

"Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo."

As poesias são sempre dos outros... e quando acho uma poesia que é minha descubro que as palavras certas não existem e daí ela fica sendo só um sentimento mesmo.]


Sinto minha respiração duplicar, um certo cheiro de pulmão dos outros (um outro menos "outro" que os poetas, no entanto) e me ergo vários centímetros no ar.
Estou deitada na mesa-espelho e o céu sob meu corpo. Olho para o alto e descubro que o tal do céu é por ele mesmo também um enorme refletor, talvez o maior de todos: lá estamos nós de repente, exatamente como a gente queria. Lá estamos nós - irrefutavelmente nós - competindo com o escândalo lunar.
A gente não precisa de foguete.

11.12.11

Achava que sabia o que era, achava que podia ver.
Nada pode ser visto e nem sabido e isso é um fato do qual não se pode fugir.
Tudo o que a gente vê é a gente e tudo o que a gente (acha que) sabe é a gente também.
Nunca pôde fugir dos limites dos próprios globos oculares, nem mesmo quando encarava o brilho que sol enviesado tascava no cume da lagoa.
Nem isso nunca soube, nem isso nunca viu de verdade.
Tem dias que pensa que a lagoa é um poço de lama e tem dias que pensa que a lagoa é o próprio coração dos deuses.
E a verdade é que ela nem é isso e ela nem é aquilo e ela nem é nada pro mundo de quem olha; só pra ela mesma.
[E nem pra ela mesma talvez ela seja, mas daí isso já é outra questão.]

3.12.11

For Sale

Sempre tem essas disputas de terra por todos os lados.
Leões, matilhas e seres humanos continuam mijando nas coisas que lhe parecerem preciosas, saindo no tapa, escrevendo papeladas de autentificação, adulterando papeladas de autentificação, enfincando bandeirolas.
A Rainha tinha uns lotes de terra de vegetação exuberante e os geólogos sobrevoavam toda a área de helicóptero prevendo diamantes no subsolo.
Sujeitos maltrapilhos disputavam quedas-de-braço no bar mais próximo como quem achasse que a posse das terras seria resolvida assim.
Um camarada (ou dois) armou acampamento  na frente dos portões e disse que dalí não sairia até poder entrar.
Daí que um dia apareceu um rapaz engomadinho carregando uma maleta com seu nome de guerra estampado no couro e a verdade é que  a gente sempre espera algo mais triunfante de um desbravador escocês , algo que não envolva um mini-pente enfiado metodicamente no bolso da camisa tipo just in case por exemplo.
Mas dentro da mala do almofadinhas couberam cinco barras grossas de ouro e ele prometeu trazer muito mais de onde ele veio.
Assim sendo, todos os demais interessados foram sumariamente dispensados e os cofres e as minas e os melhores tecidos e as melhores damas e os melhores quitutes foram postos sobre o gramado.
Tudo humildemente ao dispor do novo dono do pedaço.
Só que o novo dono do pedaço  deu uma boa olhada em tudo - talvez não tão boa assim - e deu o fora sem dar nenhuma explicação convincente.
Mas a Rainha sabe: ele deu o fora, que a gente não pode dar joia pronta pro lapidador senão ele se entedia, que a gente não pode levar a Lua até o homem que assim é ela que enfinca a bandeirinha nele e não o oposto.
As cinco barras de ouro deveriam ter tido como resposta cinco barras de ouro e só, e se ele quisesse mais que trouxesse também uma sacola de diamantes pra começar.
E a diferença entre caras normais e desbravadores escoceses é que pros caras normais você pode dar o manual do jogo e ainda ganhar um baita de um beijo depois, já pros outros essa é a última coisa que você deve fazer se quiser deixá-los por perto de verdade.

Poço dos desejos

Deu-se o dia em que fui surpreendida por um gênio esfumaçado na beirada da rodovia.
Eu andava por lá mais perdida do que qualquer pessoa desse mundo jamais esteve, eu aposto.
O gênio me disse que me concederia um desejo, de qualquer espécie, que se realizaria quando eu batesse os calcanhares.
Passou pela minha cabeça pedir pra voltar pra casa, mas seria um desperdício de desejo: nunca tive uma casa.
O fato é que sei lá por quê deixei o coração me atropelar o raciocínio e foi assim que ele tomou as rédeas da minha voz e pediu que o sujeito me desse a capacidade de respirar debaixo d'água pra que eu pudesse dar um mergulho profundo bem naquela lagoa no matagal do outro lado da estrada.
Três segundos depois era eu de olhos abertos a uns cinco metros de profundidade (parecia muito mais!) observando o leito sombrio que antes eu só imaginava.
No começo foi bom. Nadei toda a sua extensão, exceto quando a vegetação se adensava e me impedia a passagem.
Mais para as beiradas era só lama. Quem tentasse nadar vindo por fora se atolaria, certamente.
Me senti a mais vitoriosa das pessoas, a mais felizarda, a mais encontrada.
Eu nunca tive uma casa, mas e daí? Agora eu nadava na lagoa, era isso que eu fazia. E era o suficiente.
O gênio nunca me deu um prazo, eu achei que eu ficaria por lá mesmo por toda a eternidade já que o lado de fora do mundo não era pra mim.
O gênio nunca me deu um prazo, mas isso nunca significou eternidade pra natureza.
Todas as coisas chegam a um fim, sobretudo aquelas que não fazem muito sentido do ponto de vista dos embaladores de caixa na fábrica de seres humanos.
Era fácil ignorar os esganiços da população local do lado de fora achando que eu iria morrer - debaixo d'água a gente fica surdo.
Eu poderia ficar lá pra sempre, eles poderiam me enviar guinchos bem-intencionados (mas quase sempre mal-intencionados), eles poderiam me enviar salva-vidas... o que desse na telha deles.
Eu nunca sairia de lá, eu já havia decidido.
Eu planejei amarrar minhas pernas ao fundo com os retalhos da minha roupa e interpretar papel de transatlântico naufragado até que as algas e demais variedades do leito me encobrissem pra que eu virasse de vez parte daquele ecossistema.
Só que daí a lagoa me pôs pra fora.
Eu não conseguia mais me manter no fundo, a água me empurrava pra cima até que eu ficasse boiando. Daí que não adiantava de nada saber respirar feito peixe, não adiantava de nada.
Saí de lá derrotada numa manhã qualquer e voltei a perambular no meio-fio, só que então completamente encharcada.
Penso agora que as palavras certas fazem toda a diferença, penso que pedir pra saber fazer parte de algo é uma via de mão-única. 
Talvez tenha sido muita vaidade confiar grandes propósitos envolvendo 7,5km de extensão a uma mera mudança no funcionamento dos meus pulmões.
Penso que talvez eu devesse ter pedido pra lagoa saber fazer parte de mim também.