30.4.11

Sobre pavios que não se acendem sozinhos

Quando a gente se topou, eu vinha carregando uma sacola cheia de pots-a-feu, serpentes voadoras, morteiros e rojões.
Quando a gente se topou, você vinha com as mãos no bolso carregando um isqueiro vintage enorme e muito chique.
E o universo conspirou, e as estrelas se alinharam de tal forma que eu ousaria dizer que já estava tudo mais que planejado.
BUM!.
Seu isqueiro acendeu na hora exata e aí aconteceu.
E a gente parou pra olhar, e a gente parou tudo mesmo.
A gente ficou olhando desabrocharem no céu as cores várias e as formas várias que catástrofes pré-pensadas podiam ter.
Em algum momento, me veio a cabeça que era tudo uma grande festa.
Eu acreditei piamente nisso, sabe?
E eu acreditei que você pensava o mesmo enquanto aplaudia admirado qualquer morteirinho de jardim que desse as caras.
Mas foram escaceando, escaceando, escaceando... foram cessando de gritar e brobulhar os fogos, e foi aí que começou a secar a garganta, a roncar o estômago também.
E foi aí que houve espaço pro silêncio se pronunciar.
Porque na nossa festa não tinha guaraná, não tinha champanhe, não tinha cerveja.
Na nossa festa também não tinha caviar, não tinha coxinha, não tinha nem amendoim!
Na nossa festa não tinha música.
E a gente se sentava ao canto às vezes e falava de Pink Floyd, mas Pink Floyd não dá pra dançar.
Aí a gente procurava um outro canto e falava de Beatles das antigas: do Please Please Me até o Help.
Uau! - dizia eu.
Pena é que você não partilhava desse meu gosto e nunca me chamou pra tentar o Twist and Shout.
O salão ficou pra sempre vazio, e a gente não viu.
Na nossa festa não tinha bandeirinhas, não tinha balão, não tinha serpentina..
Na nossa festa não tinha mais ninguém, só você e eu e os nossos fogos moribundos.
Se a gente quisesse que ela continuasse a gente deveria ter providenciado os comes e os bebes, e ter procurado a música certa na estante de CDS.
A gente devia ter dado o play.
A gente devia ter ido escolher uma decoração, mas a gente não o fez.
A gente achou que o show iria durar pra sempre, assim... movido a vento, movido a rotação do grande moinho Planeta Terra, movido às nossas hidrelétricas particulares: veias pulsantes, ou sabe-se lá mais o que.
Mas não aconteceu.
Talvez o planeta tenha estacionado, talvez nosso coração não bombeie mais nada que preste.
Mas eu gostaria, de verdade, que houvesse mais um pouco de festa e é por isso que de qualquer jeito ando posicionando minhas últimas bombinhas na sacada e torcendo pra que você perceba que as faíscas inciais infelizmente são ainda por sua conta.

28.4.11

Sobre foguetear por aí sem escudo e sem capacete

Você caminhava por aí aos tropeços de tanto girar os trezentos e sessenta  graus pra tentar descobrir de que lado chegavam as flechas.
Talvez fossem invisíveis... você não sabia.
O que sabia era que doíam bastante na hora do impacto.
E que doíam bastante também depois que o impacto cessava, mas o metal continuava enfincado na carne.
Pensava: é preciso ser forte e tirar de mim o que não é (mais...) meu.
Mas na hora de tirar sempre desmaiava, sempre tinha alguma outra coisa mais urgente pra fazer.
Daí ficava com aquilo espetando o coitado coração, espetando tão fundo que, se existe alma, tinha certeza que chegava até lá.
E daí pra não doer tanto, você descobriu que bastava não respirar mais, e daí não se mexiam os pulmões e tudo permanecia em pura anestesia.
O que é uma pena é que começaram a chegar na soleira da sua porta umas flores com cheiro de hades, e esse tal desse cheiro de hades te fazia lembrar que não era bem esse o caminho; te fazia lembrar que remédio forte resolve bem, mas que também tem contra-indicação pesada demais para ombros tão fracos quanto os seus.
Daí abria os olhos em uma sexta de epifania e arrancava todos os estilhaços com uma fúria hercúlea.
Três minutos de liberdade até que chegassem as novas inquilinas cicatrizes.
Vinte mil, trinta mil, quarenta mil, e todas elas juntas formavam uma frase meio assim: "você, simplesmente, não pode esquecer".
É. Você não podia esquecer não.
Você ainda não pode, mesmo enquanto avança alguns quilômetros a mais pela estratosfera, rumo ao espaço sideral -você acredita: seu lar.
E é rumando para lá que você começa a perceber que é bem de lá mesmo que saem os tais dos dardos pontiagudos.
É por isso, talvez, que eles nem doam mais tanto....
Não doem, agora não é mais talvez.
Agora tem certeza.
Porque você descobriu algo que dói mais forte, e esse algo é a consciência de que seu paraíso te rejeita.
Que as agressões poderiam vir do sul, do leste, do oeste e do meio, mas vêm do norte só porque você o quer.
E você pensa muito em desistir, mas só pensa... e enquanto pensa já se passaram mais trinta quilômetros e mais trinta mil pontadas atingiram o seu peito de carne viva.
Você ainda fica sem ação.
Você ainda não sabe o que fazer.
Você nunca vai saber e é por isso que você nunca vai fazer nada, você não vai girar o volante e você não vai acelerar.
Você vai esperar que seu monstro banhado a ouro se decida se já chega de bullying ou não.
E, você ressalta, você vai esperar... porque, como se a essa altura do campeonato fosse grande coisa, você não nasceu pra pedir arrego. Hahá.
"É isso aí, seu monstro", você diz.
Daí então você continua marchando sobre as nuvens com o teu novo combustível chamado orgulho com válidade máxima de uma semana e finge por uns dias que tá tudo bem.

25.4.11

Sobre inevitabilidade e negligência de tal


Não raro acordava com a perna direita dormente.
Era engraçado nos primeiros segundinhos enquanto se dava conta de que era o vigésimo oitavo, vigésimo nono, trigésimo dia consecutivo.
Era de se esperar, por conseguinte, que a experiência no assunto se fizesse valer quando desse a iniciativa (muito prorrogada) de se levantar da cama por fim.
Mas era só vir a dor e o passado de prática e treino se esvaía com um enorme "AI!"
Já sabia: a dor iria embora quando permitisse a ela que alcançasse seu clímax, quando a confrontasse, quando pisasse firme, como homem, de uma vez por todas no chão.
Sempre se perguntou de que serviam as teorias se o aprendizado real vem com a prática.
Agora se pergunta de que serve a prática se a dor dói forte de qualquer jeito.
E pensava que a conhecia, que já eram íntimos depois de tantos encontros matutinos; e pensava que seu organismo já estaria acostumado, e pensava que, se fosse pensar bem, das outras vezes nem doeu tanto assim.
E agora o que pensa é somente que lembranças têm um ponto fraco (ou forte?), e que esse ponto fraco é que se baseiam apenas no que se pensa na hora em que as coisas acontecem e não é como se elas realmente estivessem acontecendo de novo.
Sobre as experiências anteriores com a dor, pensava: doem.
Mas "doem" é apenas um conceito vazio que só vai se fazer valer quando o verbo se consumar de novo.
E quando ele se consumar de novo, o que vai acontecer é que as lembranças de nada servirão, serão rebaixadas ao ridículo.
Nenhuma memória de dor se compara ao ato de sentí-la.
E aí, apesar de tudo, apesar de já saber que basta colocar o pé no chão e aguentar firme, vai continuar pulando de um pé só pela casa, como se uma hora o momento de voltar a ser bípede fosse vir de graça e a dor fosse escolher outro inquilino para bater à porta.

20.4.11

Sobre complementos

Desde criança lia nos livros e via nos filmes e ouvia nas músicas coisas várias que diziam tantas coisas mas que na verdade diziam uma só, e era ela: é preciso, custe o que custar, achar seu farol.
A mensagem subentendida ficava martelando a cabeça noite e dia, dia e noite, e era só fechar os olhos pra ouvir as pancadas bem forte no coração.
Vezes várias quis chamar alguém pra recostar o ouvido em seu peito pra ouvir também, e entender aquilo tudo que sempre vivia repetindo sobre o tal do farol, mas só quis.
Nunca teve coragem de pedir que alguém tentasse decifrar seus batimentos cardíacos.
E quem é que iria querer?
Ficava no canto e ouvia à moda ímpar mesmo.
Custe o que custar...
Custe o que custar!
Daí se levantava num salto e ia correndo por aí olhando por todos lados tentando coar as luzes fúteis da cidade e descobrir se em alguma parte dela se escondia um raiozinho qualquer, qualquer pontinha boba, de uma luz verdadeira.
A luz que fizesse seus olhos enxergar.
Mas era puro desgaste: tanta coisa cegava e outras tantas fingiam que faziam ver mas era tudo mentira e no final das contas não sabia mais em que feixe de luz acreditar.
Rodou por mil esquinas, os olhos avermelhados se forçando a não piscar.
Seguiu semáforos enganadores umas quatro ou trinta e sete vezes - algumas delas com plena consciência do erro.
Mas daí um dia viu uma sombra incomum, sobrada num cantinho de marquise do sobrado da esquina menor.
E essa sombra incomum era incomum porque dançava ao som das ondas, assim mesmo, tão longe do mar.
E ia pra cá e pra lá e voltava e fingia que vinha e fingia que ia ficar mas daí se afastava de novo lá longe no horizonte.
De um lado pro outro, de um lado pro outro.
E agora eram duas pernas obsecadamente perseguindo seus zigue-zagues por ruelas e high-ways das mais violentas.
Atropelou caminhões inteiros, com tanta pressa que tinha de chegar do outro lado.
Não socorreu os feridos.
E a cada metro que engolia aumentava proporcionalmente a largura do feixe vai-e-vem, cada vez mais grandão, cada vez mais com cheiro de mar.
Até que algumas eras depois topou realmente com uma coisa gelada e salgada demais apra ser só cheiro.
Aí o raio dourado se esquivava agora de fato entre ondas de três metros e batia um medo tão grande, naquele peito ainda ecoante da missão, de ser tragado como um fumo barato pelo monstro que se impunha entre seu miocardio e seu farol.
E o farol... ah... O farol!
O farol se erguia inabalável entre as garras do oceano, como quem diz:
"Aqui, onde se afogam os meros mortais, solidifico a minha existência. Venha até mim quem se acha capaz de enfrentar o sufocar pela claridade."
Ou qualquer coisa do tipo, aquele coração sempre entendeu tudo como quis e qualquer piar de bem-te-vi virava declaração de amor.
E foi assim, por causa desses ouvidos tortos, que se atirou no mar e a largas braçadas alcançou a fonte da luz, a fonte da verdade, a solução para todas as questões - pensava.
Alcançou o mapa que daria as coordenadas precisas de para onde deveria trilhar.
Com o toque sutil das mãos trêmulas abriu o portal de madeira, e, como que para compensar o tempo perdido com as luzes falsas, subiu o caracol infinito da escada a três degraus por vez.
Quando chegou lá em cima, ofegando, havia um holofote.
 E só.
Quando chegou lá em cima, olhou pela janela e alí estava o mundo, igualzinho ao mundo de onde veio.
Alí estava tudo igual e a luz só ia até aquele ponto, até aquela marquise do sobrado da esquina menor...
Nas outras direções só havia o mar... e deve até ser bom pra quem sabe nadar, pra quem quer nadar.
E era aí que pensava: sei nadar, mas quero?
E, quando chegar lá, o que é que vai haver além da luz se ralentando até sumir? Além do mesmo escuro de onde saí?
Tentou, com o desespero típico de quem já desistiu, amarrar o farol em torno da cintura para ver se era possível carregá-lo por aí para que sua luz alcançasse mais além de si mesmo.
Mas o farol se negava, se exibia orgulhoso como rocha cimentava sobre rocha, no melhor lugar em que se poderia estar.
E pra que é que ele iria querer sair dalí? 
Então as mesmas pernas que corriam obsecadas há tão pouco tempo, agora murchavam e se recostavam humilhadas na beiradinha do rochedo.
O ditado que veio do coração, até ele!, era mentiroso.
Porque havia achado o farol mas o farol não queria achar é nada.
O farol só queria ser achado e pronto e acabava aí.
E ele mostrava o caminho, mas não tinha olhos pra olhar outro e não tinha pernas pra caminhar por outro e não tinha coração pra querer outro.
O farol se encerrava em si.
Em contrapartida as pernas agora em cãibra nem lá e nem cá (nem dormida e nem curada) latejavam porque não podiam simplesmente contentar-se com si mesmas.
Precisavam extravasar os próprios ossos, arrebentar a pele e ser mais que pernas.
As pernas desejavam ser luz também.
E foi assim que pegou uma lanterninha e começou a brincar de ser farol, mas um farol diferente:
Um farol caminhante, um farol sem foco, um farol sem decisão, um farol sem sentido de ser.
Mas um farol de possibilidades várias.
E esse farol agora espera, ansiosamente, que algum dia seu feixe de luz esbarre em algum outro farol também caminhante.
E aí se duplicarão e aí se completarão, e aí farão pelo menos cento e oitenta graus de compreensão, seja lá o que houver por aí para ser compreendido.

11.4.11

Sobre Falso Querer

Era engraçado como sempre sobrava uma janelinha azul brilhante no meio do céu escurecido de tempestade.
Era engraçado, eu sempre achei que ela estava alí que era pra gente passar por ela, que era pra gente chegar lá, no nosso OZ.
Curioso terem (deus ou sei lá o que) colocado aquela janelinha lá, a parte mais difícil.
Colocaram ela lá e ela gritava sorridente algo como "VENHA!".
E eu queria ir, eu queria.
Mas aí olhava pra cima e percebia que algo essencial faltava: a escada.
Não tinha degrau!!!
Nenhumzinho.
Eles botaram aquilo lá em cima como uma grande piada.
Só pode ser...
Uma piada.
Era como me mostrar tudo o que eu poderia ter e ao mesmo tempo esfregar na minha cara pálida que a verdade das verdades é que não: eu não poderia ter não.
E as andorinhas atravessavam o tunel da toca do coelho da alice na maior das facilidades, e daí iam-se todas cantando:
Que peninha de quem não sabe voar!
Que peninha que me dá!

Que peninha de quem não tem peninha
Não tem peninha pra voar!
Que peninha que me dá!
E eu olhando, e fazendo toda sorte de gestos obscenos e respondendo um "pois eu não queria mesmo!" muito pouco convincente.
Daí sentava à mesa do chá e fechava bem forte as cortinas e tapava bem tapados os ouvidos e daí ia ver tv ... que ver tv  é mais fácil que ir no bosque serrar carvalho forte pra fazer os primeiros degraus.


10.4.11

Sobre o banco de reservas

Eles te esconderam colocaram atrás do piano faz um certo tempo já.
Você, inocente!, pensou que fosse também um lugar de destaque e ficou se exibindo orgulhoso para umas poucas aranhas e traças.
Não deu muito e as tais das aranhas começaram a prender suas teias em você e as tais das traças começaram a se interessar também.
Você não se importou, você  queria que fosse  achava que era simplesmente um sinal das coisas se estabelecendo, que dalí você não sairia mais porque se integrou ao ambiente.
Quando os cupins começaram a mastigar sua estrutura você repensou isso, você repensou se era a esse ambiente que você gostaria de se integrar. Mas interrompeu o pensamento antes de saber a resposta, porque já sabia que ela seria doída demais.
Você se pegava uma ou duas vezes por dia pensando que era bom que o mofo começasse a aparecer logo, assim eles sentiriam o cheiro e tomariam as providências.
Mas nada, nem sequer ouvia reclamações.
"Como - você se perguntava indignado - poderiam eles passar imunes ao mesmo algo que me destroi completamente?"
Você gostaria, agora sem remorso, que eles começassem a mofar também.
Você gostaria que eles sentissem na pele o corroer das traças e aí eles saberiam, e daí eles te dariam o valor.
E daí eles te tirariam de lá, daí eles te limpariam, te devolveriam à sua moldura feita sob medida e daí.....
Daí te pendurariam de novo na parede central da casa, onde te fizeram por muito tempo acreditar que fosse o seu lugar e de onde te tiraram ao primeiro sinal do desbote.

8.4.11

Sobre teimosias

Sou pérola não senhor.
Sou concha vazia, igualzinha àquelas tantas boiantes entre ondas, afundantes em leitos escuros.
Sou frasco usado de bichinho molengo. E só.
Sou pérola não, já disse! Esquece pérola que em mim você não acha...
Sou casca manchada, quebrada... aliás, mais que quebrada: sou casca quebradiça, bem daquelas que prometem se esmigalhar ainda mais logo logo.
Se quiser pérola vai ter que olhar melhor no mar, enfiar a mão mais fundo, esperar uma onda mais promissora.
A única coisa que te peço é que, se não for mesmo usar, me devolva de uma vez pra areia que já vi gente fazendo cordão de conchinha e amanhã pode ser meu dia de sorte.

Sobre escudo de estrelas

Você cansou de dizer que quer dizer.
Você cansou de enfiar a cara no travesseiro (bff) de noite e pensar que de amanhã não passa.
Que você vai lá, vai sim, você vai lá e você vai botar pra quebrar.
Você cansou de ser 'da pá virada' só de madrugada quando não tem ninguém olhando.
Quando não tem balde pra chutar, quando não tem pau da barraca pra dar um pontapé, quando não tem baiana pra rodar, quando não tem pá pra virar.
Você cansou, você quer se decidir se você é o cordeiro ou se você é o lobo.
Teu coração uiva, mas teu corpo treme e você tem é medo (muito!) de se sufocar com tanta lã.
Você cansou de ser da Lua, só ela te escuta, só ela te teme, só ela te ama pelo que você é.
Loba só da Lua...
Lobismulher, eu vejo tua transformação!
Chega o sol e você é outra.
Chega o sol e varre tudo e quando você o vê atravessando a rua ao invés de você gritar "canalha!" você dá um sorriso e pergunta como vai.
Putz... você pergunta como vai!!!
Mas agora você cansou, você vai fazer o que tem que ser feito.
E você já decidiu:
De amanhã não passa.

Deja vu

Senta com as mãos na cabeça e espera.
Espera um tempão, espera muito.
Olha a caixa do correio e nada.
Vira as costas e finge que não liga.

Senta com as mãos na cabeça e espera.
Espera um tempão, espera muito.
Olha a caixa do correio e nada.
Vira as costas e finge que não liga.

Senta com as mãos na cabeça e espera.
Espera um tempão, espera muito.
Olha a caixa do correio e nada.
Vira as costas e finge que não liga.

Senta com as mãos na cabeça e espera.
Espera um tempão, espera muito.
Olha a caixa do correio e nada.
Vira as costas e finge que não liga.

Senta com as mãos na cabeça e espera.
Espera um tempão, espera muito.
Olha a caixa do correio e nada.
Vira as costas e finge que não liga.

Senta com as mãos na cabeça e espera.
Espera um tempão, espera muito.
Olha a caixa do correio e nada.
Vira as costas e finge que não liga.

Senta com as mãos na cabeça e espera.
Espera um tempão, espera muito.
Olha a caixa do correio e nada.
Vira as costas e finge que não liga.

Senta com as mãos na cabeça e espera.
Espera um tempão, espera muito.
Olha a caixa do correio e nada.
Vira as costas e finge que não liga.

Sobre deixar ir

Alguém tinha que dizer pra ele parar.
Porque o barco furou, ah, se furou!
Furou foi feio...
Aliás, um furo não.. um rombo!
Do tamanho da Lua... não, da Lua não! Do tamanho de Júpiter inteiro.
Sim, sim...
O barco roubou, um rombo do tamanho de Júpiter.
Alguém devia dizer pra ele parar.
Ele já pode parar, ele devia...
Eu vejo os braços cansados e dói até em mim!
Dói até em mim a cãibra no pulso, o tal do pulso que está cessando de pulsar que eu vi.
Mas ele pega o remo e revira e puxa e empurra e solta uns agudos esquisitíssimos quando não consegue simplesmente controlar a garganta.
Seria o meu herói, ele, se o furo fosse pequeno... se a gente tivesse durepoxi, massa corrida, sei lá!
Mas a gente não tem, e o furo... phew! O furo é enorme, simplesmente.
Eu vejo ele daqui, é uma janela pro fundo do mar!
Tão fundo, esse fundo do mar, que eu já nem sei.
Ele segura um remo em cada mão.
E a gente devia mesmo chamar de remo?
Já se gastaram tanto os instrumentos que agora mais se assemelham a patéticos gravetos.
Mas ele rema mesmo assim.
Ele remaria com as mãos, se só tivesse elas mesmo.
Mas pra que ia servir? O barco furou, todo mundo foi ao mar, todo mundo tá por aí correndo a longas braçadas (às vezes não tão longas assim!), todo mundo tá por aí salvando a pópria pele, todo mundo tá por aí se afogando, morrendo.
Mas todo mundo tá por aí.
Ele não tá, não.
Ele tá no barco, o barco que não vai nem pra frente e nem pra trás.
O barco que vai a cada segundo um milimetrinho mais pra baixo.
O barco que tem um rombo do tamanho da Lua!
Da Lua não.,.. de Júpiter.




Sobre decepção

Amadeu quando tinha nove anos, gordinho que era, vivia rondando a cozinha fumacenta da avó com o pescoço esticado tentando descobrir de tudo o que estava no balcão.
Amadeu não conhecia o grande perigo de se esperar demais das coisas e era bem por isso que quando via o creminho amarelinho trancado no pote não pensava duas vezes e enfiava o dedão pra provar o gostinho doce de creme holandês.
Olhava de um lado, olhava do outro,tentava mastigar a papa insossa, sentia o cheiro... e daí a repulsa.
ANGÚ!
"EEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEECAAAAAA!!! TÔ FORA, VÓ!!!"
E aí cruzava os braços roliços e se avermelhavam as bochechas fortemente com a zangueira toda.
Amadeu era mais chegado em doces.

Amadeu quando tinha 21 anos, inocente que era, viva rondando as praças e os clubes e as redes sociais com o sorriso alargado tentando conhecer gentes boas para serem companhias de conversas (e, quiçá!, um namoro!?).
Amadeu não conhecia o grande perigo de se esperar demais das pessoas e é bem por isso que quando blá blá blá blá blá...

2.4.11

"Não há nada em lugar nenhum."

Pelo menos era isso o que eu queria... o nada justifica ausências muito melhor que o "tudo", como se sabe.

Sobre aceitar o clichê

Muito tempo se construíndo.
O tempo todo, eu diria.
E erguia justamente as cartas que (achava) nunca antes haviam sido erguidas.
Alinhava os astros de maneiras que fugiam à compreensão de qualquer um.
E o dois mais dois jamais deu quatro.
Se o céu dos outros eram um azul unânime, o seu era escarlate.
[e onde os outros viam céu sangue seus olhos só viam coração palpitante: "tuc tuc, tuc, tuc tuc, tuc" e daí a chuva.]
Derramou não se sabe mais quantas idéias rio abaixo, porque elas eram gastas demais, rotas demais, perderam o sal.
Daí se achava de vez em quando em cócoras no meio do mato procurando aquele pezinho de pimenta selvagem que ninguém ousou provar.
Às vezes achou que achou, mas hoje em dia acha que não.
Aliás, hoje em dia não acha mais nada.
Hoje em dia não procura, sequer.
E hoje em dia anda pensando que, sim, talvez dois e dois juntos caibam certinho entre um cinco e um três.

1.4.11

Sobre desidratação

Contemplando o copo vazio eu me pergunto se eu realmente bebi tudo num gole só ou se fiquei louca, porque podia jurar que um segundo atrás era ele cheio até a boca.
Podia jurar...
Podia jurar que não sentiria sede tão cedo, mas agora é assim que é... agora é a sede que ainda não chegou mas que já avisou que vem vindo.
E isso é pior do que se ela já tivesse batido, é, tipo assim, como quando a gente vai levar uma bolada e sabe que vai e aí espreme os olhos e espreme o rosto inteiro já esperando a pancada - como se daí a bola não fosse bater, como se daí não fosse doer tanto quanto.
Assim também: quem me olhar de perto a partir de agora verá minhas mãos trêmulas protegendo a garganta da secura que vem chegando - como se daí meu corpo não precisasse mais de água, como se daí o copo se enchesse de novo.
E é bem aí que eu me protejo demais e acabo me sufocando.