23.10.13

Quando você acordou aquela manhã tinham colocado todo tipo de quincalharias dentro da sua boca, dentro dos seus olhos. Pertences que não te pertenciam escapavam pelas suas orelhas...
Por que é que o nosso coração não pode bater a melodia que é dele?
Um pássaro que faz discurso com voz de gente, sapatos trocados.
Quando você acordou tudo fazia pleno sentido, mas o sentido pleno que fazia pra você estava para fora da janela e o sentido pleno dentro da sua boca não era o seu.
Eu queria que o copo não transbordasse.
Tudo é permitido, mas, ai!, que difícil é atravessar o corredor polonês das imposições para chegar ao outro lado!

16.10.13

Vergonha

O homem subindo a colina gramada na chuva atrás do cavalo te faz acordar como se você quisesse muito que um carro passasse por cima da sua cabeça. Não escolher é escolher não escolher.
Veja só esse trapo em que você se transformou?
Todas as verdades viraram teoria, você não pode se aprovar, você é a água que caiu do céu e que, por falta de ter um caminho, empoçou por alí mesmo.
Ratos tomam banho dentro de você...
O homem subindo a colina porque quer buscar o cavalo perdido é uma imagem deveras romântica, de salvação ou qualquer coisa do tipo, mas você perdeu a nobreza e por isso não pode mais compreender o significado ou o valor dos seus sonhos mais profundos.
Todas as sensações de um atropelamento se coagulam dentro do seu peito. De uma forma ou de outra, estar aqui é estar condenado: ora a não se permitir, ora a se permitir mas não se perdoar, etc.
De qualquer forma foi o fim do mundo que levou o homem a largar tudo pra trás pelo cavalo, por uma questão de que, seja em que circunstâncias for, o acovardamento jamais...
Tendo isto em mente, você acorda se lembrando de um certo você mitológico e aí agarra feito louco a sua moralidade rasgada entre os dedos tentando absorver pela pele qualquer coisa dela que por ventura ainda possa estar pulsando.

14.10.13

Eu nunca sei bem como é que as transformações acontecem, mas parece ter que ver com qualquer coisa a respeito da iluminação em cima das coisas... Por exemplo: naquele dia nós dois sentíamos as luzes dos postes se apagando uma a uma, em fila indiana, como se fossem dominós, como se fossem células que morriam com estalos dentro dos nossos peitos; e a escuridão avançava em nossos olhos e pouco podíamos ver um do outro e cada vez menos você era você e cada vez mais você era aquilo que eu tinha escolhido da memória para você ser. E quando a noite silenciou completamente nosso alcance do real, você deixou de existir e diante de mim se prostava então uma criatura nova... que se esguichou esfumaçada para fora dos meus pensamentos e agora me olhava intrigada, julgadora e plenamente ciente de todos os meus poréns.

Sobre terrenos baldios ainda

Nós deixamos nossas cadeiras ao relento porque pensamos que um dia iríamos voltar ou porque simplesmente não nos ocorreu que as coisas, assim como os seres, também se cansam de noites solitárias.

7.10.13

Eu vejo ele correndo descalço sem camisa num pasto preto e branco com um arco iris preto e branco no final; é infinito correr dentro de um sonho sem paredes, a estrada a grama engole e os calos são mais metáforas do que feridas.
Meu coração fundiu-se ao meu estômago e eles pulsam uma náusea antiga que eu nunca senti antes nessa vida, mas que eu já conheço porque sempre estive por aqui esperando por ela.
Eu vejo ele correndo e eu quero que ele fique assim pra sempre, de costas pra mim (pra eu não me decepcionar), eu quero que ele jamais saiba a razão de estar correndo e eu quero que ele não sinta as articulações das pernas que se movem, mas sinta cada milimetro de grama úmida que se mescla aos dedos. Eu quero que ele seja tudo e nada, infinitamente...
Porque ele é a minha casa e pensar nele é me libertar das paredes grossas de um escritório e de um amor semi (só semi) correspondido; e pensar nele é adormecer entre cacos e acordar em algum lugar onde a palavra cacos não passa de uma alucinação.