31.7.10

Somewhere over the exosphere

Vênus governava o céu e Dorotéia gastava os últimos minutos daquele último momento daquele último dia antes de amanhã - um amanhã sem grandes novidades, mas com a Terra alguma fração de grau mais pra lá do que pra cá - encarando a beldade estelar.
Ela sempre viu Vênus como um "ele", e era a ele que ela dedicava suas mais inaudíveis preces toda vez que a noite era vazia demais... toda vez que a noite era daquelas sem nuvens, sem lua e sem um algo qualquer desses aí, em que ela pudesse concentrar o "querer bem" infinito (infinito por não ter fim, mas principalmente por não ter lá fins muito concretos), inquilino de longa data dentro daquela carcaça de garota boba.
No começo ela só via o planeta, mas uma hora ela descobriu que era totalmente possível respirá-lo também. Daí o corpo se calava e deixava que as cordinhas invisíveis nas pontas da estrela comandassem os pulmões como se fossem fantoches.
"Bom, muito bom!"
Era isso o que ela murmurava percebendo a própria carne assim tão quieta... achava que era bom mesmo, porque daí sobrava mais espaço pra pensar...
Pensou que pensar era bom, e aí pensou em Vênus... só em Vênus, porque as outras estrelas eram apagadas demais!
Mas aos poucos ela foi se lembrando que, apagadas ou não, aquelas eram as verdadeiras estrelas.
Vênus? Ladrão de brilho, isso sim!
Pronto! Vênus agora era uma farsa e não podia mais negá-lo.
Aceitou e, decepções à parte, acabou percebendo que pelo menos uma partezinha dela não se importava com as mentiras e com as verdades estelares, até porque foi assim que ela percebeu mais uma coisa: percebeu que fazia todo o sentido que a nossa Terra também roubasse brilho sem que a gente soubesse.
Aí se perguntava:
"Será que, pra quem tá em Vênus, somos nós o diamante que ofusca todo o resto?"
Ficou toda cheia de si! Acertou a postura e cerrou os olhos, respirando ainda mais fundo.
Achou por um breve instante que em algum lugar ela era o objeto do "querer bem" de alguém.
Sorriu e se apaixonou perdidamente, como se pudesse chegar em casa e mandar um e-mail para seu Romeu galático.
Mas daí se lembrou que em Vênus não tem ninguém pra olhar pro céu, nem ninguém pra olhar pro nosso mundo, nem ninguém pra olhar pra ela.
E isso lhe tirou qualquer fiapinho daquela ilusão toda que ela passou a noite tecendo.
Desistiu... pelo menos até amanhã, quando ela resolver voltar os olhos para algum astro mais remoto e menos estraga-prazeres.

29.7.10

Montagem

Escreveram no muro do mundo uma frase de que eu não gostei.
Falava de mim (ou do que eu tinha medo de ser).
Mas aí um dia a chuva levou a tinta embora... me senti aliviada e me senti vingada.
Eu repeti: "Pronto, agora ninguém mais vai saber de mim."
Mas o muro não caiu e mesmo que não houvesse tinta que os olhos pudessem exergar, ainda havia lembranças que o coração pudesse sentir.
E ele ainda sente, às vezes.
Mas tanto faz isso e tanto faz o muro, o que importa é que com ele eu aprendi que borrachas e tesouras podem não mudar os fatos passados e que superbonder e umas belas camadas de tinta podem se desgastar com o tempo, mas que a vida é mais fácil se a gente tiver coragem de ir contra as próprias verdades e fingir que dá sim pra montá-la como a gente quiser.

28.7.10

Sobre minha aposta

Voou, voou.
Levantou o queixo e respirou fundo...
Que beleza o céu assim tão limpo, mesmo tão cheio de nuvens: achava lindo o azul e o branco juntinhos.
E se o Sol era forte demais, o vento batia mais fresco para poupar a pele clara e aí estava tudo bem.
Só precisava planar no infinito de possibilidades.
E sentia o cheiro do próprio cabelo e achava bom e não se preocupava se era esquisito, tinha suas esquisitices e agora tanto fazia porque lá no alto ninguém via.
Se visse, também não tentaria fingir que não: o tempo estava bom demais para se esforçar em "não ser"... esse "não ser" que já tanto ocupara seus pensamentos e seus dias.
Se poupou.
Aí subiu alto no céu e se esforçou em "ser" tudo o que podia porque o céu estava alí e era tudo tão possível!
Pena que se acostumou com o Sol, cavalheiro afetuoso.
Chegou a noite e a Lua veio e aí o brilho prateado se tornou objeto de obsessão... como poderia ser de outras forma!?
A Lua... A Lua era demais!
Achou que podia ser mais... quis ser mais... pela Lua. Qualquer coisa por ela.
Se gastou inteira, voou mais alto que devia!
Chegou na estratosfera e não teve forças nem pra ir nem pra pousar.
Caiu e quebrou a cara com o mundo.... dessa vez de forma literal.

27.7.10

00:33

Às vezes, depois que eu dou meu amigável tchau aos companheiros internautas e fecho a baiúca, me dá aquela ansiedade...
E aí, 00:33, eu preciso vir aqui morrendo de sono pra protestar contra a cereja do meu bolo que caiu debaixo da mesa e eu nunca mais vi.

Sobre a Pausa

HAHAHAHAHAHAHAnãoHAHAHAHAHAHAHA

26.7.10

Sobre o tipinho "Ciranda"

Sou só eu, ou alguém mais reparou que agora pra falar difícil tem que falar simples?
Os versos agoram têm três palavras.
Eu apostaria que uma delas é um fenômeno natural ou uma entidade física, outra é alguma que simbolize o ato de gostar.
A que sobrar, fica por conta do acaso (que aliás é tema dos mais batidos).
A ordem tanto faz, o que importa mesmo é que a última delas não tenha qualquer ligação com as anteriores.
É o Haiku que se faz de brasileiro e ainda tem a ousadia de se sentir patriótico.
Mas agora não é mais só poesia, e transcendeu a música também .
Extrapolou.
Agora as pessoas legais falam tudo em versos... esses versos planejadamente casuais.
Mas de boca fechada também dá pra manjar:
O modo arrogante de se vestir de modo simples... a preocupação em parecer despreocupado... a identidade forçosa:
Eles gostam de Klimt, de Elis Regina, de calças xadrez.
Eles não falam "bicho"... eles não são hippies, eles são mais que isso... eles são BRASIL! . Com ponto de exclamação e tudo.
E aí acham que acham tudo lindo... até a Guanabara emporcalhada.
Eles vão no forró aos domingos e conhecem e são legais com todo mundo... esse todo mundo, que finge que também é legal com todo mundo.
Eles gostam de festa junina e por causa de seus filhos, a proxima geração vai ser de "Marias-...".
Homenagem singela às mães, às tias... às mulheres do Brasil!
Meros ecos da geração tipinho Cirandinha, a geração da falsa sinceridade e da forçada vontade de viver.
A geração das Maria-flor, das Maria-Liz, das Maria-vai-com-as-outras(-mas-finge-que-não).

"Quem sou eu!?"

Era o que perguntava a Rainha ao Guru do reino. Toda vez que ela perguntava isso ela esperava ouvir Pablo Neruda, da mesma forma que ouvia quando lhe sopravam ao pé do ouvido todos aqueles (às vezes) belos pretendentes que ela tinha.
Eles se esticavam todos e se aprumavam todos e aí soltavam, crentes que estavam sendo deveras originais:
"blablablá blablablá...
Mas só tu és a Rainha."
E ela aí aproveitava para empinar um pouco mais o nariz e chacoalhar os cabelos. Toda cheia de si.

Mas o Guru nunca que respondeu dessa forma.
Ele nunca respondeu coisa alguma.
Ele era mestre em mudar de assunto:
Um dia ele falava do tempo, outro dia ele falava do banquete, no outro falava das vestes, depois da música, e do chão, e do cheiro, e dele mesmo.
E aí quando ele falava dele mesmo ele queria era que ela perguntasse quem era ele.
Num dia particularmente entediante ela o fez.
O tom era de deboche, mas pro Guru tanto fazia... ele só queria mesmo era responder.
E aí ele disse:
"Eu sou eu e minhas circunstâncias."

Demorou, mas um dia ela entendeu.
Ela entendeu que quando ele falava do tempo ele falava de quem ela era.
Porque quando chovia, a Rainha era metade chuva; quando o sol era forte, a Rainha ardia em ânsias; quando o céu era de estrelas, a Rainha refletia o brilho; quando os raios despencavam aos montes, a Rainha se detia colhendo seus próprios cacos no chão.
Mas no reino os dias eram quase todos nublados e é por isso que a Rainha era quase sempre o que era: enevoada.

E quando ele falava do banquete ele falava de quem ela era.
Porque tudo o que descia pela goela da Rainha pesava em seu estômago e fazia ela andar mais devagar.
E que fique claro que não estamos falando só de comida: tinha dias em que a Rainha engolia umas belas de umas mentiras e essas, por exemplo, a pregavam no chão.

E aí ele falava das vestes e era dela que ele estava falando.
Dela e dele e de mim e de você e eles.
Porque tem dias que a gente acorda querendo ser outra pessoa. Nesses dias a gente levanta e veste as máscaras e amarra bem o cinto de utilidades e calça as botinas mais corretas para a ocasião.
Mas nem sempre.
Tem dias em que a gente escolhe a primeira muda de roupas que os braços podem alcançar.
Mas até elas, tão despropositadas, acabam virando um pouco quem nós somos e nós viramos um pouco quem elas são.

A Rainha quase sempre se vestia de vermelho.
A Rainha quase sempre era majestosa.
Mas tinha dias em que ela se vestia de preto. E pronto.

Quando o Guru falava da música ele falava de quem ela era.
Porque quando a banda cantava sobre o Rei Escarlate, a Rainha era três vezes mais Rainha do que costumava ser e quando a banda tocava as Canções da Floresta, a Rainha era mais feliz e não precisava de mais nada.
Se desse sorte, a banda tocaria Uma Canção Dentro de Uma Canção, e aí a Rainha flutuaria pelas torres do castelo sendo mais quem ela gostaria de ser do que quem ela realmente era.
Faz uns anos já que a banda resolveu tocar o Silêncio.
A Rainha não gosta (ou pelo menos acha que não), mas decorou direitinho todos os desacordes.

Quando o Guru falava do chão ele falava da Rainha.
Porque tinha dias em que o chão era duro e frio demais e nesses dias ela pisava com força dobrada.
Tinha dias em que os pés dela só conseguiam tocar a grama fresca e nesses dias ela pairava por aí, por medo de matar possíveis joaninhas desavisadas.
Mas tinha dias em que simplesmente não tinha chão!
Nem sempre era ruim, porque às vezes quem o tirava de lá era o futuro-possível-seriatãobomsefosse-Rei e nesses dias ela aprendia a ser borboleta e voava alto.
Tinha dias, ainda, em que se chocavam as placas tectônicas todas e aí ela não tinha coragem de sair do lugar.

O Guru falava de quem era a Rainha toda vez que mencionava os cheiros.
Porque era impossível não encontrá-la com cara de poucos amigos quando matavam uns ratos no quintal e sobrava o fedor pra quem não tinha nada a ver com isso.
E ainda bem que pululavam também, de vez em quando, uns belos de uns cabelos bem lavados pra dar uma disfarçada no cheiro das bocas podres e o cheiro das histórias mal contadas.
A Rainha se mudava toda, conforme mandavam as maestras narinas.

Mas o mais surpreendente: quando o Guru falava dele, ele falava de quem ela era.
Porque viviam os dois sob o mesmo teto e sobre o mesmo chão e não se viam sempre, mas se viam às vezes... e essas vezes eram o bastante para que, quando se olhassem nos olhos, trocassem as circunstâncias que colheram por aí no decorrer do dia e da semana e dos anos e da vida e era impossível que não saíssem dalí um pouco misturados, peneirados no crossing-over social.

O Guru também falava dos móveis, dos pratos, das meias, dos ponteiros, das facas, dos cinzeiros, das preces, dos hinos, das cores, das nuvens, dos telhados, das pedras, das pinturas (e dos pintores!), dos tijolos e das dores de cabeça.
E a Rainha agora se lia em tudo isso e ficava bastante contente quando pensava que ela era também, para os outros, uma bela de uma circunstância.
Aí a Rainha se sentia sábia... até naquilo que ela não sabia de forma alguma.
Mas ela sabia que não sabia e, por vaidade, ela acha que isso sim é que é uma senhora de uma sabedoria!

A Rainha não sabe de amanhã... mas ela sabe que essa ela de hoje (e suas circunstâncias), não pretende mais perguntar pra ninguém - nem pra ela mesma! - "Quem sou eu!?", porque ela sabe que a resposta correta está sempre um passo à frente.
Ela sabe que a Rainha que ouve a resposta já será outra completamente diferente da Rainha que fez a pergunta.

Não perguntar é só o que planeja a Rainha de hoje... é bem possível que amanhã as circunstâncias se alinhem de tal jeito que favoreçam o nascimento de uma Rainha que irá querer fazer a seguinte questão:

Se eu me livrar das minhas circunstâncias, será que eu me acho?

25.7.10

Erosão

Deixe que venham as pedras... todas elas, de todas as direções.
E quanto mais me acertam mais me esculpem e mais me tiram as lascas e mais me libertam de mim.

23.7.10

Do Moço e da Moça VI

Para Moça todos os dias são iguais, mas para o Moço nada nunca é igual.
O Moço sabe de cada formiguinha que sobe nos pés da Moça e sabe qual é o ângulo com que bate o vento nos cachinhos da Moça e sabe qual é a estrela mais próxima Dela esta noite.
E ele queria, mais que tudo, ser a formiga... mesmo que a Moça não a note.
Se não pudesse ser a formiga, ele gostaria de ser o vento... mesmo que a despenteie e a Moça não goste nada disso.
Se não pudesse ser nem a formiga e nem o Vento, ele ficaria extremamente satisfeito em ser a estrela... mesmo tão longe, ele acha que a estrela está mais perto da Moça que ele jamais esteve.

Para a Moça todos os dias são iguais, mas desde que o Moço conheceu a Moça, cada dia se tornou para ele único e todo cheio de eventos.
O Moço anota em seu caderninho mental todos eles e já separou uma garrafa de champanhe para o dia em que ele finalmente puder escrever lá:
Hoje a Moça me disse "Oi".

22.7.10

Refrão

Tinha dias que achava que achava coisas demais, daí batia um troço e chorava como um cão... quando acalmava chorava mais, porque aí achava que chorava sem razão.

21.7.10

Gangorra

Já descobri porque é que a velocidade média do tempo é tão variável:
Um dia alguém apresentou o ponteiro dos minutos às minhas veias.
Daí, quando o pulso é forte, ele se sente ofendido e bate o pé, se estatela e fica onde está; em compensação, quando o pulso é fraco demais ele fica com pena e corre pelos dois.

Chicotinho queimado

Ninguém nunca soube, mas debaixo da pedra do fundo do rio tinha uma carta e essa carta estava mais encharcada pelos anos de esquecimento do que pela água.
Quando eu coloquei ela lá eu achei que seria uma bela de uma surpresa para quem a encontrasse, mas surpresa tive eu quando econtrei ela no mesmo lugar.
Aí eu olhei em todas as outras pedras de todos os outros rios e cada pedra que eu levantava era outra que caía no meu estômago.
Tudo igualzinho... exceto, é claro, pelas minhas palavras e meu esforço que foram sumariamente apagados e substituídos por belíssimos borrões só para me lembrar do tanto de tinta e poesia que eu já gastei com a correnteza gelada.

Não ir

Tinha amarrados aos calcanhares fios de aço e é por isso que quando tentava correr o único resultado era o cansaço.
Nunca quis olhar para os pés e para onde eles pisavam e é por isso que nunca lhe ocorreu cortar os fios. Continuou lá correndo e cansando e esperando a paisagem mudar e só.

A gente se protege

Depois que inventaram os sapatos virou falta de educação andar na rua descalço.
Depois que invetaram os garfos, virou falta de educação comer com as mãos.
Depois que inventaram a fila, virou falta de educação querer ser o primeiro.
Não sei quando foi que inventaram o guarda-alma, só sei que hoje em dia quem é honesto sobre o que sente anda por aí e se sente nu.
Um belo dia resolveu tomar um belo cálice de solvente, mas descobriu que isso também não tira as cicatrizes de dentro.

Bem me quer?

Vivia os dias como quem brinca de "bem me quer, mal me quer".
Vivia seu romance dia sim, dia não.
E daí no final do mês, se desse sorte, se sentiria uma Julieta plena de amor, porque que diferença fazem os 15 dias imprestáveis se o último foi bom?
Mas em Agosto tirou a má sorte e resolveu parar de estraçalhar o próprio miocárdio depois de olhar ao redor, ver as (ex)tulipas amontoadas num canto e entender que, pelo bem do jardim, às vezes é melhor não saber.

Ir

A montanha de galhos contrastava com o único fundo que havia: um céu negro demais, mesmo sendo todo azul; um céu que não é nem do dia e nem da noite, um céu que não é nem da terra e nem do espaço. Mas tanto faz o céu, porque ele, mesmo nos dias mais iluminados, nunca foi nosso.
E, para ser mais direta, o que é que é nosso?
O tempo escorre, as pedras rolam, as vozes calam, a carne morre.
Tem gente que tira fotografias e se sente bem achando que eternizou qualquer coisa, que agora tem uma lembrança, pelo menos.
Nós tiramos doze delas antes de entender:
O céu era negro demais, mesmo sendo todo azul, e as fotografias só poderiam mesmo deter silhuetas e silhuetas enganam, e é por isso que nem sobre os galhos secos se podia ter certeza.
Tinha galho que parecia perna, tinha galho que parecia mão, tinha galho que parecia eu.
Eu fiquei na dúvida se eu era esta ou se eu era a outra, mas tanto faz... matéria engana tanto quanto sombra.
Acho até que ser galho deve ter seus méritos, e é por isso que a gente preferia que a montanha fosse mesmo de galhos... o mundo já tem "nós" demais.
Mas a gente não tinha certeza.
Uns achavam que a montanha era um espelho.
Mas achar só não resolve.
A gente descobriu que a gente achava coisas demais.
Ninguém tinha certeza se era dia ou noite, ninguém tinha certeza se o céu era negro ou azul, ninguém tinha certeza se os verdadeiros "nós" estavam aqui ou do outro lado do rio, entulhados sob um céu um minuto mais escuro que esse daqui.
Mas a gente ´também não tinha certeza se era um minuto ou uma hora.
A gente não tinha certeza se o pêndulo oscilava na mesma frequência... a gente sequer tinha certeza de que o pêndulo poderia oscilar sob um céu tão irreconhecível.
A gente só tinha certeza de que sob os nossos pés havia chão. Duro e seco, mas consolador.
E foi tateando a terra suja que a gente um dia chegou em um lugar onde o sol já havia nascido.

19.7.10

Sobre os remendos

Eu falei que era pra ela se poupar, porque eu aprendi já que portada na cara dói mais que janela fechada.
Aí eu me poupo.
Eu quero que ela pare de se gastar, de se esgotar, de se esvaziar.
Eu já vi ela se picotar uma vez... uma vez, não! Duas vezes... um milhão.
Ela mutilava um sonho, uma idéia, um carinho.
Aí ela jogava as lascas pra alguém, mas ninguém viu.
E a questão: Pra quem é? Pra quem deveria ser, isso daí?
Mas precisa de resposta?
A gente só quer gente que queira a gente.
(meio que) Qualquer um serve.
Daí a gente atira pro alto e espera o fogo de artifício abrir em flor.
Às vezes ele abre, mas o vendaval sempre vem e sempre carrega as sementes pra lá.... tão pra lá que eu canso só de imaginar.
A gente corre atrás uns três quilômetros e daí falta o ar e faltam as pernas e faltam as placas de sinalização. Daí a gente fica e daí ele continua.
Aí ele, uma hora, em algum canto, enterra tudo...
Em solo infértil, claro.
E aí nunca mais. Nunca vi uma dessas brotar.
Eu digo pra ela que não se gaste... "Porque um dia você acaba com você."
Que sobra pra quem se gasta?
O frasco cansado, estourado.
Aí quer repor!  E quer por que quer e reclama e espirraça e aí chora e se sente assaltada e põe a culpa no mundo e põe a culpa no vento e nas pessoas cretinas que sempre pululam por aí aos baldes.
Que dá pra repor, até dá... eu me repus algumas vezes...  com um punhado de semente alheia que o tornado trouxe de lá pra cá e daí largou em mim.
Mas eu já desisti disso, porque já cansei de me ver assim: a colcha de retalhos tentando descobrir o design original.
E se eu fosse me dar um conselho eu me diria: Pois acostume-se, porque a tendência é arrumar por aí  trapinhos cada vez mais irreconhecíveis para tapar os furos todos.

Hot air for a cool breeze

Num dia frio qualquer, desses em que nos falta chocolate quente ou um bom pijama de flanela, Dorotéia apoiava os cotovelos na esquadria da janela e resmungava os versos finais da música mais batida de todos os tempos, enquanto esperava que o vento secasse seu corpo molhado, porque toalha não resolve o que está encharcado do que não escorre, não transborda, não se deixa penetrar e não transcende a si.
Dorotéia sentia as gotículas desse algo entre os dedos, na nuca, no nariz.
E o vento batia e o algo rebatia e o vento não tinha vez.
Aí ela (fingia que) não se importava e cantarolava pra Lua e contava pra uma menos-brilhante-do-que-deveria Betelgeuse como era ser uma das duas almas perdidas - ao que a estrela nada dizia, mas Dorotéia em dias carentes distorcia tudo e aí abaixava a cabeça quando lia no brilho de cinco pontas a possibilidade de viver num mundo que é aquário de um peixe só.

18.7.10

Uma queixa

Dorotéia tem dias que se sente Prosepina, porque ela, que sempre achou que valia a pena viver nesse mundo como se ele fosse Oz (mesmo ele não sendo nem perto disso!), às vezes descobre que tem mais Bruxa Má do Oeste por aí do que sua boa vontade pode suportar.

17.7.10

Desproporção

É sempre revelador quando a gente descobre ter órbitas maiores que os olhos, porque fica então explicado o por que de não conseguir detê-los em um só objeto - eles não conseguem se estabilizar!
Fica daí  bem explicada também a desfocagem que tanto decepciona e a tontura que tanto desgasta.
E agora eu sei de onde vem a sensação cretina de estar vendo menos do que poderia. Deve ser uma verdadeira maravilha ver com olhos tão grandes quanto os abismos que os comportam.
Mas acho que a maior vantagem mesmo para quem tem órbitas e olhos feitos sob medida é nunca ter os dias em que os globos se perdem lá no meio do escuro vazio sem saber quando será a próxima oportunidade de subir ao mundo e tomar um fôlego.

16.7.10

A única diferença entre a saudade e a sede é que pra matar a sede só depende de nós mesmos.

Auto-ajuda de sexta à noite

Em Marte eu aprendi que não é possível não gostar.
Fui pra lá em julho de um ano qualquer desses aí, desses que a gente já nem sabe mais qual é porque o mundo, quando ressurgiu da terceira explosão, ressurgiu todinho ateu (e eu até que gostei). A pena é terem esquecido o quão útil ainda poderia ser o calendário cristão.
Daí a gente parou de contar, quer dizer... a gente parou de contar juntos. Agora cada um conta do seu próprio jeito, tendo seu próprio ponto de referência.
Eu não tinha nenhum ainda quando pisei em solo escarlate e aprendi que não é possível não gostar.
Não é viável, simplesmente, a impassibilidade a tudo.
Eu fui pra lá porque aqui eu gostava demais de coisas demais, mas as coisas são só coisas e não gostam de volta.
Sobre as pessoas, eu nunca quis gostar... porque se eu gostasse e elas não gostassem de volta, como eu iria me sentir? E imagine que ruim seria a possibilidade de descobrir que as coisas gostam de volta, só não me dão retorno porque sou eu.
Eu e minha dignidade decidimos nos retirar antes que fosse tarde demais.
Aí eu fui, toda cheia de blaséismos (e neologismos baratos à tiracolo!), até Marte e lá não gostei de nada.
Até de não gostar. Eu não gostei de não gostar!
Mas é tempo demais encarando o cinza e o vermelho e uma hora eu tive que admitir que era uma bela de uma combinação.
Eu disse: não que eu goste... mas como fazem sentido essas cores, assim juntinhas!
E daí um dia encontrei uma pedra que, puxa vida!, que raio de pedra mais brilhante!
Eu não gostei nem um pouco... mas que era brilhante ela era.
Lembro ainda de uma outra vez em que topei o dedinho do pé numa montanha tão grande e poderosa que parecia a casa de Zeus! Chamei ela de Monte Olimpo e saí assoviando feliz, me achando criativa!
Do Monte Olimpo eu não gostei, apesar de sentir crescer um enorme respeito por aquela rocha que era praticamente uma entidade digna de adoração... mas era só isso, nada além de respeito.
As coisas mudaram num dia escuro e quieto e sem graça e sem nada, desses em que eu praticava com maestria o "desgosto".
Eu lembro de estar deitada no meu monte sujo de chão marciano, olhar para o lado e ver a linha.
A linha não era nada, a linha não fazia sentido, não tinha brilho, a linha não era poderosa.
A linha era só um fio, sem começo e nem fim, totalmente imóvel, irreversível. Um traço fino gravado no chão duro.
De que me serve a linha? Não serve pra nada.
Mas parece que a desgraçada tinha uma extensão invisível que a atava às minhas entranhas.
Me puxou com força!
Daí eu passei a seguir a linha e isto se provou mais difícil do que eu esperava.
Primeito de tudo porque precisei levantar o traseiro do chão.
Esforço físico foi pouco, a linha demandava raciocínio e lógica.
Então, para executar a tarefa com seriedade, eu dividi o tempo em duas partes: a parte destinada ao sono e a parte destinada à contemplação.
Não foi o bastante! Eu precisava organizar melhor as coisas se quisesse experienciar a linha de verdade e, quem sabe, um dia saber pra onde é que ela vai.
Eu dividi as partes em que eu a contemplo em pequenas secções chamadas Horas; as partes em que durmo não dividi pois elas são irrelevantes.
Irrelevantes também são os dias - "dia" foi o nome que dei aos espaços temporais compostos pela conjunto de um descançar e um contemplar -  em que chove e eu não posso discerní-la no meio de tanta confusão.
Estes eu não conto pois não existem... são apenas intervalos vazios.
Foi nesse rumo que eu acabei vivendo uma quantidade de dias que não cabia mais nas mãos e nos pés, e foi bem por isso que inventei os "Meses" e dividi cada mês em algumas semanas.
Agora eu tinha meu próprio calendário.
E eu tinha mais:
Eu percorri um longo caminho na trilha da Linha e nele aprendi que é preciso comer pois se não for desta forma as pernas não se movem e aí como poderia alcançar meu intento?
Comendo, eu descobri que preciso saber escolher bem o que vou enviar à goela.
Imagine morrer envenenada antes de chegar lá?
Aprendi a contar, aprendi a organizar, aprendi a prover, aprendi a escolher.
Aí descobri que aprendi a aprender simplesmente porque aprendi a gostar.
Fiquei um tempo pensando nos terráqueos, meus conterrâneos, e lembrei que eles aprendiam muito.
À esse aprendizado todo eles deram um nome e esse nome era "vida".
Agora eu sei: aprendi a viver porque aprendi a gostar.
Reciprocidade é só um detalhe.

14.7.10

Cordas vocais

Às vezes eu acho que é melhor ouvir as vozes sim, mas saber o que elas dizem já são outros 500.
Quem é que nunca se surpreedeu com uma vozinha doce trnasmitir através de um biquinho delicado um belo "Vá se foder!" ?
Eu já. Já ouvi também voz firme e rude pedindo socorro, oração gritada e grito sussurrado.
Mas isso tudo é o de menos, porque contradição não machuca, contradição é até interessante... o que me deixa desconfiada mesmo são as vozes que dizem o que não querem dizer e o que querem dizer mesmo elas, propositalmente ou não, guardam para si até que as atitudes falem tudo bem mastigadinho.
É aí que as vozes perdem meu respeito.
Isso para não falar no desconserto que sinto bem fundo e me sinto como quem passa a vida ouvindo uma música que pensa ser sobre amor, mas um dia aprende francês e descobre que é de sacanagem que ela fala.
E aí, no mínimo, no mínimo, a música que eu costumava ouvir deixa de existir pra sempre.

12.7.10

Do Moço e da Moça V

O Moço chegou em um ponto de sua vida em que não consegue mais ver sentido em nada.
O Moço acha que é tudo uma grande baboseira!
Tudo o quê?
"Tudo TUDO!
Eu, você, a escada, o vento, o mundo, a Moça."
A Moça é baboseira?
"É sim! A Moça é baboseira pura... "
[Ele fala isso, mas não desgruda os olhos.]
O Moço tem dias que está tão descrente, que se sente mais propenso a acreditar que a Moça é uma estátua plantada lá no alto.
Isso sim faria sentido, porque daí estaria explicada a perfeição da Moça.
Isso sim seria bom, porque aí o Moço entenderia por que é que a Moça não olha para ele.
O Moço tem dias que aceita isso e aí ele quase que supera tudo...
Mas aí o vento bate e faz voar um cachinho, devagarzinho... tão doce.
Idiota ou não, o Moço daí começa tudo de novo, como se fosse o primeiro dia.
A gente que só assiste gostaria mesmo é que ele fosse mais forte, subisse lá e cortasse os malditos cachos!
E pronto.

Marco Polo

Tenho às vezes a sensação de que serei sempre eu a encarregada de tatear às cegas e esperar que alguma boa alma grite "Polo!" e me dê uma mísera idéia da direção que devo tomar.
Não pense que a espera pela pista seja a pior parte, longe disso! A pior parte, com toda a certeza, é a decepção de perceber que o que as mãos conseguem agarrar são só as folhas da laranjeira do fundo do quintal e que elas não estão no jogo.
Aí eu fico vendada por mais algum tempo, me sentindo idiota clamando Marco.
Pelo menos (se é que serve de consolo) já passou da época de me considerarem café-com-leite.
Minha dignidade agradece!

11.7.10

Desgaste

O ruim de envelhecer é que quanto mais passa o tempo,mais tempo a gente perde pensando em como seria bom se tivessemos mais tempo pra fazer tudo aquilo o que a gente sempre quis, aí a gente pensa... pensa bem em todos os detalhes, porque, já que é irreal mesmo, a gente pode idealizar bastante.
A gente pensa em como a gente deveria ser, se tivesse tempo pra isso... a gente pensa bastante que, se a gente fosse como a gente queria ser, a gente poderia ter o que a gente quer ter, a gente poderia até ter as pessoas que a gente quer. A gente daí tem elas na cabeça, perfeitinhas. A gente pensa em todas as coisas que elas falariam, pensa em todos os gestos, a gente estiliza suas roupas e corta seus cabelos. A gente brinca de Barbie com elas. A gente leva elas pra passear, visitamos todos os lugares que a gente sempre quis e mais alguns. A gente até inventa as manias delas, se bobear.
A gente acha que é assim que se cultiva o "gostar", não tirando da cabeça jamais.
Mas acontece que a gente pensa tanto no que as pessoas deveriam ser, que não damos chance para elas serem o que são. E aí, quando elas aparecem para nós, nós já estamos enjoados de suas caras e não aguentamos mais ouvir suas vozes.
Sorte daqueles que se mantém no anonimato até a hora certa.

7.7.10

A gente só sabe

o quanto faz falta, quando a falta faz.

2.7.10

Semântica

Se as pessoas pensassem mais no que dizem, elas veriam que quem está "desesperado" não é quem grita e chora, o desesperado é aquele que já desistiu e não espera mais nada de coisa nenhuma, aí ele só continua... todo cheio de despropósito.
Mas veio o valor atribuído martelando por tanto tempo a imagem do cara e a barba malfeita e as mãos trêmulas e o possível dedo no gatilho, e agora a gente tem mais um sinônimo cotidiano pra agonia e a ansiedade.
O cara que só segue em frente sem querer nem esperar nada, nem ser feliz e nem infeliz, o cara que não tem esperanças, mas que também não tem o oposto disso, pra esse a gente não tem palavra nenhuma... e eu acho que é por isso que ele deixou de existir.

Sobre o medo do escuro

Prosepina não tem medo do escuro, o que ela tem medo é do exato momento em que os dedos tocam o interruptor e revelam o que ela já esperava: tudo igualzinho ao que era antes.
Ela acha que se ninguém apagasse as luzes ela nunca mais precisaria passar por esse tipo de decepção... mas sempre tem alguém pra dar "boa noite", um beijo na testa e lembrar carinhosamente que hoje já é amanhã, de novo.
Se não é alguém, é o Sol...

Em ritmo de tédio

Não que resolva o problema, mas a Rainha se sente mais tranquila com a possibilidade de que pelo menos uma das trilhões de existências paralelas dela mesma esteja bem agora escrevendo um belo texto para postar, ao invés de algo completamente sem sentido que além de não servir para nada ainda deforma ao seu bel-prazer questões científicas de que na verdade ela pouco entende.
E ela ainda vai se aproveitar um pouco mais dessa pequena blasfêmia quântica, que de qualquer modo já a comprometeu, para imaginar, por alguns minutos que seja, se alguma das outras "ela" poderia estar por aí estentendo seu reinado um pouco mais para o sudoeste, enquanto a única coisa que esta "ela" daqui (tão tangível que já perdeu a graça) pode estender é um parágrafo que está simplesmente morto desde sua primeira palavra.