30.11.12

Nem a lua, nem a calçada, nem os cães e os lobos, nem o lago, nem uma nuvem.
Tudo é passado. Constantemente passado. Miseravelmente passado.
Da saudade aos cadáveres postos, aos objetos de lembrança, ao nada, etc.
A todo instante podemos fazer um funeral para aquilo que eramos há exato um segundo atrás.
Não dá tempo... nunca dá tempo da gente ser.
Somos como um brinquedinho de rodas traseiras aceleradas que capota em cada curva.
E sempre começa de novo... por que isso é uma obrigação.
Começar de novo, começar de novo, começar de novo. Trinta vezes ao dia. Mais...
Não é como se houvesse a possibilidade de levantar a bandeirinha branca por trás da trincheira e conseguir do universo uma trégua. Não há tréguas.
A vida é como fizessem a gente engolir um balde d'água numa golada...
A todo momento é preciso existir, mas ao mesmo tempo se lembrar que já não somos mais o que éramos e que ainda não somos o que vamos vir a ser e que não podemos ser aquilo que a gente queria e também que não conseguimos ser nem o agora, porque o agora é rápido demais.
E é aí que a gente pára.
O agora acabou antes do meu ponto final. E no agora do ponto final não coube a frase seguinte... e por aí vai.
O tempo me espreme dentro dele...
Ou será que eu sou para ele como uma das casinhas dos segundos por onde quica um ponteiro?
(Na proporção de uma presença para cinquenta e nove de puro lapso.)

27.11.12

Sobre o Movimento dos Pangarés e Seus Cowboys

Vê-se que uma folha retorcida, tal qual cara de velha, se acabrunha dos próprios veios.
O tempo massageia a nossa inquietude, prevemos as possibilidades dos nosso próprios retorcimentos, e é aí que ele exige que a gente escolha: é pra ter saúde ou é pra ter realidade?
Toda essa obrigação de girar a roda do moinho, que senão a água não flui, já dá nos nervos.
Toda essa cisma em puxar as rédeas firmemente, de querer que o bicho vá adiante quando o desgraçado quer é ir pra trás...
O desgraçado faz o que quer, vai explodir teus braços e não vai nem saber.
E o amarelado das pontas dos dedos que a gente quer esconder com a luva? A teimosia do batom?
Vê-se que um espelho arrebentado revela muito mais um homem do que a superfície lisa de um lago; vê-se as partes dilaceradas, em isolado: o olhar que se faz de macio e depois a boca tensa. - A boca tensa, quando vista em separado, é a chave de todo negócio.
Mas a gente nasceu pra ver um homem inteiro, ou seja, tendo todas as possibilidades pra deixar passar o pouco de verdade que ele põe pra transparecer, ou, mais comumente: que lhe escapa.
A maioria das coisas que a gente diz não tem propósito nenhum, e ainda assim persiste uma cisma pra olhar o texto todo e procurar a coerência.
Só que do jeito que as coisas vão, coerente é quem admite incoerência e o honesto é o que se acusa falso.
Ou não?
De toda forma, e voltando a questão, tudo o que a gente quer saber (e não dorme por isso) é:
É pra bater mais forte, esperar, pular fora ou ir pra onde der o galope?


Naftalina



Eu vejo a seqüência! 
Minha sabedoria é tão orgulhosa quanto o caos. 
Que é meu nada, perto do estupor que te espera?
 – Rimbaud


Uma casa abandonada, você é um velho caquético já.
Cobertos pelo pó, seus olhos cessaram lacrimejar.
Um disco de vinil, tão arranhado quanto seus órgãos vitais, bombeia o clássico dos despeitados:
"Some of these days
You'll miss me honey."
Você olha com seus olhos duros pela mansarda de vitral e uma nuvem escorre lentamente, como grãos grossos numa ampulheta.
Dizem que a gente fica parecido com as pessoas com quem a gente convive.
Engraçado é que de tanto se apoiar nos móveis em espera, seu queixo faz agora analogia a uma quina de criado-mudo, o cabelo ralo a uma vassoura gasta e o coração a um pinico mijado esquecido debaixo da cama.

25.11.12

Sobre Coisas que Caem

Não há retorno pros pássaros desabados: eles permanecem revirados, barriga pro céu, piado mudo.
Os olhares estatelados contemplam o movimento das nuvens e as nuvens, em réplica, lhes atravessam os reflexos como fossem sombras em preto e branco.
Os pássaros caídos caem porque caem, caem como canivetes num dia surpreendente, caem cobrindo cada milimetro de chão, caem fazendo camadas e camadas de penas e olhos aflitos (e nada além de penas e olhos aflitos), caem como gotas que formam poças.
E as cumulonimbus se acumulam e fazem chover cada vez mais dessas causas perdidas, e essas causas perdidas contam cada nuvem que atravessa os olhos como quem contasse carneirinhos pra chamar o esquecimento mas só conseguisse trazer mais carneirinhos e cercas.

[ É num dia cinza que a gente olha pro chão, afasta a fumaça do cigarro-anestesia e vê que "caralho... já somam mais de um milhão! o que é que a gente faz com isso agora?" ]

21.11.12

Tapa de Plumas

Contemplava o puríssimo silêncio, o silêncio que independe do som.
As pessoas ao redor, que aos poucos desapareciam feito as estrelas que somem conforme o sol vai avisando que vai nascer; os gestos mudos, que não tinham a noção da despedida e que por isso machucavam.
Contemplava o sumiço de um mundo que um dia foi giratório, a substituição dele por um zumbido prolongado e depois o nada, tipo o disco de vinil chegado no final.
Coração não tinha mais um "pra quê" pelo que acelerar, foi ralentando.
O som de um coração batente ficou obsoleto; o planeta é das máquinas, o planeta é de quem diz "anda", não é de quem diz "sente"...
E eles querem que a gente esqueça tudo, pra poder ser saudável.
E eles querem enterrar a gente numa pilha de colchões e costurar depois, num claustro amaciado e sem dor...
"sem dor".

18.11.12

Adeus Se Escreve Numa Frase de Muitos Dias

Quando a gente desaparece é como quando a gente vai perdendo as coisas por um bolso furado e sabe disso, ou como quando a gente tem tempo pra sentar no meio fio de uma rua sem postes e ver o dia escurecer até o final: quando a gente desaparece é como quando a gente então força os olhos no escuro pra achar "não-sabemos-bem-o-que", já sabendo que não dá.
Quando a gente desaparece é como quando a gente vai constatando um dia depois do outro que a geladeira só fica cada vez mais vazia. E a gente desaparece porque a gente não quer mais parar no posto da felicidade barata pra coletar umas garrafas de persistência; a gente quer agora é ver o último queijo da geladeira mofar mesmo e a gente quer comer ele depois, como num ritual pra matar cachorro morto.
Nunca perguntaram pra quem desaparece se quando a gente desaparece dói, ou se quando a gente desaparece é pra sempre.
Deve ser porque não se pode perguntar coisas pra quem já sumiu..
E de todo jeito não dá pra se lembrar de uma nuvem evaporada tal qual uma nuvem evaporada também não se lembra de nada.
E quem desaparece quer justamente é deslembrar, que nem a nuvem, quer ver a memória escorrer para fora conforme expira devagar.
(Mas a memória, tipo fosse o coração da alma, é a última coisa que vai embora no final das contas...)

Nossa Casa na Árvore, que um dia foi tudo, apodreceu e caiu e a gente não vai montar de volta porque a gente já não é mais o que a gente era...
"A gente já não é mais o que a gente era..."
E foi assim que a gente foi sumindo, se isso serve de exemplo.

16.11.12

4º Manifesto do Terreno Baldio

O moleque anda, passos tortos de cacos.
Uma estrada muito limpa e cinza se faz ver por trás da cerca alta de mato vulgar: é por ali que passam as pessoas de verdade.
O moleque anda mais três metros e sustém o ar.
Uma moça alta na medida certa tem as pernas longas e se apoia no capô de um carro da melhor categoria enquanto que o moleque pensa que daqui pra lá os tico-ticos, os sabiás, os casaca-de-couro perderam o espaço pros pombos assim como os moleques arrebentados e enlmeados perderam espaço pras pessoas que parecem que vieram de filme, as pessoas de verdade, aquela mulher.
A lama pinga pela ponta do cabelo raspado curto e cai no olho e o menino esfrega e com o olho que sobra vê a moça fumar e chutar um pombo com a lateral do pé.
Tudo é cinematográfico demais da cerca pra lá... as mulheres não caem do salto, os homens têm a barba propositalmente ralada. O sucesso. O estilo. As nuvens que ou chovem pra valer ou existem só de cenário... e as nuvens de cá que estão em constante chuva mas nunca um temporal daqueles onde o mocinho beija a mocinha.
Do lado de cá não temos fotografias e não temos a persistência estética que faz fazer o gosto do cigarro ser bom.
Quando o moleque tira um cigarro amassado do bolso pra fumar é porque quer justamente meter gosto ruim na boca, deixar queimar como um pavio pra ver se a cabeça-bomba vai aos ares. Ele sempre teve essa curiosidade.
Mas o casaca-de-couro pousa do ombro e o cigarro nunca chega até o fim. O moleque ainda tem tempo antes de o pavio acabar e ele explodir. Isso fica pra depois...
E a mulher acaba o cigarro só até o ponto em que disseram que ele acaba, mas não até chegar na boca.
Por isso, vai ver, é que ela não explode... simplesmente joga o pavio no meio-fio, refaz o batom, entra no carro como fosse um manequim programado e quando o carro vira a curva e vai embora ela parece que deixa de existir... bem como nos filmes... quando a cena acaba, essas pessoas de verdade acabam também.
Exatamente como nos filmes...
E o moleque de mentira dá de ombros, tira uma catota do nariz e vai catar mais uns besouros gente-boa.


12.11.12

Diário de Calçada e Suspensão

E você sente o puxão pelas costas... e prenderam teus suspensórios a dois ganchos tão altos... tão altos!
E os pés bambeiam desiludidos, sem um chão.
Chão que sustenta o pé que sustenta a perna que sustenta o corpo que sustenta a cabeça que sustenta o cérebro que sustenta as ideias.
E de repente muda:
Gancho que segura as calças, que segura as pernas, que seguram os pés, que não seguram nada.
E tanta coisa se perdeu na inversão... tanta coisa evaporou, e a sentença diminuiu quase que pela metade...
Restou um bambaleio, uma sensação de injustiça... essa sensação de injustiça que leva os justos a se questionarem até o fundo da alma; que leva os justos a se sentirem, no fim, injustos, merecedores de uma guilhotina, simplesmente para evitar serem eles os que julgam errado.
E os suspensórios firmes, de não tão boa qualidade assim, mas firmes.
E a sensação da eternidade... essa sensação de eternidade que leva os homens, tão perecíveis, a se projetarem num infinito que dura o instante de uma dor.
E começa uma chuva fina, e as gotas pingam pelos cadarços mal amarrados formando uma poça particular.
E você se enxerga: nem da terra e nem do céu.
"Nem de deus, nem do diabo."
E percebe que todos os homens já nasceram com os colarinhos agarrados nos próprios ganchos invisíveis.

9.11.12

Sobre o Movimento do Carrossel

Eles puseram uma lona de cabo a rabo pelo teto do carrossel.
Não disseram nada, foram-se embora.
Eu fiquei guardada lá dentro, junto com os falso-cavalos e um pernilongo que também foi pescado pela aleatoriedade da situação.
Mas aí ele achou um buraco.
Não disse nada e foi embora também.
Fiquei lá dentro agora só com os falso-cavalos que tinham a tinta descascando e uma estaca cravada no peito que partia do base e chegava até o céu de plástico... (e se ainda fosse o céu de verdade!)
A única direção que os falso-cavalos tinham era um pra frente circular, um "pra sempre de volta"; e a única direção que eu tinha era essa também, já que eu não pude passar pelo furo que o pernilongo passou.
E a gente girou, eu e os meus falso-cavalos, a gente girou como uns imbecis...
E o mundo lá fora fazia barulho de alegria e de conversação, e o mundo lá fora fazia barulho de vida, mas a gente girava como fossemos os ponteiros de um relógio enterrado fundo debaixo da terra.
A gente não servia pra nada, e o nada não servia pra gente.
O dourado dos cavalinhos já caia pelo chão, feito areia, e o meu vestido amassado tinha um botão faltando.
Subi em cima do mais acabado dos quinze pangarés e abracei o mastro como marinheiro contemplando naufrágio.
Mayday, Mayday...
Perdemos outro botão e um dos cavalos acabou de perder um olho...
E se continuarmos girando assim amanhã já não sei mais o que é sucata e o que sou eu.


6.11.12

Diário de Calçada e Manipulação de Cena

Todas as cidades e todos os cantos são a mesma quina: um buraco onde um homem cansado joga meia dúzia de lágrimas de repente vira o pedestal onde um homem fervoroso em si planeja ser o superman.
Eu sentei nesse mesmo pedestal, nesse mesmo buraco, e catava umas ervas daninhas que subiam do esgoto e pensava que daninhas em certo caso podem ser as salvadoras da cena e tudo o mais.
("E tudo o mais."
E o que é que é o tudo o mais?
Eu nunca sei.
O que é que há de mais além das ervas daninhas e um buraco que entra pelo chão carregando as coisas que a gente não quer ver?)
Eles falam pra gente que a gente deve encher a cabeça, pensar no que é fácil pra poder praticar o esquecimento daquilo que é difícil... e eu que sempre planejei perder as coisas-espinhos que acertavam minha cabeça, subitamente me senti ofendida quando eles me ofereceram o manual.
Eu não quero ser o homem que chora o cansaço, nem o homem que tem uma escada imaginária saindo da própria cabeça até as estrelas; eu quero ser a pessoa que vê a erva daninha e o bueiro, o muro que se espreme entre os prédios e encerra o beco, o pedacinho magricelas de céu que vem lá no final desses prédios e as Três-Marias quase apagadas que pela sorte se encaixaram alí e que continuarão longe porque eu não tenho uma escada.
E depois que eu me levantar e for embora um mendigo ou uma garotinha perdida vão tomar o meu lugar e pensar numa casa ou em um balão ou em mim, e as minhas ervas daninhas vão desaparecer a partir daí até que eu volte.

1.11.12

Sobre o Movimento dos Cães

O céu nasceu inteiro branco esta manhã, como um vento cristalizado num frame pausado onde a gente consegue ver a silhueta do fantasma.
(Se eu enfiasse uma agulha no céu de hoje ele me devolveria ela torta.)
Todas as tentativas de contornar a cerca e adentrar a Grande Casa foram vãs até o momento... quanto mais a gente corre tentando achar uma brecha mais cerca nasce no caminho.
Fica uma questão pinicando nos vértices do nosso quadrado coração e ela quer saber porque é que a gente quer tanto entrar.
E a gente evita, a gente evita esses vértices... A gente finge que nosso coração é arredondado e não tem as pontas afiadas das perguntas, mas só que ele tem.
Aí a gente faz que cospe ele para fora pelo caminho, queremos não pensar que se a gente pensar a gente vai se descobrir e tudo irá se revelar: o nada, a falta de proposito.
Mas a gente não consegue cuspir, a gente nunca conseguiu, e aí ele nos fica entalado entre a garganta e a língua.
(Foi aí que a gente perdeu as palavras!)
Nós não queremos ser niilistas, nós queremos acreditar num romance cheio de reviravoltas estarrecedoras...
Mas por mais que a gente tente e queira nada nos estarrece mais... não para valer, não se a gente tiver tempo e coragem de olhar de frente.
Por isso nós circundamos a casa. Porque a casa não dá para ser vista por dentro - tão impenetrável quanto o céu.
Somos os cães com medo da chuva que não entendem e não podem ver que essa casa não tem teto...
E a gente pode uivar o quanto a gente quiser, a gente pode virar loucos e até tentar dizer palavras, mas cada uma delas, eu sei: voltará tão torta quanto a minha agulha.