30.6.10

Sobre o cheiro

Quer faça sentido, quer não, toda vez que minhas mãos tocam o mundo e passam a cheirar como ele, eu sinto que elas são mais dele do que minhas.
E eu ia encerrar a questão por aí, confortável com uma solução barata: "ainda bem que existe sabonete".
Mas aí lembrei que sabonete é mundo.
Água é mundo.
Toalha é mundo.
Ar é mundo.
E o que é que não é mundo?
E de repente a fumaça de cigarro que às vezes gruda no cabelo não me provocou mais repulsa; não por ter sumido o asco, simplesmente por ter se tornado só mais um dos cheiros do mundo que eu ando por aí recolhendo.
Foi bem aí que eu me senti inteira como minhas mãos: irreconhecível debaixo da crosta de experiências, de condições, de arranhões e de poeira.
É por isso que agora eu me pergunto: E o meu cheiro? Pra onde foi?

29.6.10

Da Ansiedade

Por causa dela, eu aprendi como é ser um bêbado de sentimentos: tudo me soa mais louco, mais extremo e mais fatalista do que deveria ser.
Ainda bem que resguardo um espírito reducionista em certo ponto do meu porto de dentro e quando vou ver, as megalópoles de sonhos forjados não passam de uma completamente ordinária, estúpida e cotidiana orgia cognitiva das subpartículas dum psicológico viciado em ver mais cores do que pode.
Aí eu acalmo...
Mas só até escrever no papel e perceber o quão psicodélico isso pode ser.

Do Moço e da Moça IV

Uma vez ocorreu ao Moço como seria se sentir como a Moça.
Ele se esforçou para imaginar como seria se a Moça soubesse que lá embaixo havia um Moço que só estava lá por ela, e fez isso porque queria muito acreditar que a Moça iria gostar de saber disso.
Ele passou a olhar para a Moça como olharia se tivesse certeza de que ela sabe, mas quanto mais queria que fosse assim, mas ele ia ganhando certeza do oposto: a Moça nem sequer desconfiava da presença dele.
O Moço se tornou o homem mais indignado do mundo inteiro, ele simplesmente não podia compreender porque é que a Moça não olhava para o pé da escada, somente olhava para o topo.
E foi aí que ele percebeu que era isso também o que ele fazia: o Moço nunca sequer cogitou olhar para baixo.
Suas espinhas congelaram quando subiu ao cérebro a hipótese de ser também o Moço, para outra moça, o que a Moça é para ele.
E que lá embaixo dessa outra moça, teria um outro moço.
E depois dele outra moça.
E depois dela outro moço.
E depois outra...
E outro..
Todos um bando de condenados a querer o que quer outra coisa.
Ninguém nunca teria nada no final, e ficariam todos por alí mesmo até virarem farelo.
Longe de se desesperar com a idéia, o Moço foi tomado por um vento novo que lhe dizia que talvez fosse uma boa saber como é a moça que fica ao sul (aquela que o contempla) e estava a ponto de se virar quando uma enorme pedra o atingiu em cheio no estômago e lhe lembrou que olhar para trás seria a confirmação de que sua teoria da escada infinita estava correta e isso traria também, de brinde, a realidade da pior de todas as possibilidades:
A possibilidade de que a Moça à sua frente não é o fim da escada e sim apenas uma de suas partes; que a Moça não olha só para frente porque gosta do vento - a Moça olha pra frente porque tem também a Moça um outro moço.

28.6.10

Do aprendizado do homem

Quando Ícaro veio ao mundo lhe ensinaram que por aqui existem criaturas que podem voar, porque têm um par de coisas muito esquisitíssimas chamadas Asas.
Aí eles lhe disseram sobre como seria bom se pudéssemos nós também ter asas, e lhe contaram todas as maravilhas de que desfrutam aqueles que nasceram metade coração, metade vento.
Lhe ensinaram depois, nas entrelinhas, que não ter asas dói, porque limita.
"E coitado do ser humano,  que não tem asas..."
Mas aí ele cresceu e o ensinaram outra coisa: que ninguém deve lhe dizer o que ele não pode fazer.
Ícaro queimou.
E que pena que a culpa do fracasso, pra bom fazendeiro do século XXI (só do século XXI?) , é sempre do solo, jamais de quem plantou o visco e a cerejeira no mesmo metro quadrado.
É muito ruim quando o ponto final surge antes da .

Sobre as Engrenagens

Acender as luzes de madrugada não vai fazer sumir a insegurança do homem que trabalha, quer você perceba, quer não, incessantemente para descobrir como consertar a máquina que lhe entregaram - já quebrada - quando ele nasceu.
Ele carregou ela nas costas até que pudesse por os pés no chão.
Aí ele se dividiu em dois: um ficou com a carne e os ossos, e a ele lhe deram também olhos para ver o que lhe transcende (até certo ponto); o outro ficou com a máquina e o escuro.
O escuro do Outro é um escuro diferente daquele que o primeiro percebe quando tranca os olhos pro mundo; o escuro do Outro é o escuro também do som e do tato, é o escuro das certezas e até mesmo o escuro da escolha.
No escuro do Outro só existe ele e sua tarefa impossível.
Mas aquele que é responsável só por andar e amar e comer e carregar alguns quilos de pelanca acha que tem o comando e passa o tempo fingindo que o Outro não existe.
Aí um dia ele colapsa e chora e não sabe o por quê.
Se ele olhasse - com aqueles belos olhos que ele nunca aprendeu de fato a usar - um pouco para a própria encruzilhada ele veria o Outro e veria todas as peças soltas e todos os fios arrebentados que deixam o Outro sem saber o que fazer e deixam o Outro pensando em como seria bom se soubesse.
Se o primeiro for um pouco mais honesto vai admitir, uma hora ou outra, que as dores do Outro são as suas e que não existe Outro, mas sim apenas um.
A cegueira do outro é a sua, tanto quanto a impotência.
E o choro sem razão vai fazer sentido só quando ele perceber que cada soluço não é nada mais que um pequeno instante de honestidade inconsciente daquele que no fundo simplesmente não sabe como consertar a si.

26.6.10

Do que pesa

Prosepina se questiona sobre a dor do homem, a dor de que todos eles sempre falam que mas nunca realmente souberam dizer.
Eles só dizem que têm.
Mas Prosepina quer mais e um belo dia ela soube que, pelo menos a dela, era assim... um "troço".
E se ela se colocasse numa balança num dia mais cinzento ela tinha certeza que só um dedinho seu pesaria mais que um prédio.
Mas aí pensou de novo e viu que se lhe cortassem todos os dedinhos, nada mudaria.
Aí ela fez o teste e cortou todos os do pé.
Sangrou por várias semanas, mas ela deixou sangrar porque, tendo em vista o fracasso da primeira, surgiu em seus pensamentos uma nova teoria... a que dizia que seu sangue carregava chumbo.
Pena é que ela sangrou quase pela metade e nada mudou até que sentiu uma pontadinha em algum lugar lá dentro.
Não sabia exatamente onde, por isso ela mandou que a abrissem ao meio.
Ela esperava ansiosamente pela bola de canhão que o médico tiraria de suas entranhas e aí o coração poderia voltar para seu devido lugar.
Mas ele só tirou uns vermes de lá de dentro e também isso não fez o troço sumir.
Aí Prosepina que antes procurava, passou a só pensar.
Aí depois passou a só sentir.
E aí sentiu o troço como ele era: verdadeiramente um grande e pesado nada.
Aí ela pensava que esse nada ocupava nela muito espaço, tanto espaço que ela se perguntava se ainda sobrava alguma coisa além disso dentro de si.
Mas algo tinha que sobrar, e era esse algo que se perguntava sobre o nada, pensava no nada, sentia o nada...
Agora a questão era quanto de algo e quanto de nada compunha Prosepina.
Aí ela se mediu de todos os jeitos e ela tentou ser só algo por uns tempos e só nada por outros, mas descobriu ser essa uma tarefa impossível.
Desistiu de descobrir o "quanto".
Ela queria agora só saber por que.
Por que é que dói ser meio a meio?
Desceu as escadas e entrou no saguão onde pessoas haviam estado há algumas horas reunidas.
Em cima da mesa havia uma bandeja e na bandeja haviam três xícaras de chá:
Pegou a primeira, cheia até o topo, e esvaziou com 3 goles.
Pegou a segunda, totalmente vazia e empilhou sobre a anterior.
Pegou a terceira.
O chá repousava na altura de 3/5 da xícara de porcelana e Prosepina não soube o que fazer, só soube que aquele era nada mais que seu reflexo refletido na bandeja de prata:
2/5 perdidos (onde foram?) disputando com 3/5 desprezados (por que?) pra ver se é mais sofrível ser falta ou o excesso.
E aí Prosepina pensava que sofrível mesmo é ser falta e excesso ao mesmo tempo, todos os dias e em tudo.

23.6.10

Poupar o que não tem

A Rainha pensava alto e em bom som que, em dias de Lua redonda como este, bem que seria bem bom poder dar um mergulho.
Aí sentava no que ela achava ser a beiradinha da Lagoa e cheirava.
Só cheirava, porque tinha medo de abrir os olhos e descobrir que a água havia se evaporado depois de tanto sol, ou que a Lagoa fica mais ao Norte, tão ao Norte que ela não teria perninhas o bastante pra chegar lá um dia.
Aí cheirava com força.
Mas enquanto cheirava, sentia muito medo de novo. Medo de estar cheirando demais e com isso, acelerando o processo. Deus que me livre!
Aí ela prendia a respiração também.
Aí então só ouvia.
Mas, coitada, o Lago por si só não chia!
Aí também, só de raiva, ela não ouvia nada, porque né... quem quer pio de coruja e vento que assovia?
Isso é barulho, algo completamente diferente do som. Isso pra não falar da música!
Nos outros dias do mês ela ousou atirar uma pedrinha e sentir prazer com o "ploft", que as vezes era "plif"... o ruim é que às vezes recebia um "pá" duro e inesperado (e muito inexpressivo, o pior de tudo).
Mas hoje era diferente, porque hoje ela tinha medo de não ter resposta.
Se não tivesse resposta ela teria que abrir os olhos e aí... imagina se ele evaporou mesmo? Pior! Imagina se ele fica mesmo mais pra lá? Tão "prá lá" que ela nem sabe onde é!?
Daí ela abriu mão das imagens, dos cheiros e dos sons porque era a única forma de garantir estar por perto do que pode ser que esteja longe demais.

...

Quando a cola é pouca eu uso fita; quando a legenda erra, eu sincronizo, quando muda a música, mudo o passo; quando esfolo a unha, corto tudo; quando o copo tá na metade, completo (ou esvazio); quando o volume é 19, passo pro 20; quando o vento muda, eu puxo a pipa; quando o tempo é pouco, corro; quando a calça é longa, faço bainha; quando a coberta é curta, encolho as pernas; quando sobra arroz, ponho feijão; quando a sala é quieta, falo baixo; quando uma meia é pouco, ponho duas; quando a comida é ruim, ponho pimenta; quando a estampa é feia, uso o avesso; quando o cardarço solta, amarro; quando o alvo é distante, miro mais; quando descostura, pego a linha; quando a parede descasca, retoco; quando a areia acaba, viro a ampulheta; quando o despertador toca, enrolo; quando me perguntam, (às vezes) respondo; quando sinto frio, chego perto; quando bate o sono, apago a luz; quando tenho dúvida, vou ao google; quando sangra, estanco; quando cheira mal, tampo o nariz; quando caio, levanto; quando quebro, conserto; quando o livro é bom, leio de novo; quando a saudade é muita, ?

20.6.10

Só um desabafo

GRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRAAAAAAWWWWWWRRRRGHHHH

Sobre o bobo da corte

Às vezes um acha que o outro não vai ceder.
Às vezes o outro acha que o um não vai cansar.
Eles esperam.
Um insiste, o outro mantém.
O um puxa a corda, com toda a força que tem e o outro olha pro céu e nem se dá ao trabalho de dar de ombros. A corda cai no chão.
O um cava o buraco, o outro pula... mas fingindo que era cãibra.
O um só pára de cavar pra tentar se decidir se acredita que é mesmo dor ou não.
O um tem esperanças de que o outro tenha pulado por causa do buraco e ele nem se incomoda com o fato de estar incomodando.
Ele quer resposta.
"Não" é resposta!
Mas o outro finge cãibra e aí o pulo vira dúvida.
O um se prosta na frente, finge que é gente (gente igual àquela gente que o outro acha que é gente) e dá o esbarrão, fingindo o acaso.
O outro aceita o acaso - educado - , mas faz descaso e aí sai fora.
Era melhor tomar um fora daqueles.
Às vezes um acha que o outro não vai ceder!
"Às vezes" vira "sempre".
O um sabe que o outro não vai ceder.
Aí ele diz pra ele mesmo, mas em voz alta, que ele "não queria nada mesmo!".
Ele faz sua trouxinha e vai lá pro outro lado da praia, ver se acha algo que ele possa querer.
Aí ele vai, queixo erguido e semblante (quase) respeitável, mas leva seu binóculo pendurado no pescoço, pronto para não perder nenhum espirro do outro, aquele que ele espera um dia poder chamar na segunda pessoa.

Onírica

A realidade parece muito melhor do que ela é quando a gente acorda de um pesadelo.
A realidade parece muito pior do que ela é quando a gente descobre que o sonho bom foi só sonho.
Por que a gente ainda prefere sonhar felicidade?
Porque a decepção é o tombo de quem voou - o pouso, e a surpresa é o levante de quem caiu - a cicatriz.
E afinal nunca vi paraquedista reclamar do joelho ralado.

Tinha uma linha no céu.

Era alto demais pra alguém arrancar, era forte demais pro vento arrebentar.
Era visível demais pra gente fingir que não via.
Aí a gente via só a linha e esquecia das estrelas, porque as estrelas tinham que estar lá mesmo e sempre vão estar, daí que a gente sempre achava que poderíamos vê-las no dia seguinte se desse vontade.
Mas a linha era outra história.
Nenhum gavião voou alto o bastante e os aviões iam só até o comecinho da estratosfera.
Procuraram os postes de suspensão de norte a sul, e no leste e no oeste ninguém viu.
Eu também não vi daqui da janela do sótão, mas tinha uma teoria.
Eu achava que a linha na verdade estava estendida entre a Lua e Marte, e nós éramos apenas os espectadores.
Mas ser humano é assim, ser humano é achar que o que tocam os olhos é posse.
Aí a gente vê o Universo e acha que assim carimba o nome nele.
A linha era nossa.
A linha dividiu o planeta em dois.
Mas a terra girava e girava e aí se em um momento eu era de cá, dalí a pouco eu já era de lá e no final ninguém era de lado nenhum.
E, mesmo havendo a possibilidade de sentirmos todos parte de um grande grupo, a verdade - obviamente - é que nos sentíamos simplesmente sozinhos e excluídos de todos os outros.
Parecia que o resto era um grupo coeso e nós eramos o outro, bilhões de vezes menor em número e força.
E cada um se sentia assim e eu também.
Daí passou o tempo e ninguém mais falou dela e uma geração veio um dia e disse que existia algo no céu chamado Via Láctea e era onde a gente vivia.
Mas ninguém nunca fez a relação.
E eu não sei, posso estar errada, mas tenho a impressão de que o mundo esqueceu a linha, mas não esqueceu a sensação doída que é ser escolhido pro grupo de um só.

18.6.10

Algemas

Às vezes um acha que o outro não vai ceder.
Porque estão ambos à deriva, agarrados a um pedacinho de nada, tentando flutuar em algum ponto aleatório do Oceano Índico, e o outro não quer nadar pra lugar nenhum - mas ele quer.
Aí ele bate as pernas e pateticamente puxa a água com as mãos, como se dalí algumas horas o caminho até a praia mais próxima fosse se revelar.
Ele junta num montinho toda a água que colhe e joga pra trás.
Ele às vezes fica satisfeito consigo mesmo, ele se esforça pra isso, mas ele não é cego e uma hora ou outra ele vê que, se a água de trás não voltou pra frente, outra qualquer ocupou o espaço vazio e nada mudou de qualquer jeito.
É que o outro não quer sair dalí!
Ele sabe e ele não liga, ele e o outro não são siameses.
Ele quer nadar.
Mas o outro não quer que ele nade, o outro sabe que existem tubarões.
O outro sabe das tempestades e sabe que a chance dele não chegar a lugar nenhum é enorme.
E aí que o outro gosta tanto dele que atou seus corpos com trapos do barco naufragado e não deixa que ele parta.
Ele um dia vai descobrir qual é o melhor jeito de explicar pro outro que ele não só deseja, com toda a intesidade que tem, chegar a algum lugar (qualquer lugar, desde que chegue), como ele também sente uma dor desesperada nas pernas e tudo o que ele precisa nesse exato momento é simplesmente esticá-las um pouquinho e torcer pra cãibra ir embora.

17.6.10

Lado escuro

É que o Lago é quieto, mas às vezes cai orvalho no espelho d'água e o "plim" é o bastante pra eu fingir pra mim mesma que a gente conversou.
Eu sento na beirada e peço pra que ele fale para mim todos os segredos.
Só vem mesmo o "plim" e uma respiração e nada além disso.
Aí eu fujo, tenho medo de não me restar tempo de descobrir os meus próprios segredos.
Mas ele respira de novo, assim que lhe viro as costas.
Se eu hesito um pouco mais em voltar, ele me dá a cartada final e permite que o céu despenque para que as gotas pesadas toquem a sua supercície e eu possa apreciar o grande show nos céus.
Eu arrisco uns aplausos quando a música chega ao fim, mas o silêncio é duro e eu sinto que aplauso foi pouco e que talvez eles estejam esperando a gorjeta.
Se atiro umas moedas.... nada.
Nunca vou saber o que eles esperam, há uma grande diferença entre os de carne e de osso e o lago e o céu e as nuvens e a lua.
Eu penso, nesse momento, que daria tudo para que caíssem as barreiras entre nós e eles.
Ou que ao menos eu fosse um deles - há espaço pra mais quantas estrelas no céu?
Se eu deixar os pensamentos assim voarem, corro o risco de virar a madrugada e posso então ver o sol chegar e atravessar o prisma do meu Lago Verde, que aí deixa de ser verde e passa a ser da cor que eu quiser.
Mas o sono sempre lesa meu cérebro e meu corpo e aí eu durmo antes de poder dizer "Verde me basta".
Fecho os olhos e não me preocupo com mais nada, porque apesar de tudo se o sol estiver forte demais eles providenciarão o Eclipse pra mim.

4.6.10

Do Moço e da Moça, terceiro round.

Não me cabe dizer quantos foram os anos e os dias e as horas de contemplação.
O moço pode muito bem ter ficado alí por séculos, milênios e eras tudo  dentro de um segundo apenas pra quem vê de fora.
Mas dentro dele foi simplesmente tempo demais.
Foi tanto tempo que o moço já não tinha mais olhos pra ver, apenas olhos pra olhar.
O moço não ouvia mais nada porque a única coisa que ele tinha ouvido por todo o tempo foi a respiração da moça e isso já havia deixado de ser som... agora era só um prolongamento da respiração dele mesmo. Era como um sinal: ela inspirava e ele acompanhava e aí expirava e ele ia junto.
O moço não sentia mais os pés no chão porque ficou alí tanto tempo que o chão cedeu e abaixo dele podia-se ver claramente o fogo do inferno. Sorte a dele que agora era apenas uma patética entidade flutuante.
O moço engoliu seco tantas vezes - pra não falar naquele tanto de baba que escorreu despercebida - que gosto era sentido extinto, assim como os cheiros do mundo: o único cheiro era o que tinha os cachos de fios dourados da moça.
Foi no fim de alguma dessas tantas eras que se passaram que a moça resolveu olhar pra trás.
Só que o coitado do moço foi pego de surpresa e estupidamente tentou se esconder com medo do que fosse pensar a moça se o visse tolamente parado alí.
Aí ele olhou pro oeste e viu uma outra moça no chão, de frente pra ele.
O moço caiu em si e resolveu que era hora de tentar algo novo, chegou perto da nova moça e disse:
"Eu te amo!"
Mas a nova moça disse simplesmente "não" e foi por isso que no final das contas o moço voltou pra moça - que por sua vez já havia voltado pro vento - e continuou lá agarrado às migalhas do "talvez".

Shhh shh shhhhh sh

Pra quem nunca foi até o mar até que ele o conhecia bem.
Da varanda da casa de praia (na cidade da praia, mas longe da praia) o que ele via eram carros, mas o som do mar nunca se ausentava.
Ele praticou a vida toda e aos 60 anos era capaz de ouvir só o mar e nada mais - nada de carros, nada de vitrola, nada de rádio e de festa e de gente, só o mar.
Se lhe pediam para descrever o mar, no entanto, pouco poderia ser dito.
Ele chiava e chiava, com a boca em forma de bico e lançando umas cusparadas no processo.
Ninguém nunca entendeu o que aquilo tinha a ver com ondas e água e sal, e preferiam que ele tivesse falado das cores e do vai e vem, mas ele sempre soube que falar da cor do mar pra quem já sabe que é azul e verde não serve pra nada, que todo mundo sabe do sal e das ondas e sabem tanto, mas tanto, que ninguém guardou espaço nos pensamentos pra saber do que elas dizem.
Ele descobriu o que elas diziam trocando versos com o vento e descobriu quando o "Shhh" era grito e quando o "Shhh" era música.
Só é uma pena, simplesmente, que ele nunca tenha tido bico o bastante pra dizer na língua do mar nenhuma de suas rimas sutis e, ainda que tivesse, ele sempre soube que de nada adianta gastar saliva pra ouvidos que só sabem ouvir aos seus iguais.

Carga horária

Ele acordou, no dia 22 de maio, querendo saber do limite.
Ele foi até a cozinha pra ver se topava com alguém que pudesse lhe dizer "até onde as coisas vão".
Não tardou a lembrar que vivia sozinho num apartamento sufocante a duas quadras do metrô.
Aí ele pegou a cafeteira pra fazer um daqueles bem fortes que assim ele achava que o café desceria feroz pela goela obrigando as idéias a subirem pra mente.
Ele engasgou.
Aí achou, com certa razão, que havia assim matado qualquer fio de idéia que pudesse estar vagando por alí.
Ele desistiu do café e pegou o jornal.
Ele achava que na primeira página poderia haver uma resposta.
Nada alí se falava sobre o limite das pessoas, nem do limite do tempo, nem do limite do amor, nem do limite da fé, nem do limite do limite.
Aí ele resolveu que fecharia os olhos e apontaria pra qualquer direção na folha dos classificados - o que viesse seria a resposta.
Ele apontou e o anúncio era sobre um emprego, mas ele não leu nada além do trecho que dizia "de 08:00 até 17:00".
Ele aceitou que "Até 17:00" era o limite.
Limite pra quê?
Botou uma camisa e foi pra rua.
Foi incomparavelmente feliz até as dezessete horas, depois disso voltou pra casa e pra vida e nunca mais pensou no assunto.

Eu é que fiquei pensando, pensei muito!, que se fosse eu, teria prorrogado pra depois que as veias falhassem e as rugas se amontoassem tanto que já não se pudesse ver nada além da minha própria pele.
O limite estaria aí e só depois daí tocaria o sinal e eu poderia descansar de ser feliz.