29.7.11

Sobre preço e ritual de passagem

O problema de erguer-se até a estratosfera é que invariavelmente ela arrancará cada centímetro da sua pele, músculos, órgãos e ossos até que não reste mais nada daquilo que um dia foi você.

Só se faz retrato dos mortos

"eu to SEMPRE aqui
 sempre...
 eu gostaria
 de nao estar
 mas eu to."

Sobre os hipocondríacos

O problema é com meus pulmões ou alguém anda mudando a composição do meu ar?
Espera...meu?
Mas nenhum ar é meu... todo ar é nosso, e se alguém mudou a composição do ar, mudou pra todos... e todo mundo anda por aí tão normalmente, tão adaptados, tão experts, que com certeza não estão passando (não podem estar, simplesmente) pela mesma dificuldade que eu.
Não, o ar é o mesmo, nada nele mudou.
O problema é definitivamente, só pode ser, no meu próprio sistema respiratório.
Posto isso, começo a notar, como o cientista recolhendo as confirmações da tese, a tosse fraca, o aperto que vem de dentro. Nada mais aqui funciona como um dia funcionou, nada funciona como deveria funcionar, nada funciona como eu esperava que fosse funcionar a essa altura da minha vida.
Assim, agora a dúvida que paira beira mais uma queixa:
Quem é que foi que me estragou? :(

Sobre bocas secas

Oh, well... mon dieu...
Porque às vezes a gente tem que falar em outras línguas, se a nossa própria já se gastou inteirinha (e não se aguenta mais) com os tais "puxas vidas".

Considerações sobre a natureza das naftalinas

Ainda não sei se o que eu sou é a própria naftalina ( e sua mágica capacidade de desaparecer contra a vontade ) ou os asquerosos objetos largados na gaveta a que se destina o seu emprego; aqueles objetos que a gente sabe que nunca vai usar, mas que também - talvez movidos por um altruísmo vaidoso e meio babaca - nós não temos a audácia de jogar fora.

28.7.11

Sobre desfechos precipitados

A situação era essa:
Ela já havia subido no trem, porque não havia outra opção, porque todos têm que subir no trem algum dia - cada um no seu próprio.
E a questão toda é que se o trem tem maquinista ou não nós não sabemos e a questão toda é que mesmo se soubéssemos que existe um com toda a certeza, não dá pra gente simplesmente ir até a cabine e perguntar: pra onde diabos é que nós estamos indo??


Ela não sabia onde ela iria parar, o que ela sabia era pra onde ela gostaria de ir, mas isso só é relevante se a gente está a pé.
E ela... ela andou a pé por tempo demais, ela tinha disposição!
Mas aí ele veio e ele gritou pra ela cheio de presunção: corre, moça! corre que a senhora vai perder seu trem!
Puxa vida... o tonto não entendeu que ela queria prosear um pouco mais, não entendeu que ela queria ir a pé mesmo... quiçá de mãos dadas...

Contra a vontade, ela deu um salto maior do que imaginava ser capaz de dar e se agarrou ofegante ao último vagão rumando com este para o desconhecido.
 Olhou para trás pela última vez e se perguntou se deveria ter deixado mais claro que adora respeito mas que ele poderia te-la chamado de "você" se quisesse.


Sobre os supers e calcanhar de Aquiles

Aquele não era mais um homem invisível.
Aquele estava mais para um cara de invisibilidades.
A gente podia vê-lo vagando por aí e atravessando tudo o que viesse pelo caminho sem se dar conta.
Ele deixava que carros, dragões, banquetes e mocinhas indefesas perfurassem seu peito e seguissem adiante sem sequer percebê-los.
Ele ia tão obstinado, marchante, sempre em frente, que quando a gente se prostrou debaixo do nariz dele ele não sentiu o nosso cheiro, ele não ouviu o nosso "espera!", ele só continuou indo.
E o problema do foco é que o resto do palco se consome em trevas e afinal quem é que falou que é justo naquele pontinho específico que o que importa de fato está acontecendo?
Quem é que disse que aquele é o protagonista, que aquelas falas valem a pena?
E o nosso homem e seu super-poder de passar uma borracha em todo o resto, um dia passou por um certo algo deveras importante e também esse certo algo foi reduzido à mesma condição dos móveis, das calçadas, das nuvens e dos bem-te-vis já tanto subjugados.
Daí você me pergunta: "e daí?"
Daí... daí que esse... esse era deveras importante.
E dai que agora já era.

27.7.11

Sobre a desvalorização do couro e esquecimento

Então você percorre pela décima quinta vez o lado oeste do bosque, como quem não quer nada, mas sapateando em todos os gravetos possíveis.
Você desfila languidamente, de forçada inocência, com sua pele aveludada ainda mais exótica sob o poente.
Daí você torce, torce com todas as forças do seu íntimo, para que hoje seja dia do caçador.

25.7.11

Prato feio

E a sensação é de que você vai sair da vida carregando nada mais que um boné, uma camiseta e uma caneta padronizadas com a logo do CSH (Coorporação Ser Humano).
Se der sorte, sua foto vai sair no anuário como mais um bom exemplo de sujeito que cumpriu sua função - função essa que é justamente (e somente) fazer volume no tal álbum de recordações da empresa do Planeta Terra.

20.7.11

Sobre anatomia

Tem seres humanos que têm uma postura excelente para corrida.
Eles se projetam para frente e se vão como que na velocidade da luz e é lindo e talvez até saibam para onde é que estão indo.
E talvez não.

Tem seres humanos que têm uma postura tão retinha e linda, que se mantém.
Ficam de pé mesmo, onde estiverem, e não importa a força do tornado, não importa a temperatura do sol, não importa se tem água não importa se tem sombra, o que importa é que eles têm a postura de quem fica de pé.
Um dia eles caem, mas é só depois que o coração para de bater.
Esses seres humanos não precisam de perspectivas, eles têm as raízes.

Tem seres humanos, por outro lado que não tem postura alguma.
Escolióticos irreversíveis! Uns coitadinhos, esses...
Esses seres (sub)humanos são corcundas de sentimentos e suas costas retorcidas apontam para direções desconhecidas - desconhecidas porque os olhos não podem saber quais são já que ficam na frente e as costas  atrás.
Esses seres, eu seiq eu você acha que são feiosos, são incapacitados, que esses seres não tem auto-estima alguma.
Mas eu sou um deles, e se tem uma coisa que eu posso te contar sobre (alguns de) nós é a seguinte:

Se você nos vê de joelhos fraquejantes quase colados ao chão e vê nossas mãos prontas para apararem a nossa queda, não se penalize que isso é só o prólogo.
Porque por mais tortos que sejamos nós ainda podemos pular: o que vem depois dos nossos rostos espremidos contra o chão é o impulso, e o que vem depois do impulso é algo que você e sua postura invejável nunca viram igual.
E você, eu garanto, ainda vai nos ver tocando alguma estrela distante em um salto só.

E pra onde é que foram mesmo as possibilidades?

Encarando uma poça remanescente do último pé d'água, suspira o homem:
Veja só no que você se transformou... num pobre velhaco cheio de bloqueios.

19.7.11

Sobre o movimento das nuvens VI

Dizer-se-ia, em tempos como aqueles, que dizia eu coisas flutuantes de compasso inconstante sobre outros tempos ainda mais remotos; dizer-se-ia que era eu tal coisa e eu mesma era outra coisa que nem eu e nem ninguém jamais pudemos imaginar.
Poder-se-ia dizer, por exemplo, que era eu a garota sob a coroa, de cetro na mão esquerda tentando fazer coração se (con)centrar em bater direitinho. E eu era muito mais.
Poder-se-ia dizer que era eu garota sobre as nuvens, de pensamento solto, voando pro lado que batesse o vento. E eu era mais ainda.
Agora se pode dizer o quê?
Que se pode dizer, em tempos como estes, que canto eu sempre as mesma notas, sempre no mesmo tom? - como a criança que pratica pela milésima vez a escala do sol maior.
E o sol se vai, e a minha escala do sol fica.
E cala o mundo, a escala do sol permanece.
Dizer-se-ia, em quaisquer outros tempos, que era eu constituída de vastas pradarias, que meu reino se estendia, tendente ao infinito.
E agora diz-se o quê?
O que é que se diz agora do meu reino?
Meu reino não é mais meu, e eu deixei de ser rainha de fato e passei a ser só rainha de nome: Rainha, a mulher do Rei.

17.7.11

Sobre nossa física colapsada



"Many is the bond between the hopeful
 and the dying."

Ultimamente (e penultimamente e antipenultimamente e antes disso) receio que nosso espaço-tempo tenha se tornado somente metade do que era: somente o tempo.
Receio que nossa quadridimensionalidade toda (ou ainda mais!) tenha sido reduzida, aniquilada, a um unidimensional mais do que pacato.
Não existe nem mesmo a distância, que pra se haver distância antes é preciso que se haja espaço.
Não existe pele, não existe som.
Não existe pensamento - e, se existisse, afinal  'de que serve o amor em pensamento?'
Daí também não existe o amor.
Só existe o tempo. A consciência dele mesmo, do arrastar das horas.
E o que vem depois do Big Crunch é mera especulação.
Por isso, por enquanto lamento... mas acho que nosso universo está mesmo morrendo.

16.7.11

Sobre preço

Existe uma engenhoca que funciona dentro do nosso corpo e ninguém sabe, que fui eu que descobri, numa noite dessas bem sem estrelas.
Eu dizia: Vai, coração, pode bater forte.
E aí ele batia, e aí meus olhos se fechavam.
E aí eu dizia: Chega, coração! Você já bateu demais... agora volta a ser músculo, e só músculo e nada mais.
E aí meus olhos se abriam de novo.

E deve ter é bem umas cordinhas invisíveis que ligam os dois, porque já falseei de todas as formas possíveis e não restam mais dúvidas: se o coração bate, os olhos não podem ver e vice-versa.
Agora a minha questão é decidir o que é que eu vou querer aprender a viver sem.

Homem ao mar

E em determinado momento da travessia você caiu no mar.
Você talvez tenha se jogado, você talvez tenha sido empurrado, você talvez nunca tenha estado dentro do barco de fato; mas agora é você tendo consciência do seu corpo congelado no meio do Pacífico.
O enorme transatlântico o qual você acreditava com toda a fé do mundo ser parte fundamental agora segue à sua frente. Às vezes tão à sua frente que você sequer pode vê-lo! Você sequer pode ouvi-lo, sentir o cheiro da graxa.
Às vezes ele vai à sua esquerda, às vezes à sua direita, às vezes atrás de você.
Mas você não sabe, por que afinal como você saberia com tanta névoa pra te tornar um pobre diabo cego?
Na sua cabeça, ele está sempre à sua frente.
E é pra lá que você nada... ou pelo menos tenta.
É pra ele que você dá suas maiores braçadas, as mais eloquentes, as mais otimistas, as mais ingênuas.
É pra ele que você desprende toda a sua energia, uma energia que você nem sabe de onde vem...
Só que às vezes ela acaba.
Só que às vezes você precisa de descanso, às vezes você precisa se estirar numa daquelas espreguiçadeiras confortáveis perto da proa e deixar o navio te conduzir com cavalheirismo, aquele cavalheirismo cheio de galanteios que te prometeu o folheto.
Às vezes você precisa disso e é por causa dessa necessidade (uma saudade adornada com choramingos infantis) que você acha que um dia esteve à bordo.
Não fosse isso, essa fome, você não teria nada que te fizesse pensar dessa forma, você sequer pode se lembrar quais eram as cores do casco! E qual é que era mesmo o nome do dito-cujo?
Será que era "O Paraíso"?
Será que era "A Liberdade'?
Será que era "O Felizes Para Sempre'?
Você se confunde todo... você não sabe mais o que é filme e o que é a sua vida.
Você pára de nadar e você afunda um pouco.
Após os três primeiros goles nada espontâneos de salmoura você acredita que é verdade, que você é o protagonista seja de que diabos de história for essa.
E aí você continua nadando, porque é isso ou não é nada.
E o nada vai vir de todo jeito, você querendo ou não, um dia... daí você decidiu deixar que ele viesse por conta própria mesmo, amanhã, daqui a uma semana, daqui a um mês... mas agora não, obrigado.

14.7.11

Sobre o movimento das nuvens V

O fato é que o motor nunca desliga.
O fato é que enquanto houver água para correr, as engenhocas irão se contorcer e a energia brotará magicamente nos impulsionando para frente.
Estamos sempre indo... indo... indo.. alguém duvida?
A questão é só "pra onde?".
A gente pode até escolher, a gente pode.
A gente faz aquela equação bizarra e extremamente variável e extremamente única para cada pessoa que envolve mais ou menos a direção do vento, os índices de motivação, a quantidade de energia desprendida no processo, o grau de rotação necessário no eixo, as passadas, as rebimbocas das parafusetas e etc, etc, etc.
Mas acho que no final das contas se resume ao magnetismo.
Veja bem: você está indo, simplesmente, e ao teu redor o mundo funciona te repelindo ou te puxando, no final das contas é imprevisível demais pra gente saber onde é que a gente vai parar.
E digo mais, o ambiente te transforma de uma forma maior do que seria compreensível.
Quer um exemplo?
O ser humano hoje tem ares de televisão.
O ser humano tem ares de dinheiro, tem ares de casa própria, tem ares de meio de rua... não sei!
E a regra é clara nesse ponto da vida: se você sabe o que você quer você deve se cercar dos cheiros, dos gostos, dos sons e das perspectivas certas e elas invariavelmente te levarão até lá.
Eu disse invariavelmente sim.... se dependesse só da gente mesmo.
A culpa dos desvios (100% ocorrentes, diga-se de passagem) não está na equação, não está na teoria. Está no processo.
E se você perguntar ao físico porque é que ele sempre faz as contas de movimento sem levar em conta o atrito ele te vai dar uma resposta que te responde exatamente porque é que eu quando faço minhas contas sobre o percurso não levo em conta todas aquelas pequenas coisas que vão dando errado... todas aquelas pequenas coisas que não estão onde deveriam estar, toda a nossa mudança de humor.
E se o universo fosse feito só de coisas e você mesmo, seria muito mais fácil! Seria muito mais fácil, porque coisas não tem pernas!
Mas a gente quer pessoas.
E se as pessoas usam as tais das pernas que elas têm elas vão embora, e se elas vão embora o ambiente muda e se o ambiente muda a gente muda e no fim a gente deixa de querê-las e pronto.
(E aí é só esperar passar um novo par de panturrilhas com uma carga elétrica particularmente atraente.)

13.7.11

Reprise não, mamãe!

Não vale a pena ver de novo aquela mesma baboseira de você sentada na sua poltrona desbotada, com seu salto oito e meio e seu melhor vestido e o seu melhor sorriso e o controle remoto na mão.
E, sabe? Que bom é que existem catadores de lixo, e, em última instância, sempre tem também um bom vira-lata interessado.

Às vezes a gente topa com uma pessoa que tem coração.

'Gente! Esse daqui tem coração!' , a gente grita.
E em algum lugar lá pela esquina vem uma senhora correndo com a bolsa na mão para olhar mais de perto, e em algum lugar bem atrás de você um sujeito deixa escapar um 'caramba!' esbaforido.
E tudo o que você consegue pensar então é que esqueceu a droga da câmera no bolso do outro casaco.

12.7.11

Sobre jogo duplo e os desprecavidos

Você muda sua vida toda pela chuva.
Você muda tuas roupas, você muda teus planos, você muda teu penteado, você revê a quantidade de coisas na tua bolsa, você escolhe os sapatos certos e você tem a tua sombrinha à mão.
Quando você sai de casa pára de chover e quando isso acontece você se senta no meio-fio e você suspira fundo e você promete que você nunca mais vai dar uma bobeira dessas.
Da próxima vez, diz você,  eu vou esquecer de toda essa baboseira pluviométrica.
E daí na vez seguinte você sai de pijama, e na vez seguinte você sai de chinelo, e daí , justo nessa vez, ela pinga forte pelas calhas de todas as casas, pelas marquises de todos os prédios, em cada folhinha favorável em cada árvore do caminho, como quem te diz assim:
Não interessa se eu to ou não to, o que interessa é que você tem que estar. Sempre.

11.7.11

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA...

-
Os covardes também gritam, mas gritam por escrito e depois deletam.

Pode-se dizer que sou meio a meio.

Sobre carapuças

É uma situação delicadíssima aquela em que o sujeito se pega no meio do deserto sem mapa, sem bússola, já desconfiado até do sol, e topa com uma caixa enterrada pela metade.
O sujeito tira então a caixa da areia, levanta e a contempla.
Ao constatar que, de tão perfurada, rasgada e destroçada, a caixa dificilmente ainda pode ser chamada de caixa, ele grita: Deus! Isso é mesmo papelão e cola e areia ou isso sou eu?

Balada dos loucos, plural.

Nunca foi daqueles que entendiam intrinsecamente o funcionamento das interações do mundo.
Digo aqui o tipo de interação que vai além, muito além, do social.
Ouso afirmar que não entendia nem as razões das próprias pernas serem, simplesmente.
Corria com elas por aí, nas maratonas estudantis - das quais, há de ser enfatizado, só participava por mera obrigação - e jamais ficou em último.
E jamais ficou em primeiro.
E sempre ficou numa colocação final que era nem lá nem cá e que no final das contas era justamente essa que ninguém se lembrava. Nem ele.
E enquanto rolhas zuniam pelo céu e enquanto lenços abarcavam as decepções ele era o cara encostado no muro se questionando simplesmente "pra quê?".
Nunca conseguiu ter a (in?)sensibilidade tão necessária para guiar o próprio curso e esquecer-se da inquietação dos "pra quê?s".
Deixa o curso ir, e pronto. E o curso (confessa) vai por aí escolioticamente torto.
E tudo bem, que uma hora o curso cessa de cursar mesmo...
E tudo bem, que todo curso tem seu leito e todo leito tem seu ecossistema.

Talvez seja daqueles malucos que tentam viver no próprio leito, talvez seja daqueles coitados que só têm colhões para fazê-lo dessa forma.
E talvez a verdade seja que todo mundo seja esses tais malucos... talvez todo mundo seja esses tais coitados - é que do fundo do próprio rio o mundo lá fora parece de grave hegemonia, é que do fundo do próprio rio não dá pra ouvir o que se passa no fundo do próprio rio dos outros malucos.
E sobre o entendimento do funcionamento das interações do mundo, talvez nem o próprio mundo saiba bem o que pensar... a diferença é que as gentes se importam e o mundo não.
Sorte a dele.

Sobre administração de latifúndios emocionais

Aprendeu uma lição valiosa em determinado momento da vida e ela dizia mais ou menos o seguinte:
Mais vale não se ter o que se quer ter por longo tempo antes de tê-lo de fato, que só assim - tendo em vista o aspecto indubitável do ciclo conquista-descaso humano - é possível continuar querendo por tempo o bastante para que tal se torne mais que querer - no momento em que a vontade da carne evoluir para a necessidade dos ossos, eis então a hora certa para se possuir o que se há para ser possuído.

E pena é que "aprender" é verbo alheio à postura do "pôr em prática".
E pena é que, caramba, seus ossos e sua carne sempre mantiveram relações próximas demais para que os olhos pudessem avaliar qualquer diacho de coisa.

10.7.11

And it's: "Hello, baby!"

Quanto eu fiz quatorze anos o mundo me deu de presente um gato malhado da cor do fogo e foi no reflexo dos olhos dele que eu me enxerguei pela primeira vez.
Um dia meu gato foi embora, eu tinha quase dezessete, e eu então me observava tanto em todos os espelhos e superfícies refletoras, de todos os ângulos possíveis, que eu nem percebi sua partida.
Hoje em dia passo a maior parte do ano acreditando piamente que meu felino enfaiscado partiu desta para melhor, simplesmente porque é mais fácil assim.
É mais fácil assim que sair por aí procurando por ele, deixando posteres desesperados em cada poste.
Algumas coisas a gente perde e pronto, algumas coisas a gente tem que deixar ir. E pronto.
E de qualquer jeito às vezes topo com umas bolas de pêlo agarradas em cantos aleatórios de mim e então sobe o cheiro exato que ele tinha... e de qualquer jeito, quando isso acontece, me sobe o cheiro exato que tinha eu! E, curioso, mas em ocasiões assim tenho a sensação de que alguém anda também se refletindo nas minhas pupilas.

9.7.11

Sobre troca

Nessas noites tão sozinhas caladas,
Passo a entender melhor as palavras que a Lua cisma em refletir.
Daí reflito:
Pode um homem levantar-se sem cair?
Pode um reino erguer-se sem outro algo vir à baixo por ele?

Ato I e Ato II, uma análise

Sentava-se, bem como quem não quer nada, na beiradinha da ribalta e sacolejava as pernas magricelas do modo provocativo que tinha aprendido nos filmes.
Usava um rabo de cavalo bem alto, tão alto que já se entortava para a esquerda. Até que ficava bonitinho.
Ela tinha 13 anos e se considerava muito sabida, e se considerava muito entendida dos assuntos adultos, e se considerava mesmo de tudo um pouco.
Era bom esse tempo em que de alguma forma a mente era capaz de abarcar o mundo sem medo...
Mas agora era ela sentada, como quem não pode nada, na beiradinha da mesma ribalta e era ela se mantendo o mais estática possível que era para não chamar atenção às pernas magricelas demais.
Usava um coque sóbrio e teimava, quase que mecanicamente, em prender atrás da orelha os fiapinhos rebeldes que lhe escorriam ao rosto.
E eles até que eram bonitinhos, e ela não sabia.
Ela tinha 26 anos e se envergonhava das suas ignorâncias, e se desesperava com a idéia de ser adulta, e se desesperava com a própria pequenez.
Sombrios esses tempos, em que a mente suprime o coração e os vazios inflam o peito para fazerem mais volume que as certezas.

8.7.11

Sobre quando a gente se olha no escuro

É o completo escuro que me acorda e as minhas pernas colapsam em arrepios.
É que daqui a pouco o sol volta, e é esse é que o problema todo:
Se o sol voltou é porque a lua se foi e se a lua se foi é porque o dia acabou.
E, puxa vida!, dia, como você pode ter acabado assim?
Foi embora sem mim.
Eu fiquei, e eu nem sei onde foi isso..
Talvez naquela parte do caminho em que o folheto me prometeu uma boa dose de realização, ou naquela outra em que uma placa dizia: "Pare"; porque sinto uma vergonha tão grande! Aquele tipo de vergonha que só um completo idiota (mas um completo idiota consciente disso) pode sentir.

Sobre barragens e engenharia de quinta categoria

Descobri a verdadeira realidade sobre meu coração quando um certo alguém me atirou o cascalho final... eu olhei direto naquele par de olhos confusos enquanto as mãos se erguiam com o estilingue.
PLAU!
O ato seguinte era eu de joelhos tentando entender o que diabos estava acontecendo aqui dentro, porque pedrada eu já levei - até mesmo bola de ganhão já me atiraram - mas nunca senti o que estava sentindo naquele exato momento... e por tão pouco!
Um médico bem entendido de miocárdios e decepções teria visto a rachadura, ele teria percebido!
Mas foi preciso aquele último impacto pra que tudo se estourasse, pra que a fortaleza viesse abaixo e desaguasse por todas as direções.
E por mim tudo bem, uma hora isso iria acontecer mesmo.
Minha única preocupação curiosidade é o grand finale: o que é que vai sobrar do lado de dentro depois que toda a mágoa represada escapar pro mar?

"Desastre" é um termo amplo

Quando a Terra estacionou eu achei que já era pra mim, e foi um longo tempo de maré baixa... só eu sei.
Mas quando eu menos esperei as placas tectônicas ouviram meu assovio soluçante e decidiram que já era hora de dançar de novo.
E elas dançaram mesmo! E se eu soubesse pasodoble eu dançava junto...
Mas enquanto o mundo desabava por todos os cantos, enquanto os radialistas se desesperavam aos berros, meu único pensamento real era tirar a prancha empoeirada do armário; meu único pensamento real era esse: era fazer de novo (ou talvez pela primeira vez fora de um sonho) as manobras mais insanas no asfalto vacilante em 6/8.

7.7.11

Sobre romance

Nós descíamos a Quarta Avenida em plena velocidade.
Nós ignoramos a chuva e nós ignoramos o vento.
Nós éramos mais que humanos.
E os humanos de verdade passavam todos despercebidos pelas nossas adjacências: eles não eram nada além de um borrão indigno de memória, indigno de uma olhada mais demorada.
Aquela era a nossa Quarta Avenida, o nosso mundo.
Uma avenida pra dois, na medida exata... e ai de quem quisesse ocupar a nossa calçada também!
Nós aprendemos a atropelar os invasores do que era nosso sem piedade.
Alí só existíamos nós e o concreto que se apresentava para que dessemos o próximo passo.
E nós pisávamos firmes, quase numa competição pra ver se quem tinha mais certeza - certeza sobre o passo, sobre o ritmo, sobre a felicidade que repartíamos - era eu ou você.
Nossas pernas doíam com tal brutalidade que a cãibra que chegou foi bem vinda.
E nós ríamos até disso! Até da cãibra...
Qualquer casca de banana se tornava um motor de propulsão, a vida era bela.
Nós tropeçávamos com constância mas nunca nos espatifávamos ao chão: eramos o escudo um do outro. Éramos um aglomerado de sentimentos juvenis à prova de bala.
Irrefreáveis, eu e você... nós éramos irrefreáveis.
E agora pensando sobre isso vejo o meu erro: jamais deveria ter largado mão do meu freio, do meu retrovisor, porque pode ser que eu tenha corrido rápido demais, pode ser que eu tenha perdido o passo, e a verdade é que virei uma certa curva e não tinha mais braço nenhum pra aparar a minha queda.
Desmoronei.

Erro

Às vezes fico pensando que os óculos escuros que eu te dei talvez sejam escuros até demais.

6.7.11

Sobre auto-sustentação e hospedeiros cegos

Nem toda adoração é um ato de amor, mas todo ato de amor é uma adoração ao próprio amor.
Ele é o deus e é a virgem soluçante por ele sacrificada; ele se aniquila por si mesmo, se renovando em intermináveis rituais em própria honra.
Ele morre para que se alimente do próprio sangue e nasça de novo sob a pele de um novo avatar - a sacada de mestre de Cristo, a morte pela ressurreição.
O amor se esfarela para se erguer das cinzas em um triunfante ato de vingança à ele mesmo, como uma fênix  mais mórbida e disfarçada de sentimento humano.

Em todos os minutos, em todos os segundos, dentro de cada célula do nosso corpo:
O amor se ajoelha e o amor venera a si, bem diante dos nossos olhos confusos, ele entra em comunhão pessoal.

Sobre vidas desenxabidas e revolução

E ainda nas terras do sul e ainda nas terras do leste podiam ser ouvidos os urros descontrolados da Rainha mimada:
Dê-me tudo! Vamos! Dê-me o que tiver! Dê-me tudo o que mais for azedo e dê-me tudo o que mais for amargo! Dê-me todo o açúcar do reino e dê-me para devorar salinas inteiras! Dê-me a pimenta mais forte que fores capaz de encontrar!  Eu te desafio!
Dê-me o que tiver! Vamos, já disse! Dê-me tudo! 
Dê-me tudo ou então... ou então corte-me a língua! Pronto, corte-me a língua, que posso decerto suportar qualquer coisa, qualquer castigo! Mas, por misericórdia!, poupe-me do insosso ao menos uma vez.

5.7.11

Sobre expansão e antídoto

E você vê os coelhos se multiplicando como uns delinquentes por todos os cantos e você vê as nuvens se desdobrarem aos milhões, e você vê os raios do sol se tornarem eternamente divisíveis em uma escala supra-humana, e você vê as montanhas se tornarem um exército de grãos de areia escaldantes, e você vê você mesmo reduzido a incontáveis fragmentos enquanto tenta conter o sangramento forte do punho e o espelho estraçalhado por todos os cantos ao teu redor.
E então, reconfortado com a consciência dos prismas e das tempestades, te resta apenas uma pergunta mais: pode, algum dia, o deserto voltar a ser montanha?

3.7.11

Sobre promessas e decepções (ou, mais honestamente, "sobre esperanças e ingenuidade")

Tudo o que eu posso dizer é que é um pouco desesperador quanto a gente se aproxima da nossa muralha e ela se revela um desleixado meio metro de concreto fuzilado de cima abaixo.


E tudo o que eu tenho a acrescentar é que o desespero se transforma em solidão profunda quando, num último ato de aceitação, tentamos apoiar nossos braços cansados em seu cume e ela desaba.

Poente

Sentava eu sobre o rio, com as pernas balouçantes.
E queria eu balouçar mais pra dentro d'água, balouçar mais no fundo d'água... até parar de balouçar.
E sentava eu sozinha, cheia de gentes ao meu redor, cheia de gentes sozinhos também (mas sem saber), e, sozinha, pensava eu meus pensamentos tortos, daqueles que de tão tortos que são me entortaram a mim inteira e a minha corcunda já se faz ver da Lua.
Mas o rio, o rio seguia reto debaixo de mim; para todas as direções sim, mas reto.

O rio corria com uma louca inexatidão, tão louca que eu nunca vi mais precisa, exatamente como deveria ser.
Ia destruindo tudo o que viesse pela frente, na maior das inocências, e ia também sendo destruído a cada metro no combate amistoso com as pedras pontiagudas da margem.

O sol batia meio de lado, mais pra prata que pra ouro, e me cegava pra tudo o que não fosse a água do bendito rio.
Meu novo foco me ensinou a olhar o rio de um outro jeito, um jeito que eu não sei dizer, mas que acho que algum dia alguém que se sentasse balouçante naquele mesmo lugar aprenderia espontaneamente se o sol batesse também meio de lado, meio que mais pra prata que pra ouro.

Eu não sei quando se deu o silêncio, eu não sei; o que importa é que esses pensamentos e todos os meus outros pensamentos se calaram reverentes quando o sol olhou pra mim, com seus olhos gordos engolidores de gentes, por volta das 17 horas e tudo o que ficou foi aquela vontade queixosa de balouçar mais pra dentro d'água, só um pouco... de ser água também, uma vontade destilada de atacar e defender só porque é assim que é, por essa simples razão!, porque foi isso o que quis a ordem do Universo, a matemática e a física e depois delas a evolução do ciclo natural.

Senti uma vontade esfomeada de ser o rio também, de contê-lo e de ser contida, de correr e colidir com qualquer montanha pelo caminho e fazer tudo isso e muito mais sem ter que lidar com os tais dos pensamentos tortos... aqueles meus pensamentos tortos que andam me encurvando mais a cada curva.
E eu ia vendo os estragos do rio na margem, dando nova forma apesar do caos aparente; e eu ia vendo como é que tudo se refaz e se desfaz e se refaz de novo e não existe corcunda nesse mundo tão simples e tão livre de sentimentos.

Minha corcunda doída se fez assim pelos meus pensamentos, e meus pensamentos se fizeram como são pelo meu coração bombeante de carências tantas que não se coube em si mesmo.
Meu coração, coitado, não se coube em si e quis por isso que saísse tudo goela afora.
Mas só quis... eu fechei os portões dessa vez, eu disse pra ele que explodisse então, fizesse o que fosse, que dessa vez eu não me deixaria transbordar.

Eu passei a chave e joguei essa chave no fundo do rio, naquele momento das 17:15 quando o sol se encaminhava para seu leito acobreado do finalzinho do inverno.
Eu perguntava ao sol e ao rio e ao mundo - que das pessoas eu já me cansei - o que é que eu fazia pra fazer parar de transbordar, o que é que eu fazia pra, se tivesse que transbordar, transbordar sem dor ou alegria: pra apenas deixar ir.
Aí era o Sol virando a curva por trás da montanha enegrecida, cheio de sugestões, e eu eu entendi o recuo como um "siga-me", entendi o recuo como um pedido pra que a platéia se levantasse.
E a platéia se levantou, num salto só, e a platéia aplaudiu com ardente entusiasmo o desfecho do Rei do Céu.

Talvez fosse uma cena deprimente pra quem se pudesse dizer a platéia da platéia do Sol, mas ainda assim me balouçava eu, sozinha, sem me importar com os outros (tão sozinhos quanto eu!).
Me balouçava eu sozinha então no vai e ver do meu corpo inteiro... meu corpo seduzido pelos brilhantes salpicados do rio que corria às cegas ainda sob meus pés.

E daí aconteceu o segundo milagre, e daí eu aprendi a ouvir:
Ocorreu a mim então que o vento andava sussurrando uns negócios no pé do meu ouvido, me ocorreu que o vento, vindo macio de leste pra oeste, me sugeria no mesmo idioma do Sol que o próximo passo era simplesmente dar o próximo passo mesmo, o passo da matéria, e aí enfim balouçar um pouco mais pro fundo bem como eu sempre quis e daí, enfim deixar que, na margem, meu coração e meus pensamentos se refizessem e se desfizessem e se refizessem de novo - daquele mesmo jeito sem sentimentos que eu vi o caos de plantas e bichinhos e lama se refazendo tantas vezes durante esse pôr-do-sol.

2.7.11

Sobre o movimento das nuvens IV

Eles se acostumaram com o chão de nuvens que um dia os protegeu da queda e foram inocentes demais... eles foram inocentes demais.
Eles acharam que o vento viria e que o vento não levaria as nuvens embora não, eles acharam que "nossas nuvens são mais fortes que qualquer montanha".
Mas nuvem é nuvem e montanha é montanha e o vento... o vento não perdoa.
Pheeeeeeeeeeeeeeeewwwwww...
Eles estão em queda até agora, e, até agora , são inocentes demais... até agora eles são inocente até a última gota.
Agora eles acham que é só questão de bater outro vento e trazer o chão de volta, eles acham que não importa a quantidade absurda de segundos que já tenham se passado, não importa quantos galhos suas costas maltratadas já tenham despedaçado floresta amazônica à baixo.
Eles sentem as pernas no ar e eles prendem a respiração e eles fecham os olhos e eles contam até três.
Preciso dizer que nada mudou?
BAM.
E daí são eles estirados na lama, e daí são eles fracos demais pra se levantar.
E, entre um sonho acordado e outro, daí são eles de novo procurando as nuvens entre os galhos que restaram.