27.10.10

Pra onde é que a gente vai?

Aquele parque onde tem o lago e tem a cerca enfeitada e tem as músicas maneiras tocando (e você nem sabe de onde vem!),  faz você se sentir um completo alienígena, um despreparado.
Todo mundo canta, mas você não sabe a letra da música e murmurra no tom errado, ainda por cima.
Seus passos são apressados demais, no campo não é assim.
E, puts!, você nem sabe nadar...
Aí você retorna para aquela rua onde tem os prédios e os muros pichados e tem as músicas batidas tocando (elas sempre vem do mesmo carro "turbinado"... ou então de outro, mas não importa porque são todos iguais).
Essa rua faz você se sentir um caipirão, um completo bicho do mato.
Todo mundo sabe dançar os funks e os forrós, mas você não gosta da letra e o som não lhe parece de bom tom, você vai andando.
Seus passos são lerdos demais, as velhinhas que vem atrás com suas sacolas de legumes cospem umas maldições e uns palavrões porque querem passar. Na cidade não é assim.
E você nem sabe andar de ônibus...

25.10.10

Sobre quem se anestesia

E aí, depois de tudo, o tudo que é, no fim das contas, miseravel e abominável branco na memória, sente a nuca explodir como um fusca que se espatifa na traseira do caminhão de lixo.
Porque não é só a batida.
Não é só o capô estraçalhado e uns ferimentos na testa.
Não é só a multa por dirigir irresponsavelmente.
(Você dirigiu achando que estrada era cheia de curvas, mas agora olhou pra trás e descobriu a patética linha reta pela qual zigue-zagueou como um doido varrido.)
A multa você aguenta, quem vai pagar é o seu pai.
O que você não aguenta, desde já, é a cara que ele vai fazer.
E você também não aguenta a sua mãe instantaneamente ao telefone contando para deus e o mundo.
Você não aguenta isso.
E o carro mesmo, bem alí na sua frente, completamente despedaçado, não te dá um pingo de raiva.
Em algum lugar por ali, no meio do caos, existe alguns aspectos que você já conhece, já sabe de cor aquela confusão e os destroços. Você olha para ele e você se afeiçoa, você faz um carinho no seu camarada.
Dentro de você tem um desses... já faz tempo que tem.
Nenhum reboque passou pra recolher e você sozinho não conseguiu vomitar.
Por isso é que não te incomoda ver a feiúra da lataria retorcida. É cotidiana.
O que te incomoda é o cheiro daquele lixo todo que caiu em cima de você, porque ele não faz parte do azar, o azar todo mundo tem. Todo mundo bate de vez em quando.
Mas o cheiro e as cascas de banana escorregando sorrateiramente para dentro da sua camisa e a sujeira em formas várias que tenta se fundir com o seu cabelo e pele, esses não eram parte da história.
Esses ultrapassaram o limite.
E aí quando você sozinho sentado na sua mesa de trabalho põe a mão na nuca e abre os olhos não existe fusca nenhum e o seu pai não está nem aí e a sua mãe também já não dá a mínima, mas o cheiro do lixo está lá, impregnado em cada migalha de cada uma das suas falhas tentativas de qualquer coisa, pra qualquer coisa.
É esse cheiro, essa lembrança... é isso o que te dá a raiva.
Só é uma grande pena que não existe por alí nenhum pau da barraca para ser chutado. Se tivesse - você se contenta - você chutaria com toda a força!!!!
=)

Depois de concluir isso, você se dá os parabéns e volta a trabalhar como se o gelol fosse realmente resolver o seu problema.

6.10.10

Meia hora

A gente resolve que mais meia hora é  a última chance, que depois que se escoarem os grãos todos a gente vai parar de vez.
Daí a gente aguarda a vez do outro, com as mãos repousando sobre os joelhos balançantes como que tentando interromper o tique nervoso.
Mas a gente descobre que não dá para interromper.
A gente descobre que aguardar dói.
A gente quer trapacear, a gente quer um atalho, simplesmente. Simplesmente...
Simplesmente pular tudo isso, todos esses minutos que parecem dobrar a cada esquina, até a hora em que outro irá cair na real.
A gente então resolve fechar os olhos e acelerar o processo, empurrar os segundos até o limite... e a gente faz isso e daí a gente pensa que a gente resolveu a questão, que o tempo passou e a gente não sofreu e a gente não suou e não surtou e que o nosso coração não saiu pela boca e que os nossos joelhos não balançaram.
Mas como uma mola dessas tão cheias de voltas, assim que a gente larga: ZUM! Os segundinhos voltam todos para onde estavam.
A gente olha no relógio e nada mudou e aí continua lá aquela meia hora pela frente que a gente vai ter que percorrer a passadas curtas. Curtíssimas! Tão curtas que eu acho que se percorre com as pernas amarradas.
Depois do primeiro passo começa o pulso a palpitar e você sabe que não demora e escorre pela têmpora a primeira gota.
Meia hora é tempo demais! É tempo demais...
Não dá.
Você engole 25 minutos e meio e uma bela quantidade de amor próprio e aí vai atrás.

1.10.10

Sobre as cismas

Todo dia planejava tudo muito bem.
Faria tudo o que fosse preciso até as 17 horas, a partir daí se sentaria naquela pedra de sempre, com as costas apoiadas no muro de sempre, vendo a garça de sempre tentando pegar, como sempre, o mesmo peixe.
Ele sempre fugia.
Gostava de ver a persistência da ave que já na centésima tentativa mantinha a postura concentrada para o bote como se fosse a primeira vez.
Gostava também de esperar pelo pôr do sol, que não tinha uma cor tão significativa quanto deveria, mas que era um momento e tanto e além disso funcionava como um lindo prelúdio para o planetário natural que aguardava sua hora de angariar olhares.
Mas no fundo no fundo, o esforço todo era por causa do lago e era exatamente por isso - um dia descobriu - que a pedra parecia mil vezes mais duras toda vez que a noite caía e não tinha nem estrelas nem lua para o lago refletir a luz e daí era tudo um grande lapso visual, obscuridade, e ficava lá tentando imaginar onde é que termina o chão e começam as águas.
Tinha dias que cerrava os olhos e tateava com os braços esticados mas só apalpava mesmo era as plumas da garça e a grama e uns pedregulhos daqueles bem canalhas que lascavam feio as mãos.
A gente sabe que boa parte dos motivos para nunca conseguir sentir as mãos baterem contra a água gelada era justamente porque nunca realmente se esforçou o bastante, de tanto medo que tinha de tropeçar e se afogar, ou simplesmente porque tinha medo de ela estar gelada demais (já sabia que estaria!)
Umas duas ou três vezes adormeceu de pé e sonhou que tudo tinha sido um sonho.
Passava algumas horas depois que acordava ainda de olhos fechados temendo olhar para o mundo e ver lá a garça e ver lá o sol se pondo e ver lá a grama fofa e ver lá a terra batida onde deveria estar o tal do lago.