30.9.11

A gente esquece que se quiser estilhaçar uma janela e pular dalí pro mundo, vai ter que encarar os cacos uma hora ou outra.

29.9.11

O aviso foi dado

às vezes topo com uma pedra difícil de ser ignorada.
não me desce pela goela, mas nem com muita boa vontade.
me arranha a boca inteira, me arranca os dentes.
quanto mais tento reduzir a pó com minhas abocanhadas mais me reduzo eu mesma a um trapo.
já tropecei em pedras em caminho público, algumas dessas vezes até me propus a pedir perdão...
mas dentro do meu terreno, dentro da minha cerca.. dentro de mim, não! aqui não! 
espera só até eu pegar o meu trator!

Eu não sei o que faço com esses olhos.

O mar adentra cada vez mais fundo no que antes era um lago.
(Pela escotilha o gato espreita.)
Meu "aqui dentro" arde, a tarde despenca, meu mundo desaba:
Estou de pé na proa e com dor.
O peito estufado não me convence como um dia me convenceu.
A boca se enruga por milímetros nos dois cantos e só eu sou capaz de ver, só eu.
Ao mesmo tempo que olha pro chão, olha pra lua e eu olho pros dois por medo de perder alguma coisa.
Olho o que os olhos olham, mas jamais pros olhos.
(Pela escotilha o gato espreita cheio de malícia.)
A tarde virou noite, e a noite é deveras fria...
A proa se põe a dormir. Eu espero.
Semblante estático, que medusa foi que te abateu?
Eu não sei sobre os seus olhos, eu nunca vou saber...
Como é que se passa a saber de olhos se a gente não pode olhar por medo do que há neles?
Cogita-se.
Hoje já é amanhã.
Estou (ainda) de pé na proa e com dor.

Outros não

Tem uma garota segurando uma máscara de papel na frente dos olhos.
Minha arrogância sempre me pôs acima de gente que usa máscara, só que dessa vez a máscara não tapa a boca cheia de gloss de morango que sorri.
(E, puxa!, como isso arruína minha superioridade...)
Tem um anel de diamante no dedo fino da garota, e é falso.
E e daí? - diz ela, cheia de dentes brancos e certinhos.
Por baixo da máscara que cobre os olhos a menina sorri, como se carregasse a própria lua no anelar...
E eu, que carrego a lua nas idéias, jamais vou saber enxergá-la em nada que me circunda, nem nela mesma... porque na frente dos meus olhos não existe máscara, mas existe um muro onde afixaram uma placa que diz: not real.


Sou uma viciada em desmentir o mundo, me confesso.
Ademais, não sei fazer poesia.
Os pincéis não me obedecem...
Minhas curvas são duras demais, minhas retas são fracas.


Não sei me estender ao amarelo.

Meu peito palpita, mas minha respiração é torta.
E, francamente, esqueça o ródio e o ouro e o mistério... o que existe de verdade mesmo no meu bolso é papel de chiclete (com o chiclete usado dentro), uma moeda de um real e uma tampa de bic.

28.9.11

Gato

Pus o gato pra dentro de casa, porque eu sou assim. Eu pego as coisas e boto pra dentro de casa, pra dentro de tudo, pra dentro de mim. Incluo o que dá, e daí sobro.
Só que sempre tem alguém pra mandar o meu gato chispar.
Daí eu pego meu gato e o ponho de frente pra porta da rua, e daí olho nos olhos amarelos e daí mio junto.
Sinto muito camarada, essa noite eu e você dormiremos por aqui.
Plural.
Pus o gato pra dentro do meu fora. Éramos eu e ele um dentro do outro, e eu ia engasgando com as bolas de pêlos e ele ia engasgando com meus sentimentos despropositados.
Foi demais pra ele, acho.
Pediu arrêgo, me fugiu, me sumiu, me pôs pra fora de nós dois com um abano de rabo bem no meu meio da minha fuça.
Me sobrou uma tigela de leite frio.

Exodus I

Eu andava pela cidade grande com as duas mãos no bolso do casaco e um chapéu imaginário na cabeça.
Aos trombões atravessava dúzias de ruas, uma atrás da outra, meio que contornando prédios e mais prédios.
(Tem gente que não faz o contorno, tem gente que não usa casaco nem no inverno...)
Uma menina cara-pálida de batom exageradamente vermelho segurava uma garrafa de whisky cinco palmos acima da própria cabeça - um troféu.
Ela não era mais uma menina, mas ainda não sabia disso, apesar de fingir que sim.
Usava um vestido de listras azul e branco e um cintinho de gente rica. Não usava chapéu.
(Nem real nem imaginário.)
E, penso eu, tem quem levante a voz pra falar de diferença de raça!
Se um dia eu for abandonar o engasgo da minha garganta, vai ser pra trovejar é que não sou menina de condecorações e que minha cintura não precisa de um cintinho pra existir debaixo dos panos; que contorno prédios mesmo que isso não sirva pra nada e que de exibicionistas o mundo já se encheu: é por isso que a minha mão cheia de anéis de ródio e o cacete a quatro há de permanecer dentro dos meus bolsos até que eu trombe com alguém que mereça vê-los.
(E quem sabe este também não tenha os olhos certos pra enxergar o meu chapéu?)

25.9.11

2610

Sinto meu coração ceder.
"O que cê tá fazendo, coração, o que cê tá fazendo?"
Daí ele bate.
E de novo, e mais forte.
Não existe bronca, não existe retórica, não existe lei.
Os olhos dão meia volta...
Minhas pálpebras ameaçam cegueira permanente mas eles não caem no blefe.
Não existe razão, não existe boa vontade, não existe destino,direção, deus, reza, aprendizado, justiça, honestidade. Nada.
E o corpo se move sozinho.
E as pernas se vão.
Pedir pra tudo parar não serve de nada se não posso nem parar a mim.
E tudo continua, e eu continuo... e tudo de novo, e mais forte.

Deja-vu

Quando você menos espera o buraco reabre sob seus pés.
De dentro sai um eco que, meio que engasgado, diz:
"tu é linda, puta que pariu".
Você cai no choro, aos soluços!, enquanto tenta manter as mãos firmes na beiradinha do abismo.
Que você jurava que tinha fechado bem dessa vez, você jurava...
Acimentou com esquecimento, costurou com arame farpado ao custo de muitas espetadas nas próprias mãos... mas ele nunca vai se fechar, você sabe disso.
Olha ao redor e o mundo todo é só espinhos, o caminho só tem pedras... suas pernas às vezes doem até rachar! O chão inteiro te congela dos pés à cabeça. Você não aguenta mais essa frieza... E lá no fundo do poço? O que tem no fundo do poço é um quarto fechado com fronhas com cheiro de lavadas, uma música pra dois e o aconchego de um abraço quente (e deveras esperado).
Agora você olhando pro céu entende que "queda" é um conceito vasto: você vai cair, seja o que fizer, seja que direção tomar... a questão é só pra qual lado.

23.9.11

Toca do coelho

Espiei o mundo lá fora por debaixo da fresta da porta do banheiro.
Eu não acendi a luz quando entrei, e era noite.
Estava tipo querendo experimentar a realidade...
O basculante era grande demais, a lua entrava inteira (abusada) e ainda assim meus alguns metros azulejados eram drasticamente mais escuros que a luz artificial que se espremia pelos 5 centímetros entre minha porta e o chão gelado.
Tentei mandar a um alguém uma mensagem telepática... mas o sinal ali devia estar fraco - ele não me respondeu.
A luz lá de fora suprimia a necessidade da Lua.
Engraçado como o artificial é bem mais bem sucedido.
Engraçado...
Aliás, pensando bem não tem graça nenhuma.
Eu aqui, crua, sentada desajeitada sobre a tampa da privada, me sinto o avesso da tecnologia.
E quando digo tecnologia não digo computadores, não... digo gente mesmo.
Eles lá do outro lado da fresta entendem o idioma do manual..
Eu não.
Minhas mensagens telepáticas são o sumo da minha obsoledade: eu e minha cisma com telepatia e entendimento sem palavras estamos mais que enterrados neste ano aborrecido de 2000 e lá se vai fumaça.
Eu e minhas bruxarias sentimentais só cabemos neste banheiro e dessa porta pra fora só dá pra passar uma de nós.
Confesso que por mim fico eu.

Sobre piadas fracas e profundidade de último pingo de pinga de bar

Tem um caminhão estacionado na tua nuca.
Cê anda de um lado pro outro, tentando se desvencilhar, mas o desgraçado não cede.
O dia corre, e escorre do sol o tempo... e daí ele cessa ( o sol ).
É a hora lunar...
Cê não vê mais caminhão, e, se se questiona se ele está lá mesmo, se sente estúpido: mas é óbvio que está.
Só pode estar, que, se não está, que é que te pesa até te tachar no chão gritando pra você que o momento de pedir arrego chegou?
Bem nessa hora tua mãe entra no quarto com uma bandeja de comprimidos variados e diz meio que assim:
"Caminhão ou caminhinho, o que importa é estar sobre ele, e não sob."

18.9.11

Sobre falha na resistência

Quanto mais você tentar se afastar do núcleo magnético da Terra, mais dramática vai ser sua cara espatifada no asfalto sujo assim que você perder as forças, com a língua e o peito colados e os joelhos dobrados em posição de louvor ao deus lá do centro, todo poderoso, teu superior.

Sobre fracassados, amargura, inveja... ops!, quer dizer, admiração profunda e etc.

Tem um carrossel, tem uma máquina de pipoca e tem um vestido esquisitinho (mas bonito).
Tem uma garota aproveitando tudo isso, como se fosse uma festa.
E, uau!, que olhos brilhantes.
A garota toda brilha.
Esquece, garota, esquece que isso não é festa! Que isso não é parque de diversões! - esbraveja a outra garota com o saco de papel enfiado (bem fundo) na cabeça.
E quando a primeira não responde, não olha e não vira pra trás, a outra dá um suspiro satisfeito que imagina se ela me pergunta "o que é que é isso então?"!?
E daí admite que não sabe o que é isso.
Não sabe nada, nem a cor dos próprios olhos... e enquanto tenta descobrir, a menina e o pacotinho de pipoca giram satisfeitos pela centésima vez no unicórnio cintilante do carrossel.

Das carapuças

Você levanta da cama e encara o breu.
A maré baixou e os corpos dos peixes que encalharam se debatem brutalmente contra a luz do único poste da praia.
Sobe um cheirão de maresia - você desgosta.
Os peixes continuam morrendo enquanto outros continuam nascendo pra depois morrerem também, das mais variadas formas.
Deprimente o arrastar do tempo e das carcaças piscianas dando uma de detentoras de possibilidades.
Você pensa:
Esqueçam, peixes, vocês já eram.
(Eu já era.)

Neverland e outras histórias

A criança sente a cabeça virada do avesso.
É uma espécie de dor - ela pensa - só que não dói.
Faz tempos que a criança tem consciência de si.
Acho que a consciência é mesmo tipo uma dor... é, vai ver que é isso.
É consciência.
Faz tempos que a criança é criança (mais tempo do que devia), e faz tempos que a criança se sente apequenar ainda mais diante do mundo dos grandes e seus objetos e objetivos colossais.
Com a boca escancarada, do fundo dos pensamentos, sai um suspiro tipo assim:
Eles são um fenômeno!
A criança aprendeu a cruzar as pernas feito mulher.
Só que a criança descobriu que isso não a torna também um fenômeno.
A criança é uma farsante, disso não restam dúvidas.
E logo, logo, eles a irão descobrir: minuscula e desaparecente, meio que tentando emergir (sem sucesso) do fundo de um casacão e um chapéu roubados de um dos tais fenomenais.

16.9.11

Sobre amargura e medidas clínicas

As pessoas acham que o tempo cura as coisas.
Já eu acho que ele mata e pronto.
E tá certo que a morte não deixa a carne sentir dor, mas isso não significa que ela apodreça menos... pelo contrário.
Já  cansei do deja-vu de "time will tell".
Time will tell é o cacete!
Que tempo não fala, tempo só corre...
[E eu parada aqui é como se estivesse correndo pra trás.
É bem isso mesmo... estou correndo pro lado errado.
Fisicamente comprovado!]

Tempo não cura.
Remédio cura.
Tempo traz gangrena, inchaço, tempo traz atestado de perda total.
E a questão toda é que as vezes é melhor amputar logo de uma vez...
(Confesso que estou pensando no caso.)
A perder as coisas a gente se acostuma, a gente só não se acostuma ao estado bastardo de quem ainda acredita que pode achar o que perdeu em algum bolso de casaco velho.
É ou não é?
Prefiro abrir mão logo de uma vez.
Que o tempo não cura, não fala, não esclarece.
O tempo só vai embora... e a gente, a gente fica até virar terra, com toda a nossa cota de ressentimentos a tiracolo.

Sobre disfarces

O Marco disse que não curte menina que escreve coisa amorzinho demais.
Que toda menina escreve coisa amorzinho demais.
Que menina que escreve coisa amorzinho demais é chata, é molengas, é irritante.
Que ele nem lê.
Ô Marco, se cê me lê, cê lê amorzinho... só que maquiado de pedra, guarda-sol, auto-falante.

Sobre os quatro outros dedos

Fico me desdizendo por aí e repetindo em outros termos aquela coisa sem forma que perambula mendiguenta aqui dentro.
Cada hora mudo de ideia sobre a mesma ideia de sempre.
Meus colegas colchão, parede e abajur não me aguentam nem mais um minuto, já disseram.
Sinto prazer em me contradizer, em exercer réu e promotoria de uma vezada só.
As luzes da cidade tremelicam insatisfeitas com a minha falta de rumo, que elas já apontaram rumos vários e eu dei de ombros. Feri seus orgulhos com meu descaso navalhado.
Eu quis ir pra cima e pro avesso onde não existe trajeto só existe impossibilidade e os postes de luz não alcançam tão longe. Chamei-os fracassados.
Eles me rebateram com escuro.
Dane-se.
No escuro eu descobri umas texturas descaradamente fora de contexto.
Que é que pele de jacaré faz no seu rosto?
E eu que na claridade achava que fosse como pêssego!
Só é no escuro é que a gente descobre as asperezas, os cheiros ruins.
E me dá vontade de rir dos desenganos do mundo...
E colchão e parede e abajur que achavam que fossem firmes, se mostraram não menos que fajutos quando perderam o semblante estático que a luz concede aos seus destinatários.
No escuro a gente não vê o chão e a gente não vê o teto e no escuro não existe caminho, só as passadas desnorteadas. A única certeza é o incerto.
E quero ver agora quem é que vai tascar na minha cara alegações várias a respeito da minha falta de foco.

15.9.11

Reciclagem

Hoje de manhã esfaquearam o Sol.
Daí caiu chuva doce - mas não foi de nuvem nenhuma, que nuvem é deveras desenxabida.
Do Sol caiu fogo molhado e esse fogo molhado acertava a gente como se fossem fogos de artifício pesados demais para se içarem com o vento.
E a estratosfera ia ficando vazia a medida que os filhotes ardentes despencavam quilômetros rumo ao chão.
Eu de boca aberta tentava beber o diacho da estrela que era pra ver se depois dessa eu aprendia a acender também. Apenas comichões.
As nuvens correram pro outro lado, envergonhadas já que nunca souberam fazer tão bonito assim.
Tem gente que prefere chuva de nuvem...
Eu não, eu gosto da chuva do Sol mesmo.
Fui eu quem esfaqueou o Sol, fui eu que quis desmantelar o castelo e ver as pedrinhas rolando bonitas no chão.
E elas rolaram mesmo, iguaizinhas fossem lágrimas... só que asentimentais.
Nunca achei que o Sol fosse de verdade meu, ele sempre esteve longe demais.
Eu queria ele pra mim, eu queria engolir o Sol.
Agora ele tá dentro de mim e daí agora se eu quiser mesmo não vai ser difícil me fazer desmantelar a mim mesma também.
(E daí de pessoa ter virado Sol e de Sol virar então outras gentes várias)

Communication Breakdown

Nessa terra as pessoas não conversam mais, elas relatam coisas.
Houve um tempo em que se ouvia filosofias diversas e se arrumava tempo para formular uma réplica à altura - não qualquer uma, uma das boas e não menos que isso.
Mas hoje é burocracia, hoje é bater o ponto, assinar a chamada, responder a multipla-escolha e daí dar o fora.

14.9.11

Das decisões

É que a janela se escancarou e não existe mais vidro entre o vento e a gente.
E se tivesse vidro ainda, acho é que ele desabaria sobre a pressão das pedradas que vem por todos os lados.
Um dia esse buraco na parede foi só um buraco na parede, mas hoje ele é o que a gente quiser que ele seja:
Pode ser uma porta, um túnel, um canal de TV, uma paisagem, um corredor ou pode continuar sendo só um buraco na parede mesmo... a questão é que você pode até não estar sentindo o vento noroeste intensificando o poderio, mas eu tô. E não estou disposta a deixar a escolha pra daqui a pouco, não.

13.9.11

Que religioso descrente é o que mais há

Não quero mais suas rezas bate-ponto, e nem seu dízimo mestre em limpar a consciência (dez centavos ou um milhão - não dou a mínima!).
Não quero mais suas penitências (só) em dias santos também não, obrigada mas passo.

Sobre tolos

Certa vez um sujeito pele-vermelha me disse que pra toda situação difícil que a gente escolhe viver há recompensa e que se não há recompensa então somos tolos.
Naquela ocasião fiz uma lista mental de todas as minhas recompensas, que era pra não ter que dar o braço a torcer e que era pra safar minha imagem real (real de realidade) das tais das tolices.
Acontece que pensando bem, enquanto rumava pro meu castelo imaginário, me pus a ponderar sobre o fato de que a só iniciativa de ter que colocar no papel as supostas vantagens da empreitada é por si só uma defesa muito fundo de quintal; de que se é preciso fazer uma defesa é que então há crime.
Na minha terra tolero pecadores, mas não tolero bandidagem. É simples assim.
Chegando até a torre sul, pus a coroa e empunhei o cetro, e daí então, agora maquiada da minha imagem real (real de realeza), pus meu nome em rebuscados teatrais no rodapé do papel que atestava meu severo e preocupante estado de tolice aguda.

12.9.11

Presbiopia sentimental

Tem pessoas que se sentam em banquinhos bem posicionados bem ao centro de suas propriedades e olham pro horizonte, pro além-mar, e não se dão conta de nada além disso.
Daí uns meses depois sentem um comichão na altura dos joelhos e resolvem olhar pra baixo:
Com pesar descobrem a erva-daninha que levantou, devagar e sempre, acampamento no terreno baldio que um dia teve ares de jardim.

Diário de bordo II

"I've been so far from here, far from your warm arms."
E escuridão, e desleixo e lama.
E montes de gentes por todos os lados sujos da chuva que cai do chão.
E uma cerca e alguém que escalava em desespero que logo por trás viriam as leoas não apenas esfomeadas, mas treinadas para sentir fome.
E alguém rastejava e lá na frente o carro já dava a partida.
Ou simplesmente se mantinha na ameaça.
O homem sentado ao volante tinha até tempo para esperar o verme que vinha se arrastando com a cara agarrada ao chão, o que ele não tinha era paciência.
O homem ao volante não dizia nada, só que o homem ao volante tinha palavras estampadas nas pupilas e nas iris e nas rachaduras dos lábios.
Quer quisesse quer não, ele dizia montes de coisas.
"It's good to feel you again, it's been a long long time..."
Certas coisas são recíprocas de uma forma estranha.
O sujeito pôs então o outro pra dentro e foram os dois pra um quarto fechado onde não havia leoas e não havia lama - exceto aquela que se agarrou aos pulmões durante o trajeto.
E o homem ao volante, agora era apenas "o homem".
E o carpete do quarto cinzento fedia a despreparo.
O verme agora assumia a forma de uma mulher, ou o que o mundo pretendia que fosse uma.
"Hasn't it?"
Ela questionava coisas várias a respeito de coisas várias e as respostas continuavam vindo somente através de dilatações de pupilas e demais sutilezas faciais.
O problema é que agora incomodava.
O show já não existia mais, que não existe guerra e não existe competição por trás daquela porta trancada.
Agora era a hora de o verme e o "apenas homem" resolverem as questões que ficaram pendentes antes de o cara lá fora gritar que o jogo iria começar.
Mas o apenas homem é ainda uma capsula impenetrável, criadora dos próprios jogos de adivinhação.
E verme gostaria de saber brincar, ele gostaria com toda a força do mundo.
Mas ele não sabe.
Ele deita a cabeça no travesseiro e (finge que) dorme.

10.9.11

Diário de bordo I

Adormeci em plena sexta feira com as mãos em pose de defunto sobre o peito.
Queria a paz que só quem não é (mais) pode ter.
E não sonhei com absolutamente nada - sonhei com tudo e esqueci.
Não tentei lembrar...
Ou tentei não lembrar!
O esquecimento e a inexistência são a mesma coisa?
Não sei se são, mas me parece que vale a pena tentar.

Ao alvorecer havia uma chama de vela entre os dedos entrecruzados do cadáver que era eu.
Não era vela de macumba (ou talvez fosse) nem era vela de prece.
Era só o fogo que o mundo cisma em colocar nas nossas mãos como que um lembrete da responsabilidade de estarmos ainda vivos.
A gente é obrigado a deixar a frieza dos mortos de lado.
O mundo cobra isso.
A natureza cobra.
Coração não pára de bater só porque a gente diz que não quer mais...
E a verdade é que se a gente realmente não quisesse mais a gente não usaria palavras laminadas, a gente usaria uma lâmina de fato e pronto.
Mas a gente quer... não querendo.

Estiquei as pernas pra fora da cama e elas se dirigiram ao corredor.
Pensei: afinal, se se movem as pernas, se existem os passos, há de se haver portanto caminho.
Caminhei.
Ao meio-dia choveu.
Chovi também, de novo.
A chuva fez a vela escapulir dos meus dedos e eu gelei.
Só que não o bastante pra fazer o miocárdio estacionar, só o bastante pra minha carne doer ao limite.
É sempre no limite... um eterno escorregão sem queda.
E às vezes o que a gente quer é cair logo de uma vez...
Mas não.

Passei o dia com a respiração entrecortada tipo a do cara que acabou de levar um susto.
Passei o dia com o nó na garganta me esfolando as cordas vocais.
Não pude dizer nada, daí só engoli.
Sempre tive dom pra engolir tudo quanto é coisa, e os outros percebem isso e aproveitam esse meu talento me forçando goela abaixo toda sorte de porcarias.

Hoje caminhei no caminho que não tinha placas de sinalização, não tinha semáforo e nem faixa de pedestres.
Hoje atravessei a rua e senti um caminhão me esmigalhar no asfalto.
Quase que cheguei a aplaudir.
Só que o mundo sabe usar cola e, mesmo eu não querendo, ele me põe de pé de novo.
Cheia de rachaduras, mas de pé.

Sobre a margem

Houve um tempo em que olhava o mundo do que pensava que fossem nuvens.
Lá de cima nada o afetava, exceto vontades temporárias a respeito das coisas legais que poderiam haver lá embaixo. Daí caiu. Ou está em queda ainda, não sabe dizer.
O mundo não é guerra e o mundo não é paz (se é que isso é mesmo o tal do mundo), o mundo é uma tempestade de areia e não existe chão.
...
Ou talvez exista, mas não pra quem é leve demais, fraco demais.
Esse fica boiando por aí e não tem força nem pra subir e nem pra descer.
Daí quer se agarrar a qualquer coisa, que o estômago a qualquer instante vai colapsar com tantas reviravoltas.
Sente as pernas e os braços amputados e levados pelo vento (se sente incapaz)... mas talvez eles ainda estejam lá! É que ao mesmo tempo que dói, não os sente. Parece mentira, mas é verdade.
E é que no meio da tempestade não dá pra enxergar, não dá pra conferir.
Não enxerga mais o mundo, não enxerga mais a si, não enxerga nada.
Chora e não sai água. Sai areia dura e áspera que rasga a carne até os ossos como que pra dizer que nesse lugar entre a terra e o paraíso não é permitido nada, nem chorar.
Nesse lugar, entre a terra e o paraíso, é tudo um borrão.
E a cólera que vem de dentro não é nem sequer por causa disso, é por causa das silhuetas ocasionais que podem ser vistas em meio ao caos e suas expressões faciais doentiamente serenas.
Aí pára (como se estacionar fosse uma opção) e se questiona: afinal a tempestade é dentro ou é fora de mim?

8.9.11

Noturnal

Antes de ir dormir tudo o que você queria - você pede a deus, ao diabo, ao sei lá quem - era que alguém enfiasse a mão no fundo da tua cabeça e alisasse os nós.
Tudo o que você queria era não ter dúvidas, era poder ver a linha reta, era confiar no próprio taco, era não olhar pra trás.
Tudo o que você queria era ser um dardo: veloz demais para ser desvirtuado pelo vento.
Tudo o que você queria era se desanuviar, era deitar a cabeça leve e sentir o coração bater no ritmo correto, era ouvir o barulho da chuva caindo e não questionar se "é chuva mesmo ou um tiroteio de fracassos" lutando contra o teu telhado.
E o que interessa é que, seja um ou seja outro, tanto faz!, um dia ele desaba... ah, se ele desaba!
E afinal pra quê telhado?
Tudo o que você queria era não precisar desse tal telhado.
Tão simplesmente isso.
Era sair pelas calçadas com as mãos nos bolsos assoviando e se parabenizando pelo bom trabalho!
Ninguém pode ser tão bom em ser você quanto você mesmo.
Mas nem nisso, nem no bastardamente óbvio demais, você consegue confiar.
Você não é firme!
Você é um molenga!
E o molenga, a essa altura do campeonato, estica a mão e pega mais um comprimidinho que essa noite só dois não vão dar pro gasto (de novo).

O mundo é todo Kansas

A Dotothy dizia que não existe nenhum lugar nesse mundo que se assemelhe à nossa casa.
Ela batia os calcanhares e ZUPT.
Pois meus calcanhares não sabem fazer assim.
Porque eu já os bati milhões de vezes e a cada momento eles me levam pra um canto e esse canto faz sentido por alguns segundos e  parece que achei minha casa, mas depois não mais...
Vejo que é a casa dos outros, os móveis dos outros, as regras dos outros, a sensação de "home sweet home" dos outros.
Eu já os bati de todos os jeitos possíveis, espremi um contra o outro, esfreguei como se fossem lâmpadas místicas mas eles só fazem me mostrar lugares que não são meus.
É como se eles estivessem tão perdidos quanto eu, tentando sortear à esmo qualquer coisa e daí dando de cara com os tais dos capachos nada receptivos e as placas de maçaneta que gritam "passas foras" diversos.
Não sei se me solidarizo deles ou se, cansada de tamanha incompetência, os corto fora.

Sobre portas e narizes

Daí tem esse sentimento de que ao invés do usual "bem-vindo" nos capachos do mundo à fora, tudo o que me aguarda é um cretino "quem sabe na próxima?".

6.9.11

Sobre coisas desnecessárias

É como se você fosse a bola de futebol aposentada quando as equipes decidem que pique-esconde é muito melhor.
É como se fosse isso mesmo só que é pior, porque bola de futebol nem vê, nem percebe, nem pensa, nem sente e nem nada e você, droga... você sim.

5.9.11

Me sinto assim:

Me jogaram por aqui, que nem fosse saco vazio de batata.
Sujeira!
Me tascaram por aqui com uma cacetada só e eu desmaiei.
Enquanto eu desacordada sonhava com coisas que eram minhas, o mundo girava e girava e se construía e se destruía e era ele mesmo e tudo fazia parte dele e ele fazia parte de tudo mas eu era só (ainda e até então) um saco vazio de batata sujo no canto.
Pro saco vazio de batata  eles fingem que tem espaço sim nesse mundo.
Pra eles não faz diferença!
Carrossel, viaduto, Via-Láctea, as sete maravilhas...
Quanta merda!
Que inveja...
Saco de batata no máximo dos máximos um dia vai estar cheio de batatas.
Fim.

Do Moço e da Moça X

O Moço olha pra Moça com atenção.
O Moço sempre fez assim, desse jeito meticuloso: dos cachos derramados sobre os ombros aos pezinhos angulados...
O Moço sabe a moça de cor e salteado.
A Moça já percebeu o Moço também, ela disse "oi".
E enquanto "oi" foi o suficiente pra ela, pra ele o "oi" foi só o prelúdio de um algo que ele ainda aguarda.
Só que pra moça o "oi" foi o começo e foi o fim, e ela virou a página e ela fechou o livro e ela tem coisas melhores pra fazer que prolongar o diálogo com o tal do Zé Ninguém lá de baixo: a Moça vê a Lua.
A Moça vê a Lua com toda a tenção do mundo - atenção essa até maior que a que o moço tem com ela.
A Moça idolatra a Lua de uma forma superior a qualquer sentimento humano.
O Moço às vezes acha que a Moça É a Lua.
E deve ser por isso que brilha e deve ser por isso que ele nunca vai alcançar.
Os cachos e os pezinhos, as quatro fases, os movimentos silenciosos, o lado escuro... Tudo se mistura aos olhos do Moço perdido que agora além de si mesmo, perdeu também o chão.
Ou a Lua e a Moça são a mesma coisa, ou uma das duas é só um reflexo que ele inventou por querer demais que existisse.

4.9.11

Leporídea IV

Enquanto você tava aqui, coelho, tava tudo bem.
A gente não te via, não, coelho.
Você via a gente, você bisbilhotava pela frestinha das venesianas.
Mas a gente fechava as venesianas que, a gente dizia, "deixa pra amanhã que agora tá frio demais pra gente deixar tudo escancarado assim".
A gente enxotava você pra fora, aquele lá fora que a gente achava que era seu "dentro".
E era mesmo?
Acho que você se sentia fora e pronto, e você queria entrar e a gente achava que você tava feliz.
Daí um dia você foi embora e a gente nem viu você indo. Passou um dia inteiro e a gente não fazia a menor idéia!
Uma semana. - você já tinha feito isso antes.
Duas semanas, um mês.
Agora é que a gente sente sua falta coelho, agora que a gente sabe que você não vai voltar.
Agora é que a gente te viu, coelho, agora que você saiu do nosso campo de visão... só que agora já era.

Sobre transfigurações

Tem certo coração que levou pedrada demais, e que daí um dia resolveu confrontar a própria encruzilhada.
Lá as placas eram duas:
1) Vá por aqui e se desintegre aos cacos;
2) Vá por aqui e vire pedra mais dura ainda.
A cena seguinte era o puro esmigalho de todos os estilhaços que se metessem a besta com o ex-coração.

Aviária III

Uma gaiola, por mais bonita que seja, vai ser sempre uma gaiola.

3.9.11

Aviária II

O feto virou pintinho e a gente nem viu, e o pintinho virou frango e a gente também deixou passar.
A gente deixou passar. Ou foi o tempo que passou rápido demais?
Não dá pra saber! O que a gente sabe é que o embriãozinho já não cabe mais no ovo, o que a gente sabe é que gema e clara é coisa do passado e agora o que a casca comprime à uma dor insuportável é pena, é pele, é carne, é ossos, é coração.
E nem tem mais espaço pro embrião feto pintinho galo gritar nem "piu!".
Nem tem mais espaço pro galo cacarejar!
E o diacho da casca que não cede? Que não racha? Que não pare o bichinho engaiolado?
Deixa ele ir, casca, deixa ele ir que se não ele atrofia.

Mineralógica I

Pelo menos tem gente que entende que pedra no caminho é pra subir em cima, que pedra no caminho serve pra aprochegar a gente mais pra perto das nuvens, que pedra no caminho não é desvio: é impulso.