28.12.10

Sobre imersões

Então era um mar de um lado e um mar do outro - no meio fino fio de areia amarela.
De um lado o Sol e do outro lado a Lua, e você correndo bem no meio, no meio do fino fio da areia amarelada.
O Sol e os cachos de ouro, pragmático.
E a Lua... putz, você nem se lembra qual era mesmo a cara que a Lua tinha, mas aí que tá: se lembra mais daquilo que não se lembra do que do que se lembra de fato... isso daí, que você sabe de cor, fica esquecido, caso resolvido. Pronto.
O Sol de queixo pra alto; a Lua (acha que) de queixo pro chão.
E aí olha o pé descalço e pensa no sapato que esqueceu na terra firme.
Você bem no meio do meio do fio fino, e em meio à óbvia desigualdade astronômica, perfeita simetria de mar.
A água suja de marrom, de marrom e de verde. Dos dois lados...
Suja de verde, de azul e um pouco de roxo.
Se avermelha perto da bainha.
E espuma mesmo quase que você não via, só aquela que batia nos seus olhos e aí ardia...
Feito se fosse feita de bolinha de sabão.
E se você soprasse voaria tudo, e ia ser bonito que só vendo!, mas você esquecia até de respirar enquanto ia correndo para ver onde é que o fio terminava, torcendo para que ele terminasse um dia que, se não fosse assim, você ainda teria que correr um bocado.
E ai como que te doiam as pernas e o peito tão disparado.
Despreparado, você.
E aí ia sucumbindo de repente, porque, ao que o sol desaparecia pela sua esquerda e a água fervia como uma desgraçada, a maré subia e subia e subia... dos dois lados...
E a Lua, como maestra descontrolada, uma doida varrida!, ia mandando que subisse mais ainda.
E aí ai meu deus do céu! Agora sua garganta inflamava com o tanto d'água que entrava por todos os cantos e já nem tinha mais lua para se ver... só o marrom sujo, o verde sujo, espuma, bolinha de sabão.
E agora não tinha mais o fio do meio, nem esquerda e nem direita e nem Lua e nem Sol; só a totalidade do fundo cego.
Todos os cantos eram o mesmo, ir pra cima, ir pra baixo... dava no mesmo.
Você achou que fosse mais fácil assim e ficou por lá.

23.12.10

Sobre trens e caminhos e placas e eu e meu bagageiro trancado

Não sei o que a janela do mundo anda contando aos outros passageiros, o que eu sei é que comigo a paisagem se repete e aí a cada curva volta a placa gritando em tom laranja escandaloso:
Seus sentimentos? Puergh!
Vê se esconde isso aí direitinho se você ainda quiser que alguém te respeite.

19.12.10

Sobre moedas e coisas

ZUM!
Um peteleco daqueles, exatamente onde devia, exatamente com a força que devia.
Aí era a moeda girando e girando e girando e girando e bem que parecia um globo endouradado e a gente nem se mancava que aquilo alí era mais ar que qualquer outra coisa. Era sólida, me parecia, até não poder mais... eu corria atrás da borda com os olhos, mas quando achava que estava olhando para um espaço vazio, ela cobria a falha imediatamente.
Estava em todos os 360º simultaneamente, e eu ia minguando e minguando enquanto observava a luz deixar toda minha pompa cerebral no chinelo.
Simplesmente, não sou páreo para ela.
E, eu sei, eu bem que poderia enfiar meu dedo alí no meio e pronto e aí ver moeda voltar ser moeda de novo, como se deve.
Mas de que que adiantaria?
Eu não sei...
Eu poderia tentar fazer a mesma coisa com todas as outras coisas - todas as coisas - que eu queria que voltassem a ser como se deve e, putz grila, não acho que meus vinte dedos (os do pé também, por que não?) seriam o suficiente.
E que medo que me bate quando penso em poder ver por trás da cortina e descobrir o quanto daquilo que me rodeia que é vazio e o quanto que é concreto.
Eu sei que dói, sei bem, porque já faz um certo tempo até desde que resolvi tatear a mim mesma para fins experimentais e ainda meus dedos não puderam se deter em sequer uma grama de qualquer coisa.

Labirinto

Cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai, (meio que) levanta, cai.

Qualquer dia desses eu me ergo como se deve, pelo menos o suficiente pra poder olhar pro chão e daí então evitar uns pedregulhos.

17.12.10

21

E aí que simplesmente tinha essa sensação - nasceu com ela.
Como que uma sarda, um joelho meio torto, os dedos finos de agulha.
Como que o tom do cabelo.
Era como que tudo isso junto, eu acho, e todo o resto também.
Era como que isso, o resto e ainda mais: tudo o mais, precisamente aquele "mais" que a gente não sabe o que é, só sabe que é.
E aí que simplesmente a tinha, a sensação.
E a tinha em todos os momentos, mas ainda assim fazia ela uma falta desgraçada...
Como se... como se só a tivesse vivido na vida passada, ou na retrasada e aí nasceu e ainda a sentia... mas a sentia sem sentir. Um eco.
Cresceu alguns centimetros mais que devia num ano desses em que chove demais e que tem gente demais pra revirar a terra, e decidiu por de lado todos esses tiques-nervosos, essas manias, essas coisas inclassificáveis que não existem nem no sonho e nem na realidade e em lugar nenhum que não seja a vontade.

15.12.10

Bolha

A gente tem o coração.
Daí a gente tem uns pedaços de carne e daí uns ossos e daí mais carne e daí veias e tendões e aí pele.
E aí o mundo.
E o coração lá no fundo.
Coração não sabe como é o mundo.
Ele só sabe: carne, ossos, veias e tendões.
O coração sabe a pele.
A pele sabe o mundo e tudo muito vice-versa.
Mas o mundo não sabe o coração e o coração não sabe de volta.
Carne, ossos, tendões, veias e pele.

8.12.10

Sobre baralho e tudo o mais

Rainha de ouros se junta com Valete, também de ouros.
Um As e um Cinco, se prontificam pelas laterais.
Duas (quaisquer duas) estateladas no topo. Você nem viu quais eram.
Aí então um Nove de Copas e um Três de Espadas.
Pela esquerda outro Três, três de qualquer coisa, e pela direita um Seis; que poderia ser de copas ou de ouros... você não deu a mínima.
Pronto, agora sela tudo com um cruzado de um Rei e uma Rainha, ambos de espadas.
[ você tem essa mania de querer juntar  a Rainha com os seus iguais... mas esquece que só o naipe não é o bastante e em cada baralho só tem uma Rainha de cada tipo ]
Agora tudo parece mais frágil.
Você afasta os joelhos (e qualquer estranho imbecil com propensão a trollices ) para maior segurança da construção.
Duas tentativas fracassadas de fazer o Quatro de Paus se apoiar mutuamente com o Oito de Copas.
Você é supersticioso. Troca o Quatro, pega o Valete de copas, que é para combinar, e faz funcionar.
Pronto.
Tenta respirar menos, com medo de derrubar tudo simplesmente por estar perto.
[ um dia você vai inventar uma máquina que te permita ficar de longe, e você visualiza ela alí naquele momento e só pára de fazê-lo quando percebe que na verdade não faz a menor idéia de como seria isso ]
Por via das dúvidas, prende a respiração.
Treme um pouco enquanto segura o Rei de Ouros na mão esquerda e o Ás de Espadas na direita.
Rainha de Paus e Sete de Ouros finalizam a seção.
Conseguiu!
Uma vitória dessas te deixa confiante.
"Ah, moleque!"
Aí você pensa que quando chegar no sétimo andar vai tirar uma foto.
Você prepara sua câmera e dá uma espiada ao redor pra ver se alguém está acompanhando a sua façanha.
Sua prima no canto grita que três andares ela faz com os olhos vendados.
Você treme quando ergue a última Rainha, a Rainha de Copas, e tenta uni-la ao Dois de Paus.
Mas o Dois de Paus despenca, como um dois de paus, e leva tudo o mais consigo.

Você nunca passou do quarto andar...
Mas se você passasse, se você estivesse no quinto, sempre haveria o sexto também.
Daí você pensaria "Mas que puxa, nunca cheguei ao sexto!".
E daí depois? O sétimo!?
Nesse você tiraria uma foto.
Mas a foto não mudaria o fato de haver ainda um oitavo para ser erguido.
Um nono, um décimo.
E no final nunca vai ser o suficiente, sua câmera vai sempre estar preparada para algo grande que provavelmente nunca virá e sua prima sempre vai vagar pelas redondezas pronta para ressaltar a sua incompetência.



6.12.10

Excesso

Mas o que eu tenho é tão precioso que eu ando por aí o apertando forte entre as minhas mãos com medo de tropeçar e deixar que caia...
E é bem por isso mesmo que eu acordo de madrugada e morro um pouquinho, antecipadamente, pensando no dia em que de tanto medo de perder eu o comprimir demais e lhe tirar todo o ar.

5.12.10

É que era oco, é por isso que ecoava.
Oco.
Mas achava que era tão cheio de tudo, cheio de gente, aquele monte de vozes se sobressaltando...
Achava que era tudo muito cheio de gente... alí.
Mas era oco e não tinha nada e a única coisa que tinha eram as ondas sonoras se propagando e se multiplicando no espaço. Sem escape.
É que algum dia esteve aberta, a casca.
E foi nesse dia que entrou o pio, mas a porta fechou e ele não saiu.
Ficou sozinho lá e se reinventou de mil formas, todas as formas.
Falantes de qualquer lingua poderiam entender o que quisessem com tanto ruído misturado.
E era isso que faziam.
Mas um dia descobriu que na verdade o ruído já era silêncio ha eras, e tudo não passava de uma grande alucinação coletiva: saudades das conversa, que acabou virando pensamento, que acabou virando crença.
E no final das contas tudo é uma mera questão de fé e cegueira.