26.4.10

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Lia-se, na entrada da central: "Temos"
E ao lado uma grossa camada de cinzas que impossibilitava a conclusão da frase.
Não preciso nem dizer quanto tempo eu gastei encarando a placa, pensando em meios de ir até la em cima e limpar para enfim poder descobrir.
Queria tanto saber o que eles teriam... existem tantas coisas que eles poderiam ter!
Enfim... um dia, durante a madrugada, fui até lá com uma escada e esfreguei com um pano molhado.
Lia-se: Temos Vagas

Desabei.
O que eles tinham era simplesmente a necessidade de ter.
De todas as presenças - todas as formas, cores, todos os gostos e cheiros, todos os fatos, todas as histórias, todas as idéias, todos os valores, todas as verdades, todas as respostas -  a presença que alí se anunciava era a presença da ausência.

23.4.10

Peão

Sonhei que tinha algo a dizer.
Eu disse: tenho algo a dizer.
Mas aí travei. Não era isso que tinha que ser dito. Perdi a vez.

Sonhei que tinha uma resposta.
Eu respondi.
Mas não tinha pergunta alguma - a resposta morreu estéril.

Sonhei que tinha uma pergunta a fazer.
Eu perguntei, bem alto: Por que?

Alguém rebateu: "Por que" o que?
E eu não soube.
Minha pergunta se tornou vã.

Sonhei que sabia.
Mas saber, somente, de nada me serviu, conquanto não havia nada a ser sabido.

Eu sonhei que acordei.
E acordei mesmo!
Esse foi o impulso pra que eu pudesse continuar fingindo, por um bom tempo, que meus sonhos podem me ajudar em alguma coisa.
Fechei os olhos e dormi, esperando as próximas instruções.

Monólogo

A gente... eu já falei tanto "da gente"... falo pra mim, pra qualquer um. Eu já falei muito de "nós".
Mas quem somos "nós"? Existe mesmo um "nós"?
"A gente"... já falei tanto dessa gente, dessa multidão... tão fictícia.
Quem somos esses de quem eu tanto falo?
O Mundo!?

Todo mundo... "todo mundo" eu nunca disse. Eu sei que não existe todo mundo, porque todo mundo é diferente de todo mundo e eu, na minha arrogância tão típica, finjo que sei bem que não existe esse tal de "todo mundo", aí vem a minha tolerância forçada, forjada, de que eu sei bem também que cada um é cada um.
Tirei fora aquele plural da minha vida faz tempo.
Mas aí eu digo " a gente"... que "gente"?
Quem é "a gente"?
Quem me deu o direito de usar então este plural? Onde foi parar a minha tolerância com o "cada um"?
Ela sumiu!

Eu fiz ela sumir, porque dizer "eu", somente "eu", é assustador.
Porque o singular me faz as pernas bambearem. "Eu" me apavora.
Eu não digo "todo mundo", porque o mundo está longe de ser "todo" por ele mesmo, o mundo não é todo e nem o que ele contém o é.

Pessoas... a única coisa que têm em comum, igualzinho, é o título: "pessoas".
Por isso o "todo mundo morreu"...
Mas eu não pude matar ainda "a gente", não quero me livrar dessa "gente" da qual eu finjo que faço parte.
Eu me protejo no meu cardume.
Você não pode saber quem sou "eu", porque no cardume só existe "a gente", não existe "eu".

Por que?
Por que eu tenho tanto medo desse "mim"?
Eu não posso falar, não me sinto a vontade pra falar, por mim nunca; falo por "nós".
Mas hoje eu sei....
"Nós" não existe, eu inventei.
"Nós" não somos eu e você - eu não sei quem é você!
E se soubesse, muito pior seria.
Eu não posso falar por mim, não posso falar por você... só posso falar por "Nós", essa entidade anônima, quase covarde.

É que "EU"... "eu"?
"Eu" não existe... eu não existo.
O que de mim existe?
Eu não sei... nada me pertence, nem eu pertenço a nada... nem à mim.
Eu não me pertenço! Como poderia assim falar de "mim"?
Seria precipitado, um erro.
Eu não me assumo, nem diante de mim.

Eu complico coisas que são simples? Eu invento nó onde não tem?
Pense bem.
Você (quem é "você"?) e o resto (que "resto"!?)... é que simplificam demais.
E eu sei pra quê!
Simplificam pra não ser assim, igual a mim (que "mim"???)
Simplificam que é pra poder viver - não existe outra forma.

Eu descobri isso quando tentei ser real e só descobri irrealidades.
Agora eu vejo o irreal, como ele é... como ele "não é".
Nada é. E quem sou eu também pra falar do "nada"?
O que é "nada"?
Quem sou "eu'?
Essas palavras, esses nomes... eles me deixam doente.
Eu não posso contê-los, eles fogem.
Também não me contenho - já disse,  não me pertenço.

Eu gostaria de ser assim, como vejo os outros serem... existem como podem e pronto.
São felizes, são tristes, são isso e aquilo.
Eu poderia ser assim, se meus olhos pudessem focar a superfície também.
Mas eles não vêem o reflexo do sol no lago, eles pulam essa parte e vêem o fundo...
Ou melhor... eles não vêem o fundo, tanto quanto não vêem a superfície... eles vêem algo aí no meio, o que não é nem lá nem cá. É por isso que nada podem ver. Não mais...

Eu parei de olhar para a superfície quando a superfície não mais me refletiu.
Quando eu olhei e não me reconheci, vi meu corpo lá e soube: esta não sou eu.
Olhei os outros corpos que refletiam satisfeitos e soube: estes não sou também.
Mas eles (que "eles"???) não precisam nem mais se olhar, eles já sabem: somos nós.

E são mesmo?
Eu não acredito nisso, mas se pudesse acreditar o faria sem hesitar.

Em algum lugar talvez alguém me coloque em seu "a gente".
Faço mesmo parte dessa "gente"?
Eu não sei quem é essa gente, eu sei: "a gente" não existe, não mais do que existe "eu".

Essa gente, da qual as vezes pareço fazer parte, vive aceitando sem questionar.
Aceitam que preto e branco são diferentes (esquecem que os dois são cores - fingem que não sabem, porque dói tentar decidir se é maior a equidade ou maior a diferença), aceitam que são, aceitam que estão felizes, aceitam que estão soferendo - e sofrem - aceitam que sentem saudades sem se questionar o que diabos é saudades.

Sobre a saudade eu tenho algo a dizer: a gente (um dia eu aceito que "a gente" não existe) sente vontade, quer ter, a gente anseia, sente falta, procura, sente saudades, acha que não tem, se desespera, chora porque não pode mais viver sem isso ou sem esse alguém.
Eu posso estar errada (talvez esteja tanto errada quanto certa... o que é estar "errado"?), mas acredito que isso e esse alguém são máscaras que tornam mais fácil sofrer a ausência do "eu", do "mim".

A gente sente falta da gente.
É isso que falta... nós faltamos!

Nós???
Preciso parar de dizer "nós". Agora.
Eu sinto falta de mim.

Eu nunca me "soube", ninguém nunca me apresentou...
Quem é "ninguém"?
Eu nunca me apresentei a mim.

E eu preciso parar de usar verbos, se uso verbos me comprometo com a ação que eles insinuam.
Se uso verbos, me comprometo.
Não posso comprometer a mim! Oras, não sei quem é "mim"!
Seria desonesto por a mim em maus lençois.

Eu não posso falar mais por mim.
Eu não posso falar por eles, não posso falar por nós.
Eu não posso falar pela "gente", eu não posso falar por "todo mundo".
Eu não posso falar.

Eu não posso falar "não posso", o contrário da ação é por si só uma ação.
Mas não tem jeito, o não sempre vem: não sinto dor, não sinto alívio, não sinto alegria, não sinto tristeza, não sinto saudade, não sinto vontade, não sinto pena, não sinto medo, não sinto coragem, não sinto ciúmes, não sinto pressa, não sinto fome - se acho que sinto, penso bem e aí eu vejo: não, não sinto nada disso.

Mas ainda assim... ainda que me cerque, me confronte, afunile meu caminho, me leve ao quase nada, ao vazio, me cale, me enlouqueça, me ensurdeça e me esqueça de mim - esse tal de "mim" - eu sinto.

Me pergunto:
Sinto o que?

Sinto necessidade.

Necessidade de que???

De sentir!

...

Touché!
Acho então que eu existo... agora posso falar por "mim".

21.4.10

Solidariedade meia-banda

A estrada era de terra batida e o sol castigava sem dó.
No caminho pra Qualquer Lugar caminhava Qualquer Mulher, carregando na cabeça um fardo maior do que ela mesma.
Quem é Qualquer Mulher? Quem sabe? Quem viu?
Ninguém sabe, ninguém quer saber.
E ninguém vê, debaixo de tudo aquilo...
Eu, que sou sensível, já passei por ela tantas vezes...
Paro e contemplo com pesar.
Daí quando encontro Qualquer Amigo, nos consolamos um ao outro... afinal, coitados de nós que sofremos tanto em ter de ver Qualquer Mulher e tão grade fardo.
Esperamos com ardor que um dia alguém tome vergonha na cara e vá lá lhe oferecer uma ajuda.

14.4.10

Pit Stop dos 20 anos

Quando a gente ingressa pra odisséia da vida, o mundo nos dá de presente (como que um passaporte para dentro dele) uma bagagem cheia de tudo o que eles, os que fazem o nosso mundo, acham que vamos precisar.
[Fogo queima; dedo na tomada não pode; coma isto porque você precisa; não se esqueça de dizer "obrigada"; Deus não gosta de menina má; preste atenção no sinal; se quebrar, tem que pagar; listras são melhores que estampas; meninas deste lado, meninos desse; rock é a música que você vai ouvir.]
É bom ter este kit sobrevivência, já que é isso que a maioria faz a maior parte do tempo: sobrevive.
Eu é que fiquei aqui pensando que minha bagagem veio cheia demais, se pudesse voltar lá pediria para deixarem um epaço para as minhas coisas.
Não posso fazê-lo pois o que já foi, já foi. O que posso fazer, e farei!, é interromper a caminhada por aqui, tirar os pacotes das costas aliviar-me do peso por alguns minutos e então, sem dó, tirar tudo o que não me serve.
Vou deixar então bastante espaço para o que eu acho bom, para o que me aparecer no longo caminho que ainda há de vir; vou guardar bastante espaço para o que me serve, o que me salva.
O que, daquilo que me foi dado, só fez fazer (como o faria um tênis 5 números menor que meu pé) peso morto pro meu corpo cansado carregar, ficará por aí e quem sabe não sirva para outro alguém?

E quando chegar minha vez me intrometer na bagagem de alguém, espero que eu não me esqueça o quanto meu ombro já sofreu por peso inútil dos outros.

9.4.10

Ser humano conjugado

Mas não tem lado de lá... tudo é lado de cá. E amanhã também não existe, porque tudo é hoje.
Ausência é um conceito inaplicável. Não existe chuva enquanto o dia é seco.
E não existe inexistência, não existem as outras possibilidades, só esta, precisamente esta aqui.
Não tem "eles", só "eu" e "você".
Não existe café se a gente estiver bebendo chá.

E ainda assim, quantos de nós vivem amanhã do lado de lá? Sentem saudades porque só querem aquilo que é ausente? E sentem a chuva atrofiar-lhes os músculos, debaixo do sol?
Inexistem por completo! Todas as possibilidades lhes parecem razoáveis, menos esta.
Eu e você somos teoria pois só "eles" realmente são.
Bebem chá, sonhando com café.

8.4.10

A gente, que quer céu azul.

     "Tão logo desabem as nuvens, tão logo mostrar-se-á o céu", e apontava pra tempestade guardada pra algum dia desses aí, desses em que nós não temos guarda-chuva, desses que nós só temos pressa e tênis furado que é pra molhar fartamente as meias.
     "E se caírem já, deixe cair todas de uma vez só!", e abria os braços pro céu, que era pra receber as nuvens, mas as nuvens continuaram paradas lá no infinito intocável; ele só recebeu a brisa fresca, e assim então continuou o discurso como quem tivesse experimentado a força bruta fácil das palavras só faladas no vento fresco que nem de perto já sonhou em ser trovoada: "E ao caírem as nuvens talvez você se afogue uma ou duas vezes..." e então a mão pesada sobre o meu ombro, como aquele amigo que só tem mesmo a mão no ombro a oferecer, como quem já vai embora que é pra não perder o trem.
     E continuou "Teus pulmões já provaram da água gelada?" e nem se quer esperou que eu respondesse, nem esperou que eu suspirasse, nem esperou eu descobrir, ele mesmo riu alto antecipadamente, pois, de certo, era o que faria quer eu respondesse que sim, quer respondesse que não, então pra que esperar eu tomar o fôlego?
     E botava a mão no peito como soldado saudoso, daqueles que sentem saudades de sentir saudades... da esposa em casa, talvez, mas isso é só o pretexto - e botava os olhos de novo no alto e largava um pouco deles por lá antes de me dizer severamente, com as mãos em concha: "Os cacos você recolhe com as mãos." E eu nem sabia que diabos de cacos eram esses, e nem precisei pensar muito. "Das nuvens, você sabe."
     Hum... das nuvens! Essa é boa! E nuvem lá tem caco? Como tivesse percebido os arreganhos de satisfação e zombaria que minha mente fazia, retomou então aquele pouco de olhar que ele esqueceu lá em cima, juntou com o resto e  jogou tudo em mim de uma vez só: "Espere só pra ver os calos e o sangue... eu que sei!" E eu? Eu não sei mesmo! Eu não sei mesmo de nada e não achei que essa história de nuvem que dá calo seja digna de minhas preocupações, mas fingi que sim, com os olhos aflitos, que era pra encurtar a história. "Mas você não se preocupe, que calo e sangue a gente cura, que calo e sangue vale a pena, que calo e sangue traz verão."
     Agora sim! Um belo sorriso e os dentes se mostravam todos duma vez, sem vergonha da velhice e uns minutos depois, que é pra concluir o sermão - sermão sem pé nem cabeça, mas cheio de olhadas auto-explicativas - o dedo se erguia forte e a voz profética:  "Tão logo despenquem as nuvens, tão logo mostrar-se-á o céu!" Um sorriso e de novo os olhos iam pro alto como quem tudo vê e os braços se abriam pra esperar os primeiros pingados, que caíram sem hesitar. Mas ai ele foi embora dizendo "As minhas tempestades eu já tive, agora é tua vez." e aí choveu em mim, só em mim.

7.4.10

Agrária

Sem chuva, a semente não brota... aí o fazendeiro, que não é besta, juntava as duas mãos e pedia pra chover até transbordar.
Aí no dia seguinte choveu pesado e o fazendeiro, pego de surpresa, ficou parado no cafezal com a lama no joelho.
Juntou as duas mãos e implorou misericórdia.
Entre espirros e palavrões, a chuva foi tudo pro fazendeiro, menos benção, que afinal, quem é que vai pensar em semente debaixo do temporal?
Ninguém pensa... mas deveria...
Se eu fosse deus, já teria desistido de plantador que só quer estar presente pra colher os frutos.
[E se eu fosse plantador, já teria desistido de deus, que foi o primeiro a plantar e cair fora no primeiro respingo!]

5.4.10

Agora tanto faz

Na rede dormia um moço enquanto a mosca zumbia e o sol sumia e alguma coisa chiava baixinho na panela.
No moço, o chapéu no rosto e o cigarro ainda queimando na mão. No moço, só o peito que sobe e que desce, só o pulso apagado mas irrefreável do corpo jovem da mente velha de um homem que cansou rápido demais.
E a mosca não dá trégua, mas o rapaz já não se importa mais.
Se do lado de dentro já se calaram as guerras (das idéias contrárias, do indiscutivelmente discutível) pro coitado dormir, quem é que é a mosca pra vir como quem pode lhe roubar a paz?

Robótica

Na primeira vez em que descobri que alguem lidava comigo no automático, fiquei desnorteada.
Mas isso foi até perceber que todos vivemos de certa forma no automático, perceber que uns só são mais funcionais que outros, que uns possuem modo shuffle e outros não.

4.4.10

Perder a hora

Nas muitas vezes em que eu acordo e tudo mudou, fico quieta e finjo que também mudei... mas é só por vergonha de perguntar "Por quanto tempo eu dormi?".

Relato Pessoal

Querem saber como perdi minha tenda?
Não foi culpa de nenhuma das minhas muitas quedas, como foi o caso de Maisum.
Perdi minha tenda ao longo dos anos, enquanto tentava mantê-la de pé.
O que aconteceu foi que um dia um passarinho fez um furo num cantinho e eu quis remendar por medo de olhar o sol nos olhos.
Remendei, mas a agulha, minha eleita salvadora, só fez fazer mais furos.
E os furos se tornavam rombos e eu os remendava. E aí criava novos furos e rombos e um dia minha tenda sucumbiu e seus restinhos voaram pra longe com o vento.

Samsara

Quando Zero nasceu seus pais lhe deram uma tenda - tal qual faziam todos os pais com todos os filhos - e ele passou a se chamar Maisum.
Maisum aprendeu a andar, aprendeu a falar, aprendeu a brincar, correr, brigar, cantar, namorar e escutar (com bastante atenção!).
Maisum era um perfeito cidadão de Tendolândia, protegido das calamidades do mundo graças à sabedoria milenar de seus antepassados.
Um dia Maisum tropeçou e sua tenda ficou presa no bueiro.
Quando Maisum se ergueu do chão, chovia forte e ele se molhou, sentiu frio e medo, mas nada o impediu de ver. Maisum viu, pela primeira vez... e morreu naquele instante.
Naquele instante também ouvia-se as trombetas fazendo coro à voz que anunciava: Menosum nasceu às 14 horas na esquina da Rua Pralá com a Rua Pracá, forte e saudável, com um lindo par de olhos!

2.4.10

Houston, We've Got a Problem

A décadas-luz de onde estou, numa poça plasmática semi-inexistente (mas gloriosa), nasci.
É o que gosto de pensar quando, às vezes, vejo de longe - sempre de longe - as estrelas que nascem e que tanto brilham.
"Vai ver que sou também estrela!"
É que aqui no meu cantinho cúbico (cantinho à quarta potência?) só existo eu e mais nada; e nunca me vi. Tudo o que sei de mim sei porque sinto explodir aqui dentro e escapar para o cantinho de outro.
Aliás, "outro" também é algo que só sei que existe porque vejo o brilho. E foi uma pena saber que o brilho que vejo é só o retrato daquilo que o "outro" foi, e aquilo que o "outro" é eu só vou saber amanhã... mas aí amanhã ele já não é mais...
Pensando assim, aprendi a não confiar nos olhos.
Um sentido a menos.
Levando em conta que aqui é o vácuo e que aqui também não adianta gritar, quais sentidos me sobram mesmo? E aliás essa coisa toda de "sentir"... acho que nunca cheguei bem a entender isso. É que faz sentido sentir, é bonito e é assim que se existe. E é assim também que começo a duvidar da minha existência... mas aí queima.
Demora um tempo, mas eu acabo descobrindo que o calor que eu sinto é só o meu mesmo. Seria bom se fosse o calor dos outros, aí eu me sentiria aconchegada com a idéia de que a distância não me torna solitária, que estamos todos nos divertindo por aqui e que somos todos grandes companheiros.
Não sei se algum dia seremos companheiros, minha única esperança é continuar girando. O giro é o que nos liga, e eu não sei se agradeço ou se vomito cada vez que me bate a náusea que me causa a gravidade.
Um solavanco inesperado e eu rebato com força dobrada.
Eu giro de cá e te faço girar de lá e você gira de lá me faz girar de cá. E giramos assim todos juntos - todos tontos por culpa dos outros, todos culpados da tontura alheia - mas sempre cada um no próprio canto.

E se querem saber, eu acho (meio que sei com toda a certeza) que eu não sou isso que vejo os outros serem. Eu giro o mais forte que posso porque me envaidece pensar que eu também sou entidade causadora.
Mas será que sou?
Esses outros que brilham lá longe, ou esses outros que giram sempre tanto ao redor dos que brilham - esses são o que eu vejo. Mas será que eu sou o que eu vejo (do pouco que posso ver)?
Pelo menos sei que não sou desses que arrastam os outros pro próprio poço sem fundo - apesar de agir, por vezes, como tal.

O fato é que eu (confesso agora perante eu e só eu) não acho que nasci a décadas-luz daqui... Sinto que existo a 1 segundo-luz e olhe lá.
Não acho que nasci numa poça plasmática gloriosa...
Lá nascem os outros, as estrelas, eu já vi.
Mas já vi também o rastro que deixo... e é rastro de estrela.
De estrela fui feita mas - conformo-me? - estrela não sou.
Sou pedaço de estrela que flutua por aí e perde um pouco de si a cada trombada e, quando encontra algo que lhe serve, se faz crescer um pouquinho.
É minha melhor teoria, mas não posso me ver tanto quanto não posso ver nada mais.
Não sei o que sou.
Só sei que quero aterrizar. Seja onde for.