29.9.10

Sobre quem tenta tatear o fim

Escute bem o que eu vou falar: se algum dia você juntar coragem e fôlego e enfim dizer "para mim já chega" pode ter certeza é que não chega é coisa nenhuma, que a tal história ainda vai render um bocado de tempo.
O dia que realmente tiver "chegado", o dia em que a gasolina enfim terminar, o dia em que não tiver mais chuva para chover; nesse dia então você não vai ter combustível nem para dizer que acabou. E, tenho certeza, nem sequer para se dar conta que acabou. Simplesmente vai parar e pronto, e é isso.

Sobre a profecia do Andarilho

Dorotéia um dia visitou o maior parque da região e foi bem lá que ela descobriu que gangorras são feitas para carregar traseiros e gargalhadas, e que a gente só sonha (de sonho sonhado) de noite que é justamente para não ter que pensar nisso enquanto os olhos podem olhar o mundo girando e girando devagarzinho.

27.9.10

Sobre quem se deixa tender

Dorotéia brincava tentando equilibrar na gangorra seus sonhos e seus pesadelos.
Quanto mais olhava para os demônios horrorosos de um lado mais se evaporavam os anjos do outro.
E aí ia para casa de noite e no escuro sentia medo das bestas alojadas no brinquedo do quintal e aí respirava e visualizava e multiplicava o medo.
No dia seguinte era mais um demônio fazendo peso para derrotar os sonhos bons.

24.9.10

Sobre a válvula de escape

Era do tipo que não se expressava de jeito nenhum... ou pelo menos era isso que pensavam as pessoas - todo mundo! - que nunca repararam como se contorciam os pés a cada vez que o coração acelerava silenciosamente no fundo do peito.

Situs Inversus

Um dia você toma uma banho reforçado, veste suas roupas de domingo e bate à porta do médico.
Você deixa que ele te examine de cabo à rabo.
O médico te diz que o que você tem é uma bobeirinha à toa; que você tem os órgãos invertidos:
Um cá quando deveria estar lá, um pra cima quando deveria estar embaixo, e tudo muito vice-versa.
E aí ele diz que não tem problema algum, que mesmo assim tudo funciona bem direitinho!
"Que beleza!", repete a sua mãe histérica.

Se é beleza ou não você não sabe; o que você sabe é que agora fazem sentido aquelas sensações todas de que algo não está como deveria.
Aí você, nos momentos de burrice permitida, se pega pensando se não seria melhor que isso te afetasse para valer, assim pelo menos você teria uma justificativa consistente para dar para você mesmo quando se pegasse chorando pelos cantos em pleno verão e com os bolsos cheios da grana.

Sobre a posse

Você sabe, as estrelas estão aí para quem quiser olhar.
Você sabe que elas sempre estiveram, você sempre soube.
Mas você não liga, você nem pensa nisso.
Você aprecia o espetáculo humildemente, no meio da multidão de mortais perplexos.
Você espera a noite chegar para poder exercer seu direito de contemplá-lo, lá no meio de todo mundo - você sabe, você é (só) parte desse todo.
Mas você não liga, você nem pensa....
As estrelas estão aí para quem quiser olhar. Você sabe.

Um dia as coisas mudam drasticamente.
Aquele dia de mormaço cansado e você de chinelo e moletom; aquele dia, que você tratou como uma espera qualquer, espera de qualquer coisa, exatamente como você fez com todos os outros.
Naquele dia, você se senta na beirada da praia, exatamente no precipício nada óbvio (mas particularmente inquietante) que separa a areia da salmoura, e olha o infinito com o queixo erguido e o peito estufado, mas com a alma de joelhos perante seu ídolo de veludo cravejado de diamantes.
Naquele dia despenca um desses diamantes, dos bem gordos, bem no meio das suas mãos.
Ele te queima, mas você gosta.
Você o aperta forte contra o peito, você o cheira devagar e seus olhos lacrimejam.
O céu te deu uma parte de si, mas você só vê o todo.
Você não aceita "mais ou menos", você sequer entende o que é isso.
O céu agora lhe pertence, por completo, e é bem por isso que no dia seguinte você acorda pensando qual seria a maneira mais fácil de cegar o mundo para tê-lo só para si.

22.9.10

Sobre o porto

Eu vi do porto, do meu porto no meio do mar, os barcos se indo por aí, por todos os cantos, para todos os cantos... zarpando como se bem soubessem para onde ir.
Eu vi de lá, também, os barcos atracarem nos seus portos ideais, nas suas praias ideais, com suas festas de boas-vindas para lá de ideais.
Eu vi suas rolhas de champanhe explodindo com um ZUM no céu azul... o azul ideal.
Eu vi do porto, do meu porto no meio do nada, uns barcos orbitando minhas águas rasas.
Mas minhas águas rasas, ainda que relativamente rasas, eram profundas demais.
E essas tais dessas minhas profundas águas rasas carregavam rodamoinhos violentos e uns monstros bem bizarros... uns monstros daqueles que nunca dão as caras que é só para aumentar o suspense.
Foi bem assim que, querendo ou não, eu pude evitar que se aprochegassem os barcos que não tivessem meu nome neles.
Já se passaram alguns Lauras, uns Priscilas, uns Tamaras, uns Elisas. Uns Bárbaras.
Mas foi bem assim que, querendo ou não, teria também que evitar que se aprochegassem os barcos que por ventura tivessem meu nome marcado de reluzente dourado no casco.
E ainda assim ficava na ponta dos pés, com as unhas marcando fundo no deque de madeira, esperando a fumaça poderosa que precederia o Cruseiro Rainha.
Aí eu ouviria um espalhafatoso "terra à vista!", e sairia correndo como uma completa aloprada para preparar a festa ideal de boas-vindas do meu barco ideal.
Mas foi pensando assim que lembrei que minha praia ideal não tinha areia para meu barco ideal atracar.
E que grande porcaria que foi quando eu me lembrei que meu céu azul ideal era cinza.
Lembrei que meu barco ideal, selado de reluzente dourado - dourado do tipo ideal -, nunca veio e que, se viesse, daí o que diabos eu faria com os rodamoinhos todos?
E os monstros???
Eu mandei que eles sumissem algumas vezes, só para testar minha habilidade de controlá-los.
Fracasso.
Eu pensei "Mas tudo bem, porque na hora H vai dar certo".
E foi por causa dessa ingenuidade forçada (que na verdade era, suponho, a única opção), que eu olhei mesmo assim para todas as direções querendo achar algum vesquício de fumaça escarlate.

Eu era o eixo alí, no meu porto... meu porto no meio de tudo - egocêntricos nós dois, eu e o porto -, e do eixo eu vi o norte, onde o oceano terminava em um colossal continente de terra vermelha.
Vermelha!, mas não escarlate...
90 graus mais para lá e eu vi o leste e suas ilhas caoticamente organizadas. Picotes de terra e mar, em harmônico desencaixe.
E que pena que o que eu queria mesmo era o encaixe descompassado.
Eu vi também o oeste, cheio da pompa, onde os arranha-céus rasgavam as nuvens cor-de-chá que pairavam desavisadas.
Em um rasgo ou dois escapolia o sangue chorado pela chuva, e aí a pompa ruia silenciosamente. Eu senti dor junto.
Mas daí eu vi o Sul onde não tinha nada, só mais um pedação de mar para tudo quanto era lado.
Longe... o Sul devia ser bem longe! Bem depois daquilo tudo que meus olhos podiam alcançar e foi por isso, por não poder vê-lo, é que eu passei a imaginar como ele seria.
O Sul era o único ponto cardeal que me permitia querer alguma coisa. Eu idealizei o Sul.
Aí eu passei a achar que meu barco ideal viria de lá, e nunca mais olhei para nenhuma outra direção.
Se eu tivesse sido mais esperta teria olhado para o alto, onde um zepelim flutuava no céu cinza - o cinza ideal! - balançando sua escadinha sobre minha cabeça e os megafones, no último volume, repetiam contentes da vida: Bem-vinda à bordo do R2-1929-Ingrid !

16.9.10

Sobre a caixa

E que assustador que era quando olhava naquela beiradinha - que foi beiradinha um dia mas que hoje era na verdade um baita de um abismo - da caixa de papelão onde costumava se esconder morava e via os risquinhos se multiplicando... se multiplicando...
Assustador!
Fazia os risquinhos com as unhas todos os dias, muito meticulosamente, que era para não se esquecer que horas eram.
Enquanto via as lascas de esmalte saltarem para todos os lados no esforço fútil de fazer uma marca precisa, ouvia o tic-tac tic-tac incansável lembrando que a próxima hora se aproximava e que esta também não deveria ser esquecida.
E aí, no fundo, no fundo, tinha certeza de que na verdade os risquinhos serviam justamente para tentar tirar toda aquela porcariada das idéias e tentar enfiar com raiva num pedaço de papelão.
Nunca funcionou! O tic-tac nunca foi embora...
E, além de tudo, o papelão revidava: as unhas eram rapidamente substituídas por carne viva e umas gotículas de sangue aqui e alí.
Era por isso que tinha dias que achava que ele era reforçado com ferro duro.
O ferro hipotético, pensava, devia estar bem lá dentro... tão lá dentro que era por isso que ela escavava mas só achava o cretino do papelão mesmo e aí, quando cansava, quase podia ler entre os farrapinhos modestamente arranhados algumas palavras de gozação, algumas piadinhas dirigidas àquelas mãos incompetentes que eram aquelas que ela tinha.
Impotência.
E aí as cabeçadas que costumava dar no aço papelão durante as noites sem lua, lhe pareciam então uma grande tolice.
Batia na própria testa, se sentindo um touro fracassado, em toda a sua fúria, sendo selvagem para os outros rirem.
Lembrava desses tais outros e aí espiava lá fora, pela frestinha da caixa, tentando achar o público.
Casa vazia: não se surpreendeu quando não encontrou ninguém a que pudesse chamar platéia.
Muitas pernas, muitos olhos, muitos braços, muitos passos apressados, passadas frias, muitos ombros encolhidos, muitas vozes sem palavra alguma, muitos estômagos revirados; todos a uns 3 km de distância.
E aí lá da caixa ela só via, e lá de fora eles só viam... só a caixa, a carapaça.
Se sentia triste por uns três segundos, mas daí pensava um pouco e via que não queria platéia era coisíssima nenhuma.
Queria mesmo era alguém para contracenar, o toureiro!, ou ao menos uma boa alma que topasse um refrigerante nos bastidores, depois que as luzes se apagassem.
Era bem aí que se esbofeteava feio, que era para interromper os pensamentos desenfreados que agora galopavam rumo à Lua.
Pensava: "Quem me dera fosse a vida um palco!"
E aí observava logo em seguida que a vida, no caso, eram quatro paredes secas e um teto esburacado.
E pronto.
Olhava bem pras quatro paredes, esperançosa, tentando achar alguma formiguinha gente boa.... mas só o vazio.
Dentro da caixa só o papelão mesmo...
Dentro da caixa só o papelão!
Só o papelão, e - lembrava de repente - também aqueles risquinhos todos lá...
Se multiplicando... se multiplicando... se multiplicando...
Era nesse rumo que os quase imperceptíveis registros de qualquer coisa, agora tornavam a caixa menor ainda, e era também bem assim que - ela sabia - andavam roubando o restinho de ar que havia ainda para ser respirado.
Assustador.

6.9.10

Sobre o recomeço

constrói.
constrói.
constrói.
constrói.
constrói.
vento....

Aí chora. Chora muito.... chora muito sobre as pedras todas espatifadas por aí no chão.
Chora muito sobre o cimento, arrebentado.
Chora sobre os vidros estilhaçados e uns cortes nas mãos e nos ossos.

Um dia, se tudo der certo, vai enfim descobrir que o vento só está querendo dar uma oportunidade de se construir fundações mais firmes, e aí vai até saber apreciar a hora em que tudo se desaba uma vez mais.

5.9.10

Sobre o que escapa

Foram vários meses, tantos, que acho que seria melhor aqui dizer "anos".
Então, de novo: foram vários anos.
Há uma certa apreensão de que não conseguia se desfazer, não conseguia tanto, que acho que o certo seria dizer "não consegue".
Não consegue se desfazer daquela certa apreensão.
E aí vinham as ânsias todas, todas juntas, todas sempre, todas.
Vinham tanto, em tão grande escala, que mesmo que elas tenham parado de se ejetar da alma, o eco persiste e elas acertam da mesma forma.
Aí vêm as ânsias todas.
Elas sempre vêm.
Achava que tinha dado cabo delas quando a cabeça resolveu pensar em outra coisa.
"Touché", pensava.
Mas era bem aí que dava por falta.
E faltava tanto, que, tem que admitir, todos os suprimentos de "coisas para se pensar" não foram o bastante.
Escaparam.
Ainda dava por falta.
Ainda dá.

3.9.10

Sobre o que é intáctil

A gente sempre pensa que o céu está em cima, mas é só por preguiça de pensar no céu que está embaixo e daí então ter que levar em conta os mais ou menos 12.756,2 (ufa!) quilômetros de diâmetro de planeta que teríamos que percorrer neste caso.
E no fundo a questão real é que tanto faz pra cima, pra baixo, pro avesso e pra dentro: se algum dia a gente tivesse mesmo coragem de tentar ir até lá para pegá-lo, a gente descobriria (ou então simplesmente teríamos que admitir) que não dá.
Não dá pra pegar o céu!
Sequer dá pra saber quando se chegou lá, ele simplesmente continua indo e indo... e só muda de cor e só fica mais difícil de respirar e nada mais.
Quando ficar preto demais a gente retorna, mas certamente sem trazer com a gente aquela sensação de quem sobe no ombro do pai e encosta o dedinho no teto pela primeira vez, que a gente tanto queria.
Essa sensação vai continuar sendo, eu sei, garantia apenas de quem só tem por sonho construções duras de tijolos; o resto há de se contentar com o vazio das mãos.