25.2.16

Estava ali sentado no sofá, o corpo tendo se transformado em um balão de borracha humanóide cor de laranja tão inflado que já ultrapassava níveis toleráveis de transparência. Seu eu real se prostrava no fundo do balão, caído lá dentro patético, como uma uva passa inanimada. Há um momento repetitivo tipo deja-vu quando parece que você se desloca na velocidade da luz ao avesso e se comprime ali no fundo de si mesmo e só sobra o caroço. Você perde toda a habilidade de controlar seus movimentos ou de falar ou de acessar a lógica do seu cérebro propriamente. Você é um alienígena para você mesmo, pequeno lá no fundo, e o que os outros olham é a carapaça plástica que você mesmo não é capaz de ver ou acessar. Se explicar se torna doloroso-quase-impossível.

19.2.16

Súbito assombro antes de o dia ficar claro: uma sensação de navio naufragado que a gente abre o olho e vê de repente, uma sensação de achar uma bola de poeira ainda onde a gente havia escondido anos antes, uma sensação de ser olhada por cima de um muro invisível.
A curiosidade com aquilo que a gente tem medo é uma garrafada na cabeça que a gente mesmo se dá.

18.2.16

A gente sente uma brisa que desliza pelas pernas e sopra uma melodia no ouvido: uma menina que canta com batom vermelho e o olho cheio d'água.
A gente comprou um ticket de trem sem olhar o destino e agora a gente se lança a vapor rumo a um futuro nebuloso-fragmentado.
Tudo o que vem na minha cabeça é um homem prateado sem rosto e sem impressões digitais que me olha como se esperasse de mim qualquer coisa que seja que eu não sei nem imaginar o que possa ser.
Eu vejo pedaços de papel fino queimado de contorno incerto caindo do céu e acho que alguma coisa explodiu lá no alto mas não fez barulho nem teve importância... mas eu sei. Eu sei porque eu sinto os pedacinhos dos restos do que quer que fosse lá em cima entrando dentro da minha pele.
A gente sente um vento contínuo gelado cobrindo nossas costas como fosse um cobertor e a manhã é toda clara e toda branca, como se ela quisesse que a gente mesmo fosse lá e desenhasse o contorno das nuvens.

17.2.16

Tenho que contar a história de uma casa que ainda não existe, uma casa cujo endereço foi escrito em tinta de silêncio. O tempo lacrou as entradas em um momento que não é nem lá nem cá e eu olho pras minhas horas e elas se comem umas as outras e me deixam de mãos vazias...
Eu sou um urso, uma fúria, um fiapo, uma idéia daquelas que a gente tem no banho e depois, por mais que tente, não consegue se lembrar.
A minha casa nova (que não existe) é um lugar onde a hera cresce solta e a madeira do chão submergiu numa camada grossa de poeira branca. A minha casa nova tem um furo no telhado que a natureza fez pra que eu pudesse ver a lua e não prorrogar isso jamais.
(Eu uivo uivo uivo e nunca viro loba, mas um dia eu vou virar.)
A minha casa nova (que não existe) é onde eu vou sentar pra construir máquinas feitas de suspiros, que no fim do dia vão desaparecer dentro de sonhos repetidos; é onde eu vou coletar formigas e alinha-las como me convier; é onde eu vou olhar por um buraco e ver o meu rosto inteiro lá do outro lado, muito sorridente, dizendo que nada foi em vão e que no fim das contas eu existi sim. Eu existi.


No canto do mato onde a coruja pia baixo discreta eu vi um moço ajoelhado como farrapo catando moscas dos cotovelos.
Esse homem-sombra muitas vezes refletia no abismo que era seu rosto a minha própria cara de sombra. Eu sou um ser sem nome.
Um encontro como esses muitas vezes salva: é preciso se ver para acertar a postura...
Outras vezes esses encontros partem: cacos de nós pelo chão úmido da noite.
Eu queria que o homem-sombra ficasse por perto porque seja lá o que ele é, o que ele faz, o que ele não faz e o que ele desrepresenta, eu ser-sozinho não sei ser.
Eu quero que a lua me coma de uma só vez e que meus farelos se deitem no céu com as estrelas.

5.2.16

Há um certo segundo na sua vida, um segundo liso como um plástico, em que você passa a se identificar como um adulto. Isso mesmo, você agora é uma pessoa de verdade. Seus braços são braços, suas pernas são pernas, sua casa é uma casa, você tem copos, quadros, janelas e fins de semana. Mas em algum lugar, debaixo disso tudo, discretamente pulsando debaixo do piso de madeira, soprando um aroma de capim pelas frestas das portas, há uma esfera dourada que um dia você chamou de coração, de alma, de cosmos, de presença, sei lá!... uma esfera que era tudo: o bom e o ruim.
E apesar das paredes grossas, das colunas de concreto, dos diplomas, dos novos sons e das transformações, se você olhar bem de perto dentro das suas unhas e no vão entre os seus lábios, você verá um raio dourado pulsando freneticamente ao som de todos os segundos que você já viveu (na sua cabeça e fora dela).