16.7.10

Auto-ajuda de sexta à noite

Em Marte eu aprendi que não é possível não gostar.
Fui pra lá em julho de um ano qualquer desses aí, desses que a gente já nem sabe mais qual é porque o mundo, quando ressurgiu da terceira explosão, ressurgiu todinho ateu (e eu até que gostei). A pena é terem esquecido o quão útil ainda poderia ser o calendário cristão.
Daí a gente parou de contar, quer dizer... a gente parou de contar juntos. Agora cada um conta do seu próprio jeito, tendo seu próprio ponto de referência.
Eu não tinha nenhum ainda quando pisei em solo escarlate e aprendi que não é possível não gostar.
Não é viável, simplesmente, a impassibilidade a tudo.
Eu fui pra lá porque aqui eu gostava demais de coisas demais, mas as coisas são só coisas e não gostam de volta.
Sobre as pessoas, eu nunca quis gostar... porque se eu gostasse e elas não gostassem de volta, como eu iria me sentir? E imagine que ruim seria a possibilidade de descobrir que as coisas gostam de volta, só não me dão retorno porque sou eu.
Eu e minha dignidade decidimos nos retirar antes que fosse tarde demais.
Aí eu fui, toda cheia de blaséismos (e neologismos baratos à tiracolo!), até Marte e lá não gostei de nada.
Até de não gostar. Eu não gostei de não gostar!
Mas é tempo demais encarando o cinza e o vermelho e uma hora eu tive que admitir que era uma bela de uma combinação.
Eu disse: não que eu goste... mas como fazem sentido essas cores, assim juntinhas!
E daí um dia encontrei uma pedra que, puxa vida!, que raio de pedra mais brilhante!
Eu não gostei nem um pouco... mas que era brilhante ela era.
Lembro ainda de uma outra vez em que topei o dedinho do pé numa montanha tão grande e poderosa que parecia a casa de Zeus! Chamei ela de Monte Olimpo e saí assoviando feliz, me achando criativa!
Do Monte Olimpo eu não gostei, apesar de sentir crescer um enorme respeito por aquela rocha que era praticamente uma entidade digna de adoração... mas era só isso, nada além de respeito.
As coisas mudaram num dia escuro e quieto e sem graça e sem nada, desses em que eu praticava com maestria o "desgosto".
Eu lembro de estar deitada no meu monte sujo de chão marciano, olhar para o lado e ver a linha.
A linha não era nada, a linha não fazia sentido, não tinha brilho, a linha não era poderosa.
A linha era só um fio, sem começo e nem fim, totalmente imóvel, irreversível. Um traço fino gravado no chão duro.
De que me serve a linha? Não serve pra nada.
Mas parece que a desgraçada tinha uma extensão invisível que a atava às minhas entranhas.
Me puxou com força!
Daí eu passei a seguir a linha e isto se provou mais difícil do que eu esperava.
Primeito de tudo porque precisei levantar o traseiro do chão.
Esforço físico foi pouco, a linha demandava raciocínio e lógica.
Então, para executar a tarefa com seriedade, eu dividi o tempo em duas partes: a parte destinada ao sono e a parte destinada à contemplação.
Não foi o bastante! Eu precisava organizar melhor as coisas se quisesse experienciar a linha de verdade e, quem sabe, um dia saber pra onde é que ela vai.
Eu dividi as partes em que eu a contemplo em pequenas secções chamadas Horas; as partes em que durmo não dividi pois elas são irrelevantes.
Irrelevantes também são os dias - "dia" foi o nome que dei aos espaços temporais compostos pela conjunto de um descançar e um contemplar -  em que chove e eu não posso discerní-la no meio de tanta confusão.
Estes eu não conto pois não existem... são apenas intervalos vazios.
Foi nesse rumo que eu acabei vivendo uma quantidade de dias que não cabia mais nas mãos e nos pés, e foi bem por isso que inventei os "Meses" e dividi cada mês em algumas semanas.
Agora eu tinha meu próprio calendário.
E eu tinha mais:
Eu percorri um longo caminho na trilha da Linha e nele aprendi que é preciso comer pois se não for desta forma as pernas não se movem e aí como poderia alcançar meu intento?
Comendo, eu descobri que preciso saber escolher bem o que vou enviar à goela.
Imagine morrer envenenada antes de chegar lá?
Aprendi a contar, aprendi a organizar, aprendi a prover, aprendi a escolher.
Aí descobri que aprendi a aprender simplesmente porque aprendi a gostar.
Fiquei um tempo pensando nos terráqueos, meus conterrâneos, e lembrei que eles aprendiam muito.
À esse aprendizado todo eles deram um nome e esse nome era "vida".
Agora eu sei: aprendi a viver porque aprendi a gostar.
Reciprocidade é só um detalhe.

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