26.7.10

"Quem sou eu!?"

Era o que perguntava a Rainha ao Guru do reino. Toda vez que ela perguntava isso ela esperava ouvir Pablo Neruda, da mesma forma que ouvia quando lhe sopravam ao pé do ouvido todos aqueles (às vezes) belos pretendentes que ela tinha.
Eles se esticavam todos e se aprumavam todos e aí soltavam, crentes que estavam sendo deveras originais:
"blablablá blablablá...
Mas só tu és a Rainha."
E ela aí aproveitava para empinar um pouco mais o nariz e chacoalhar os cabelos. Toda cheia de si.

Mas o Guru nunca que respondeu dessa forma.
Ele nunca respondeu coisa alguma.
Ele era mestre em mudar de assunto:
Um dia ele falava do tempo, outro dia ele falava do banquete, no outro falava das vestes, depois da música, e do chão, e do cheiro, e dele mesmo.
E aí quando ele falava dele mesmo ele queria era que ela perguntasse quem era ele.
Num dia particularmente entediante ela o fez.
O tom era de deboche, mas pro Guru tanto fazia... ele só queria mesmo era responder.
E aí ele disse:
"Eu sou eu e minhas circunstâncias."

Demorou, mas um dia ela entendeu.
Ela entendeu que quando ele falava do tempo ele falava de quem ela era.
Porque quando chovia, a Rainha era metade chuva; quando o sol era forte, a Rainha ardia em ânsias; quando o céu era de estrelas, a Rainha refletia o brilho; quando os raios despencavam aos montes, a Rainha se detia colhendo seus próprios cacos no chão.
Mas no reino os dias eram quase todos nublados e é por isso que a Rainha era quase sempre o que era: enevoada.

E quando ele falava do banquete ele falava de quem ela era.
Porque tudo o que descia pela goela da Rainha pesava em seu estômago e fazia ela andar mais devagar.
E que fique claro que não estamos falando só de comida: tinha dias em que a Rainha engolia umas belas de umas mentiras e essas, por exemplo, a pregavam no chão.

E aí ele falava das vestes e era dela que ele estava falando.
Dela e dele e de mim e de você e eles.
Porque tem dias que a gente acorda querendo ser outra pessoa. Nesses dias a gente levanta e veste as máscaras e amarra bem o cinto de utilidades e calça as botinas mais corretas para a ocasião.
Mas nem sempre.
Tem dias em que a gente escolhe a primeira muda de roupas que os braços podem alcançar.
Mas até elas, tão despropositadas, acabam virando um pouco quem nós somos e nós viramos um pouco quem elas são.

A Rainha quase sempre se vestia de vermelho.
A Rainha quase sempre era majestosa.
Mas tinha dias em que ela se vestia de preto. E pronto.

Quando o Guru falava da música ele falava de quem ela era.
Porque quando a banda cantava sobre o Rei Escarlate, a Rainha era três vezes mais Rainha do que costumava ser e quando a banda tocava as Canções da Floresta, a Rainha era mais feliz e não precisava de mais nada.
Se desse sorte, a banda tocaria Uma Canção Dentro de Uma Canção, e aí a Rainha flutuaria pelas torres do castelo sendo mais quem ela gostaria de ser do que quem ela realmente era.
Faz uns anos já que a banda resolveu tocar o Silêncio.
A Rainha não gosta (ou pelo menos acha que não), mas decorou direitinho todos os desacordes.

Quando o Guru falava do chão ele falava da Rainha.
Porque tinha dias em que o chão era duro e frio demais e nesses dias ela pisava com força dobrada.
Tinha dias em que os pés dela só conseguiam tocar a grama fresca e nesses dias ela pairava por aí, por medo de matar possíveis joaninhas desavisadas.
Mas tinha dias em que simplesmente não tinha chão!
Nem sempre era ruim, porque às vezes quem o tirava de lá era o futuro-possível-seriatãobomsefosse-Rei e nesses dias ela aprendia a ser borboleta e voava alto.
Tinha dias, ainda, em que se chocavam as placas tectônicas todas e aí ela não tinha coragem de sair do lugar.

O Guru falava de quem era a Rainha toda vez que mencionava os cheiros.
Porque era impossível não encontrá-la com cara de poucos amigos quando matavam uns ratos no quintal e sobrava o fedor pra quem não tinha nada a ver com isso.
E ainda bem que pululavam também, de vez em quando, uns belos de uns cabelos bem lavados pra dar uma disfarçada no cheiro das bocas podres e o cheiro das histórias mal contadas.
A Rainha se mudava toda, conforme mandavam as maestras narinas.

Mas o mais surpreendente: quando o Guru falava dele, ele falava de quem ela era.
Porque viviam os dois sob o mesmo teto e sobre o mesmo chão e não se viam sempre, mas se viam às vezes... e essas vezes eram o bastante para que, quando se olhassem nos olhos, trocassem as circunstâncias que colheram por aí no decorrer do dia e da semana e dos anos e da vida e era impossível que não saíssem dalí um pouco misturados, peneirados no crossing-over social.

O Guru também falava dos móveis, dos pratos, das meias, dos ponteiros, das facas, dos cinzeiros, das preces, dos hinos, das cores, das nuvens, dos telhados, das pedras, das pinturas (e dos pintores!), dos tijolos e das dores de cabeça.
E a Rainha agora se lia em tudo isso e ficava bastante contente quando pensava que ela era também, para os outros, uma bela de uma circunstância.
Aí a Rainha se sentia sábia... até naquilo que ela não sabia de forma alguma.
Mas ela sabia que não sabia e, por vaidade, ela acha que isso sim é que é uma senhora de uma sabedoria!

A Rainha não sabe de amanhã... mas ela sabe que essa ela de hoje (e suas circunstâncias), não pretende mais perguntar pra ninguém - nem pra ela mesma! - "Quem sou eu!?", porque ela sabe que a resposta correta está sempre um passo à frente.
Ela sabe que a Rainha que ouve a resposta já será outra completamente diferente da Rainha que fez a pergunta.

Não perguntar é só o que planeja a Rainha de hoje... é bem possível que amanhã as circunstâncias se alinhem de tal jeito que favoreçam o nascimento de uma Rainha que irá querer fazer a seguinte questão:

Se eu me livrar das minhas circunstâncias, será que eu me acho?

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