27.8.10

Dar corda

Era muito de observar as pessoas.
Aí se sentava na sacada, quando dos seus, digamos, 6 anos, e via as crianças que brincavam esbaforidas caírem e ralarem os joelhos e sangrarem e sentirem dor.
Aí decidiu que não brincaria, porque sentir dor devia ser ruim demais.
Nunca caiu.
Aí fez 12.
Se sentava no fundo da sala de aula e assistia bocejante aos idiotas que corriam ao quadro negro e escreviam lá, com seus garranchos inseguros, uma meia dúzia de contas mal pensadas e mal calculadas dignas de um enorme zero, e que daí voltavam às carteiras com as bochechas rubras e os olhos atentos aos próprios joelhos.
Vendo isso se sentia mal por eles e foi então que decidiu que seu mundo seria o de seu caderno, trancado a sete chaves. E só.
Se errou, ninguém nunca viu.
Aos 15 evitava obstinadamente ter que encarar os casaizinhos insuportáveis que fingiam que sabiam muito de amor, e bem por isso era que achavam que era bonito se esfregar por aí, pelos cantos (qualquer canto!), e daí trocavam um pouco de saliva, já que palavras interessantes deviam estar em falta.
Mas aí também encarava com gosto depois, quando os mesmos sabichões esbarravam com seus próprios reflexos nas poças esquecidas pela chuva de verão - daquelas que só choviam mesmo para deixar as poças de presente - e se sentiam vazios.
E foi por isso que decidiu poupar da própria saliva.
Engraçado, mas nesse caso o vazio persistiu...
Mas fingiu que não viu, que uma trapaçazinha de vez em quando não faz mal... e que o que importa mesmo é que afinal chegou o dia em que fez os 18 e daí havia algo totalmente novo onde focar o repúdio: admirava-se então com o tanto que se esforçavam as gentes para concretizar ideologias forçadas, só para dizer que sabiam o que queriam da vida, mas aí depois se surtavam todas por aí e entravam em pânico e em crises várias. Soluços engolidos para dar e vender.
Daí decidiu que não se esforçaria até que soubesse pelo que deveria se gastar.
Mas daí fez 20.
E, quando fez 20, sentiu dor.
Uma desgraçada de uma cãibra no traseiro que, desde os 6, não havia tido a chance de se descolar do chão da sacada.
E, quando fez 20, perdeu a fala: acabou-se o caderno, seu único ouvinte.
E, quando fez 20, sentiu a solidão bater fundo - não que ela antes não existisse, era só que então não havia mais modos de negá-la... as desculpas esfarrapadas se acabaram.
Quando fez 20 perdeu muita coisa, mas ganhou pelo menos uma: a consciência de que o próprio esforço, por sí só, e seja pelo que for, é motivo mais que o suficiente para se esforçar.
Esforçar-se pelo esforço, para pelo menos manter as engrenagens rodando, porque nunca se sabe quando irão disparar o revolver da largada e balançar a bandeirinha lá no alto e, que se a gente quer mesmo ter fôlego para correr as setenta e duas mil e novecentas voltas, o alongamento é essencial.

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