16.9.10

Sobre a caixa

E que assustador que era quando olhava naquela beiradinha - que foi beiradinha um dia mas que hoje era na verdade um baita de um abismo - da caixa de papelão onde costumava se esconder morava e via os risquinhos se multiplicando... se multiplicando...
Assustador!
Fazia os risquinhos com as unhas todos os dias, muito meticulosamente, que era para não se esquecer que horas eram.
Enquanto via as lascas de esmalte saltarem para todos os lados no esforço fútil de fazer uma marca precisa, ouvia o tic-tac tic-tac incansável lembrando que a próxima hora se aproximava e que esta também não deveria ser esquecida.
E aí, no fundo, no fundo, tinha certeza de que na verdade os risquinhos serviam justamente para tentar tirar toda aquela porcariada das idéias e tentar enfiar com raiva num pedaço de papelão.
Nunca funcionou! O tic-tac nunca foi embora...
E, além de tudo, o papelão revidava: as unhas eram rapidamente substituídas por carne viva e umas gotículas de sangue aqui e alí.
Era por isso que tinha dias que achava que ele era reforçado com ferro duro.
O ferro hipotético, pensava, devia estar bem lá dentro... tão lá dentro que era por isso que ela escavava mas só achava o cretino do papelão mesmo e aí, quando cansava, quase podia ler entre os farrapinhos modestamente arranhados algumas palavras de gozação, algumas piadinhas dirigidas àquelas mãos incompetentes que eram aquelas que ela tinha.
Impotência.
E aí as cabeçadas que costumava dar no aço papelão durante as noites sem lua, lhe pareciam então uma grande tolice.
Batia na própria testa, se sentindo um touro fracassado, em toda a sua fúria, sendo selvagem para os outros rirem.
Lembrava desses tais outros e aí espiava lá fora, pela frestinha da caixa, tentando achar o público.
Casa vazia: não se surpreendeu quando não encontrou ninguém a que pudesse chamar platéia.
Muitas pernas, muitos olhos, muitos braços, muitos passos apressados, passadas frias, muitos ombros encolhidos, muitas vozes sem palavra alguma, muitos estômagos revirados; todos a uns 3 km de distância.
E aí lá da caixa ela só via, e lá de fora eles só viam... só a caixa, a carapaça.
Se sentia triste por uns três segundos, mas daí pensava um pouco e via que não queria platéia era coisíssima nenhuma.
Queria mesmo era alguém para contracenar, o toureiro!, ou ao menos uma boa alma que topasse um refrigerante nos bastidores, depois que as luzes se apagassem.
Era bem aí que se esbofeteava feio, que era para interromper os pensamentos desenfreados que agora galopavam rumo à Lua.
Pensava: "Quem me dera fosse a vida um palco!"
E aí observava logo em seguida que a vida, no caso, eram quatro paredes secas e um teto esburacado.
E pronto.
Olhava bem pras quatro paredes, esperançosa, tentando achar alguma formiguinha gente boa.... mas só o vazio.
Dentro da caixa só o papelão mesmo...
Dentro da caixa só o papelão!
Só o papelão, e - lembrava de repente - também aqueles risquinhos todos lá...
Se multiplicando... se multiplicando... se multiplicando...
Era nesse rumo que os quase imperceptíveis registros de qualquer coisa, agora tornavam a caixa menor ainda, e era também bem assim que - ela sabia - andavam roubando o restinho de ar que havia ainda para ser respirado.
Assustador.

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