22.9.10

Sobre o porto

Eu vi do porto, do meu porto no meio do mar, os barcos se indo por aí, por todos os cantos, para todos os cantos... zarpando como se bem soubessem para onde ir.
Eu vi de lá, também, os barcos atracarem nos seus portos ideais, nas suas praias ideais, com suas festas de boas-vindas para lá de ideais.
Eu vi suas rolhas de champanhe explodindo com um ZUM no céu azul... o azul ideal.
Eu vi do porto, do meu porto no meio do nada, uns barcos orbitando minhas águas rasas.
Mas minhas águas rasas, ainda que relativamente rasas, eram profundas demais.
E essas tais dessas minhas profundas águas rasas carregavam rodamoinhos violentos e uns monstros bem bizarros... uns monstros daqueles que nunca dão as caras que é só para aumentar o suspense.
Foi bem assim que, querendo ou não, eu pude evitar que se aprochegassem os barcos que não tivessem meu nome neles.
Já se passaram alguns Lauras, uns Priscilas, uns Tamaras, uns Elisas. Uns Bárbaras.
Mas foi bem assim que, querendo ou não, teria também que evitar que se aprochegassem os barcos que por ventura tivessem meu nome marcado de reluzente dourado no casco.
E ainda assim ficava na ponta dos pés, com as unhas marcando fundo no deque de madeira, esperando a fumaça poderosa que precederia o Cruseiro Rainha.
Aí eu ouviria um espalhafatoso "terra à vista!", e sairia correndo como uma completa aloprada para preparar a festa ideal de boas-vindas do meu barco ideal.
Mas foi pensando assim que lembrei que minha praia ideal não tinha areia para meu barco ideal atracar.
E que grande porcaria que foi quando eu me lembrei que meu céu azul ideal era cinza.
Lembrei que meu barco ideal, selado de reluzente dourado - dourado do tipo ideal -, nunca veio e que, se viesse, daí o que diabos eu faria com os rodamoinhos todos?
E os monstros???
Eu mandei que eles sumissem algumas vezes, só para testar minha habilidade de controlá-los.
Fracasso.
Eu pensei "Mas tudo bem, porque na hora H vai dar certo".
E foi por causa dessa ingenuidade forçada (que na verdade era, suponho, a única opção), que eu olhei mesmo assim para todas as direções querendo achar algum vesquício de fumaça escarlate.

Eu era o eixo alí, no meu porto... meu porto no meio de tudo - egocêntricos nós dois, eu e o porto -, e do eixo eu vi o norte, onde o oceano terminava em um colossal continente de terra vermelha.
Vermelha!, mas não escarlate...
90 graus mais para lá e eu vi o leste e suas ilhas caoticamente organizadas. Picotes de terra e mar, em harmônico desencaixe.
E que pena que o que eu queria mesmo era o encaixe descompassado.
Eu vi também o oeste, cheio da pompa, onde os arranha-céus rasgavam as nuvens cor-de-chá que pairavam desavisadas.
Em um rasgo ou dois escapolia o sangue chorado pela chuva, e aí a pompa ruia silenciosamente. Eu senti dor junto.
Mas daí eu vi o Sul onde não tinha nada, só mais um pedação de mar para tudo quanto era lado.
Longe... o Sul devia ser bem longe! Bem depois daquilo tudo que meus olhos podiam alcançar e foi por isso, por não poder vê-lo, é que eu passei a imaginar como ele seria.
O Sul era o único ponto cardeal que me permitia querer alguma coisa. Eu idealizei o Sul.
Aí eu passei a achar que meu barco ideal viria de lá, e nunca mais olhei para nenhuma outra direção.
Se eu tivesse sido mais esperta teria olhado para o alto, onde um zepelim flutuava no céu cinza - o cinza ideal! - balançando sua escadinha sobre minha cabeça e os megafones, no último volume, repetiam contentes da vida: Bem-vinda à bordo do R2-1929-Ingrid !

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