1.10.10

Sobre as cismas

Todo dia planejava tudo muito bem.
Faria tudo o que fosse preciso até as 17 horas, a partir daí se sentaria naquela pedra de sempre, com as costas apoiadas no muro de sempre, vendo a garça de sempre tentando pegar, como sempre, o mesmo peixe.
Ele sempre fugia.
Gostava de ver a persistência da ave que já na centésima tentativa mantinha a postura concentrada para o bote como se fosse a primeira vez.
Gostava também de esperar pelo pôr do sol, que não tinha uma cor tão significativa quanto deveria, mas que era um momento e tanto e além disso funcionava como um lindo prelúdio para o planetário natural que aguardava sua hora de angariar olhares.
Mas no fundo no fundo, o esforço todo era por causa do lago e era exatamente por isso - um dia descobriu - que a pedra parecia mil vezes mais duras toda vez que a noite caía e não tinha nem estrelas nem lua para o lago refletir a luz e daí era tudo um grande lapso visual, obscuridade, e ficava lá tentando imaginar onde é que termina o chão e começam as águas.
Tinha dias que cerrava os olhos e tateava com os braços esticados mas só apalpava mesmo era as plumas da garça e a grama e uns pedregulhos daqueles bem canalhas que lascavam feio as mãos.
A gente sabe que boa parte dos motivos para nunca conseguir sentir as mãos baterem contra a água gelada era justamente porque nunca realmente se esforçou o bastante, de tanto medo que tinha de tropeçar e se afogar, ou simplesmente porque tinha medo de ela estar gelada demais (já sabia que estaria!)
Umas duas ou três vezes adormeceu de pé e sonhou que tudo tinha sido um sonho.
Passava algumas horas depois que acordava ainda de olhos fechados temendo olhar para o mundo e ver lá a garça e ver lá o sol se pondo e ver lá a grama fofa e ver lá a terra batida onde deveria estar o tal do lago.

Um comentário:

  1. Na verdade o reflexo só é o reflexo por causa da ausência do flexo.

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