23.3.11

Sobre os que se excluem do roteiro

Quando via as festas dos outros pela janela pareciam perfeitas, mas assim que botava os pés lá dentro as coisas mudavam drasticamente.
Não conseguia mais ver com clareza, era muito tumulto.
O salgadinho sempre caia no chão.
Aí a tia vinha e tinha que limpar também a coca-cola derramada na toalha.
Nunca soube participar dessas festas.
Nem da sua própria.

Não gostava dos bolos de aniversário.
Daqueles de quase dois metros que a avó fazia.
Não gostava dos presentes.
Daqueles de muitos reais esbanjados que o pai trazia.
Não gostava dos balões.
Daqueles enchidos a custo dos pulmões fracos da mãe.
Era tudo muito... não "muito ruim", nem "muito chato"..  não diria isso.
Era tudo simplesmente muito.
Via o bolo e tinha certeza absoluta que não lhe caberia comer mais que duas fatias.
Os presentes?
Do jeito que era, quebraria em uma semana. 
Os que sobrassem, perderia dentro de um ano.
Os balões, veria seus amigos estourarem um por um por pura falta do que fazer.
Passaria o dia assim, sentindo que não soube usurfruir como devia.
Nunca conseguiu ver sentido em coisas assim e os convidados sempre aproveitaram mais do que ele mesmo.
Se frustrava.
Tudo em que se intrometia desmoronava, perdia o sabor, deixava o brilho pra trás.
Quando mais rapazinho, se afundou em filmes e músicas e livros, onde era possível viver as histórias sem estar lá de fato para estragar.
Foi Indiana Jones, Capitão Nemo, Luke Skywalker, Vlad, Gandalf e até mesmo o Idiota na Montanha.
Cantou as palavras do Dylan como se fossem suas... sem gaguejo.
Sem tropeços, sem coca-cola derramada.
Um dia decidiu que sua presença seria substituída por uma câmera e um microfone.
Levantou acampamento no próprio quarto - trancado pro mundo - e incumbiu alguns familiares e amigos mais confiáveis que lhe passassem as fitas e cadernos com relatos minuciosos por debaixo da porta.
Um dia as entregas escacearam.
Não tardou e falharam completamente.
Ficou um ano inteiro de tocaia ao lado da porta e da janela e nunca mais ouviu barulho de ninguém.
Nunca mais viu as sombras se mexendo pelas frestas...
Passou fome.
Daí num dia, louco em febre, completamente delirado, se lembrou que certas vezes viu em fitas e leu em cartas que a irmã iria fazer faculdade na capital, que o pai e a mãe se divorciaram e mudaram de rumo, que os amigos foram morar longe.
Nos filmes, quando acaba uma história, a gente coloca outra... pena que ele se esqueceu que não tinha outra pra colocar no lugar. 
Quando ele nasceu foi essa que lhe coube, soretada na roleta das possibilidades.
Boa ou ruim, era essa que era e ele não entendeu que se quisesse mudar teria que fazer como os outros e procurar a próxima fita em outro lugar porque o quarto é um espaço pequeno demais e porque um dia a locadora fecha e a livraria fecha e os discos se arranham.
Daí era ele, barbudo, descendo as escadas e rumando dessa vez para o próprio set de gravações.

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