20.4.11

Sobre complementos

Desde criança lia nos livros e via nos filmes e ouvia nas músicas coisas várias que diziam tantas coisas mas que na verdade diziam uma só, e era ela: é preciso, custe o que custar, achar seu farol.
A mensagem subentendida ficava martelando a cabeça noite e dia, dia e noite, e era só fechar os olhos pra ouvir as pancadas bem forte no coração.
Vezes várias quis chamar alguém pra recostar o ouvido em seu peito pra ouvir também, e entender aquilo tudo que sempre vivia repetindo sobre o tal do farol, mas só quis.
Nunca teve coragem de pedir que alguém tentasse decifrar seus batimentos cardíacos.
E quem é que iria querer?
Ficava no canto e ouvia à moda ímpar mesmo.
Custe o que custar...
Custe o que custar!
Daí se levantava num salto e ia correndo por aí olhando por todos lados tentando coar as luzes fúteis da cidade e descobrir se em alguma parte dela se escondia um raiozinho qualquer, qualquer pontinha boba, de uma luz verdadeira.
A luz que fizesse seus olhos enxergar.
Mas era puro desgaste: tanta coisa cegava e outras tantas fingiam que faziam ver mas era tudo mentira e no final das contas não sabia mais em que feixe de luz acreditar.
Rodou por mil esquinas, os olhos avermelhados se forçando a não piscar.
Seguiu semáforos enganadores umas quatro ou trinta e sete vezes - algumas delas com plena consciência do erro.
Mas daí um dia viu uma sombra incomum, sobrada num cantinho de marquise do sobrado da esquina menor.
E essa sombra incomum era incomum porque dançava ao som das ondas, assim mesmo, tão longe do mar.
E ia pra cá e pra lá e voltava e fingia que vinha e fingia que ia ficar mas daí se afastava de novo lá longe no horizonte.
De um lado pro outro, de um lado pro outro.
E agora eram duas pernas obsecadamente perseguindo seus zigue-zagues por ruelas e high-ways das mais violentas.
Atropelou caminhões inteiros, com tanta pressa que tinha de chegar do outro lado.
Não socorreu os feridos.
E a cada metro que engolia aumentava proporcionalmente a largura do feixe vai-e-vem, cada vez mais grandão, cada vez mais com cheiro de mar.
Até que algumas eras depois topou realmente com uma coisa gelada e salgada demais apra ser só cheiro.
Aí o raio dourado se esquivava agora de fato entre ondas de três metros e batia um medo tão grande, naquele peito ainda ecoante da missão, de ser tragado como um fumo barato pelo monstro que se impunha entre seu miocardio e seu farol.
E o farol... ah... O farol!
O farol se erguia inabalável entre as garras do oceano, como quem diz:
"Aqui, onde se afogam os meros mortais, solidifico a minha existência. Venha até mim quem se acha capaz de enfrentar o sufocar pela claridade."
Ou qualquer coisa do tipo, aquele coração sempre entendeu tudo como quis e qualquer piar de bem-te-vi virava declaração de amor.
E foi assim, por causa desses ouvidos tortos, que se atirou no mar e a largas braçadas alcançou a fonte da luz, a fonte da verdade, a solução para todas as questões - pensava.
Alcançou o mapa que daria as coordenadas precisas de para onde deveria trilhar.
Com o toque sutil das mãos trêmulas abriu o portal de madeira, e, como que para compensar o tempo perdido com as luzes falsas, subiu o caracol infinito da escada a três degraus por vez.
Quando chegou lá em cima, ofegando, havia um holofote.
 E só.
Quando chegou lá em cima, olhou pela janela e alí estava o mundo, igualzinho ao mundo de onde veio.
Alí estava tudo igual e a luz só ia até aquele ponto, até aquela marquise do sobrado da esquina menor...
Nas outras direções só havia o mar... e deve até ser bom pra quem sabe nadar, pra quem quer nadar.
E era aí que pensava: sei nadar, mas quero?
E, quando chegar lá, o que é que vai haver além da luz se ralentando até sumir? Além do mesmo escuro de onde saí?
Tentou, com o desespero típico de quem já desistiu, amarrar o farol em torno da cintura para ver se era possível carregá-lo por aí para que sua luz alcançasse mais além de si mesmo.
Mas o farol se negava, se exibia orgulhoso como rocha cimentava sobre rocha, no melhor lugar em que se poderia estar.
E pra que é que ele iria querer sair dalí? 
Então as mesmas pernas que corriam obsecadas há tão pouco tempo, agora murchavam e se recostavam humilhadas na beiradinha do rochedo.
O ditado que veio do coração, até ele!, era mentiroso.
Porque havia achado o farol mas o farol não queria achar é nada.
O farol só queria ser achado e pronto e acabava aí.
E ele mostrava o caminho, mas não tinha olhos pra olhar outro e não tinha pernas pra caminhar por outro e não tinha coração pra querer outro.
O farol se encerrava em si.
Em contrapartida as pernas agora em cãibra nem lá e nem cá (nem dormida e nem curada) latejavam porque não podiam simplesmente contentar-se com si mesmas.
Precisavam extravasar os próprios ossos, arrebentar a pele e ser mais que pernas.
As pernas desejavam ser luz também.
E foi assim que pegou uma lanterninha e começou a brincar de ser farol, mas um farol diferente:
Um farol caminhante, um farol sem foco, um farol sem decisão, um farol sem sentido de ser.
Mas um farol de possibilidades várias.
E esse farol agora espera, ansiosamente, que algum dia seu feixe de luz esbarre em algum outro farol também caminhante.
E aí se duplicarão e aí se completarão, e aí farão pelo menos cento e oitenta graus de compreensão, seja lá o que houver por aí para ser compreendido.

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