3.7.11

Poente

Sentava eu sobre o rio, com as pernas balouçantes.
E queria eu balouçar mais pra dentro d'água, balouçar mais no fundo d'água... até parar de balouçar.
E sentava eu sozinha, cheia de gentes ao meu redor, cheia de gentes sozinhos também (mas sem saber), e, sozinha, pensava eu meus pensamentos tortos, daqueles que de tão tortos que são me entortaram a mim inteira e a minha corcunda já se faz ver da Lua.
Mas o rio, o rio seguia reto debaixo de mim; para todas as direções sim, mas reto.

O rio corria com uma louca inexatidão, tão louca que eu nunca vi mais precisa, exatamente como deveria ser.
Ia destruindo tudo o que viesse pela frente, na maior das inocências, e ia também sendo destruído a cada metro no combate amistoso com as pedras pontiagudas da margem.

O sol batia meio de lado, mais pra prata que pra ouro, e me cegava pra tudo o que não fosse a água do bendito rio.
Meu novo foco me ensinou a olhar o rio de um outro jeito, um jeito que eu não sei dizer, mas que acho que algum dia alguém que se sentasse balouçante naquele mesmo lugar aprenderia espontaneamente se o sol batesse também meio de lado, meio que mais pra prata que pra ouro.

Eu não sei quando se deu o silêncio, eu não sei; o que importa é que esses pensamentos e todos os meus outros pensamentos se calaram reverentes quando o sol olhou pra mim, com seus olhos gordos engolidores de gentes, por volta das 17 horas e tudo o que ficou foi aquela vontade queixosa de balouçar mais pra dentro d'água, só um pouco... de ser água também, uma vontade destilada de atacar e defender só porque é assim que é, por essa simples razão!, porque foi isso o que quis a ordem do Universo, a matemática e a física e depois delas a evolução do ciclo natural.

Senti uma vontade esfomeada de ser o rio também, de contê-lo e de ser contida, de correr e colidir com qualquer montanha pelo caminho e fazer tudo isso e muito mais sem ter que lidar com os tais dos pensamentos tortos... aqueles meus pensamentos tortos que andam me encurvando mais a cada curva.
E eu ia vendo os estragos do rio na margem, dando nova forma apesar do caos aparente; e eu ia vendo como é que tudo se refaz e se desfaz e se refaz de novo e não existe corcunda nesse mundo tão simples e tão livre de sentimentos.

Minha corcunda doída se fez assim pelos meus pensamentos, e meus pensamentos se fizeram como são pelo meu coração bombeante de carências tantas que não se coube em si mesmo.
Meu coração, coitado, não se coube em si e quis por isso que saísse tudo goela afora.
Mas só quis... eu fechei os portões dessa vez, eu disse pra ele que explodisse então, fizesse o que fosse, que dessa vez eu não me deixaria transbordar.

Eu passei a chave e joguei essa chave no fundo do rio, naquele momento das 17:15 quando o sol se encaminhava para seu leito acobreado do finalzinho do inverno.
Eu perguntava ao sol e ao rio e ao mundo - que das pessoas eu já me cansei - o que é que eu fazia pra fazer parar de transbordar, o que é que eu fazia pra, se tivesse que transbordar, transbordar sem dor ou alegria: pra apenas deixar ir.
Aí era o Sol virando a curva por trás da montanha enegrecida, cheio de sugestões, e eu eu entendi o recuo como um "siga-me", entendi o recuo como um pedido pra que a platéia se levantasse.
E a platéia se levantou, num salto só, e a platéia aplaudiu com ardente entusiasmo o desfecho do Rei do Céu.

Talvez fosse uma cena deprimente pra quem se pudesse dizer a platéia da platéia do Sol, mas ainda assim me balouçava eu, sozinha, sem me importar com os outros (tão sozinhos quanto eu!).
Me balouçava eu sozinha então no vai e ver do meu corpo inteiro... meu corpo seduzido pelos brilhantes salpicados do rio que corria às cegas ainda sob meus pés.

E daí aconteceu o segundo milagre, e daí eu aprendi a ouvir:
Ocorreu a mim então que o vento andava sussurrando uns negócios no pé do meu ouvido, me ocorreu que o vento, vindo macio de leste pra oeste, me sugeria no mesmo idioma do Sol que o próximo passo era simplesmente dar o próximo passo mesmo, o passo da matéria, e aí enfim balouçar um pouco mais pro fundo bem como eu sempre quis e daí, enfim deixar que, na margem, meu coração e meus pensamentos se refizessem e se desfizessem e se refizessem de novo - daquele mesmo jeito sem sentimentos que eu vi o caos de plantas e bichinhos e lama se refazendo tantas vezes durante esse pôr-do-sol.

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