1.3.12

Sobre lanças e cidades

O homem se perde mais em linha reta, ouso dizer.
Nessa parte da cidade não existe curva, as extremidades terminam em enormes túneis que podem até ser que sejam curvos... ou não... no escuro não dá pra saber.
Mas todo o restante, eu garanto, tudo o que é visível, é só uma avenida vazia com muros contínuos de prédios de janelas trancadas e sem porta alguma a que se bater. 
E ainda assim o homem se perde, nunca sabe qual ponta é o norte e qual ponta é o sul.. e talvez sejam leste e oeste, mas provavelmente nem isso e nem aquilo e sim algum meio termo de números quebrados igual tudo o mais.
Nada é exato.
E não há nada a ser feito, não existe nenhuma gente na cidade que queira conversa. As pessoas da avenida reta são cinzentas bem como os postes de luz em que dão com as fuças esporadicamente.
E os postes de luz por sua vez, sempre com as lâmpadas estouradas e os cacos de vidro no chão sangrando os pés.
Antes, quando o homem vivia num labirinto de mato, andava a esmo sem saber nada do mundo lá fora... imaginando como seria saber o nome das ruas e ter um endereço a que lhe enviassem cartas, e ter um papel com um nome e uma foto e um número e uma mancha preta com as marcas da própria pele estampada feito carimbo.
Pensava que se fosse assim, estaria encontrado finalmente, saberia quem era, de onde era e o que fazia.
Só que quando chegou finalmente no mundo lá fora, o mundo lá fora era essa avenida de que falei a princípio.
O reto, o cinza, os cacos.
As pessoas com crachás e identificações, mas tudo tão empoeirado (e elas mesmas, tão sujas!) que de nada valia... eram uns iguais aos outros e iguais aos postes e iguais ao cimento do chão e tudo muito mutuamente.
Se antes vagava aleatoriamente e dava sempre de cara com um muro, mas um muro completamente novo e escalável, agora anda pra frente ou pra trás. E só. Sem ladeiras a que sair tropicando em cambalhotas.
E nunca está perdido no sentindo a que atribuem os dicionários... mas perdição pode ter mais de um significado. 
Existe, por exemplo, uma perdição que atravessa um homem no meio feito uma lança e leva tudo embora.
Feito as vassouras cinzas dos garis (igualmente cinzas) que empurram a poeira pela avenida reta.
Sempre empurrando a poeira pra frente e depois quando chegam no fim trazem de volta até chegar ao outro fim e assim sucessivamente .
É bem assim que a lança faz, se esfrega pelo peito do homem deixando as mágoas escaparem pela beirada pra ficar o vazio por uns tempos e depois, quando tiver achado que esgotou, trazer tudo de volta.
Isso é perdição.
E a cidade ampla, a cidade lisa, a cidade reta, faz o homem ficar cinza bem assim mesmo... por ser dura demais, por não ter curvas.
A cidade é afiada como a lança. A cidade é a lança.
Não tem atalhos, não tem janelas inocentemente escancaradas à mercê do acaso.
O homem então se camufla com os paredões e o chão e aí os endereços e as identidades não servem para nada porque o homem cinza já não tem mais vontade de gritar o próprio nome e todas as cartas que há de receber agora são algumas contas a pagar.

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