23.10.12

Diário de Calçada Encharcada

A gente nunca tinha visto nuvem fazer muro de contenção no céu daquela forma.
(O cinza ficou dois degraus mais escuro do que a gente considera triste na medida certa.)
Eu via você erguendo seu arco e flechas sem flechas pro alto e dedilhando a impotência como fosse um deus meio burro - mas um deus ainda, apesar de tudo.
Eu via as flechas imaginadas atingindo os turbilhões que eram as promessas de chuva comprimidas que tentavam se libertar sobre nós e sentia uma espécie orgulho,  talvez também imaginário.
De repente seu arco explodiu enfim os sacos de chuva e eles libertaram toneladas de gotas doces enquanto nós corríamos ensopados e perplexos por uma estrada de asfalto de breu que parecia não ter um final.
Seu arco à tiracolo era inesquecível e também as flechas que não existiam... meio que por isso você não tinha mãos para me dar: cada um corria por si.
E a gente também nunca tinha visto pipas nascerem nas pontas dos galhos secos das cerejeiras daquela forma.
Como que se todas as pipas de todos os tempos sentissem sede súbita de enrolar a própria rabiola naquele cardume seco de pau.
- Pra onde é que foram os meninos que soltaram as pipas? - eu queria saber.
Você apontou pras pipas e eu vi incrédula que as pipas nunca foram pipas: as pipas eram justamente os tais meninos por eles mesmos, penduradinhos pelas roupas esfarrapadas debaixo do temporal.
- Mas e pra onde é que foram então as pipas que soltaram os meninos? - eu queria saber... eu queria saber qualquer coisa que fosse.
Você apontou pra nuvem que era um muro e disse:
- Tudo o que nasce da tristeza acima da média somos nós mesmos. E eu sou você também... ou talvez você é que seja eu.
Pegamos nosso arco (de repente cheio de flechas muito sólidas) e finalizamos os menino-pipas um por um.
E a chuva estancou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário