17.8.10

Sobre as ferrovias

"Escute aqui, você precisa saber que trens vem e vão e que seguir o trilho é o que eles fazem de melhor."
Eu nem perguntei "e daí", ele já sabia que esse ponto final deveria anteceder outra frase e não o fim:
"Você é trem. Que faz aí parada?"
A resposta estava na ponta da língua, mas a pergunta era retórica. Continou:
"Trens vão e vem, como eu disse, e o importante é manter o ritmo e cumprir a rota."
Dessa vez fui mais rápida: "Que rota?"
"A rota do trilho! Era bem esta a questão, acho que agora estamos nos entendendo finalmente..."
"Onde é que dá o trilho?"
"Ora, minha filha, o trilho não dá em lugar nenhum... ele só segue e você só acompanha."

Eu olhei pro chão, pro emaranhado de ferro e terra que todo mundo (forçosamente) acha ótimo só porque é o único jeito de continuar engolindo ordens e poeira sem se sentir infeliz, e pensei alto e em bom som: Que bela porcaria temos aqui, não?!
Tomei um cascudo daqueles de virar o cérebro ao avesso.
"Mal agradecida!" E foi ele se deitar no chão pra cheirar bem fundo e se empanturrar da única opção de banquete que tem quem só aprendeu a olhar pra baixo.
Cheirou, achou ruim, engasgou... mas - orgulho! - se levantou e disse:
"Agora é tua vez, mas não gasta tudo não que todo mundo também quer um pouco."

Eu lá agachada olhei pra cara dele como quem pede instruções, mas isso era apenas uma desculpa pra olhar pra cima e daí ver o céu.
Distraí.. e que beleza aquelas nuvens todas em formato de florzinha e macaquinho e elefantinho...não demorou e eu achei lá um cowboy e um índio montados nos cavalos reluzentes e travando uma batalha daquelas, que nem nos filmes.
Outro cascudo e meu cérebro voltou pro lugar. Aparentemente pro lugar errado, de novo, mas isso não vem ao caso.

Obedeci e enfiei o nariz na lama, encostando as bochechas no enferrujado pelando.
Ardeu feio, mas quem é que ia ligar pra uma queimadurazinha que só machuca a pele quando se tem lá dentro dos pulmões um cheiro daqueles?
Eu senti minha alma morrer um pouquinho, envenenada ainda por cima.
E eu acho é que ela morreu totalmente (por uns 10 segundos, pelo menos) quando pensei na possibilidade de ter que aceitar conviver com aquilo por um longo tempo ainda.
E imagina se tal longo tempo é tão longo quanto é longo meu tempo aqui na Terra?
Estremeci.

Olhei pro céu e tava tudo igual, mas não vi cowboy nenhum e o índio agora era uma massa disforme.
Perderam o sentido.

Olhei pro sul e pro norte, milhões de trilhos pra tudo quanto era lado.
Mas só naquele dalí colocaram o meu nome quando eu nasci.
É por isso que ele era meu... ou, melhor dizendo, é por isso é que eu era dele.
Inteiramente sua posse.
Olhei pro chão e não via mais o trilho. Via meu pai, meu chefe, meu amo, meu deus.

À minha esquerda e direita zarpavam trens coloridos (tinta daquelas bem vagabundas), felizes da vida indo pra lugar nenhum soltar suas fumacinhas e apitar bem alto pra avisar que estão passando.
Pena que ninguém disse pra eles que pra onde eles vão tem tanta gente apitando que ninguém ouve mais nada: os apitos são todos então uma sinfonia incompreensível (e até mesmo feia) que todo mundo cisma em aplaudir de pé.

Eu pensei nisso e pensei também que se um dia eu tiver lá naquela bagunça eu não vou saber aplaudir, porque essa lição, que já tanto tentaram me ensinar, eu não aprendi.
Eu não quero aprender, não vou aprender jamais a fingir apreciação.

Quando fui deixada sozinha com a Lua e minhas nuvens irreconhecíveis (mas ainda lá, que eu sei) no céu de piche, resolvi que era hora de separar minhas coisas - uns pedaços de histórias incompletas gravadas em endocárdio envelhecido, um auto-falante (nunca se sabe quando será preciso se fazer ouvir) e uns trocados - e seguir a pé.
Pra onde eu não sei, e é isso que empolga.
Meu caminho. Eu não vou ser dele, eu não sou de ninguém... nem de mim!
Seremos parceiros apenas, eu apoiarei meus calcanhares nele e ele apoiará seus pedregulhos em mim (mesmo que doa).

Sairemos por aí e, se tudo der certo, construiremos um novo trilho caso alguém queira seguir um cheiro novo depois que eu tiver ido.

E Auf Wiedersehen para os que ficam.

Piuíííiííí.........

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