27.11.11

Como um gato eriçado pelo medo, caminho pelo tempo.
Não consigo ouvir o cuco gritando as horas, não há nenhuma janela pra me avisar se está chovendo ou não.
O meu corpo inteiro se arrepia na ausência do vento, e o arrepio injustificado provoca outro arrepio. Uma reação em cadeia é o que temos então.
Não é de hoje que me chamam de super-garota, nem é de hoje que fazem o favor de me listar todos meus calcanhares de Aquiles em seguida.
Peço (mentalmente, sempre mentalmente...) aos tais que se contradigam menos, porque eu adoraria acreditar em palavras tão garbosas do tipo mas do jeito que vai não dá.
Me pronuncio escada abaixo com as duas mãos agarradas ao corrimão enquanto outros passageiros se lançam em saltos mortais pra enlamear mais ainda de sangue o chão do hall.
Eu amassei a lista dos meus defeitos, aquela com tipografia forçosamente rebuscada, e tasquei no vaso sanitário antes de começar a descida.
Não esqueci de dar a descarga, mas esqueci de esquecer de ter lido certos itens que agora julgo ofensivos.
Carrego as ofensas comigo degrau à degrau, como quem carrega as roupas do corpo.
[Sobe a sensação de que existe uma flecha na minha cabeça e cada vez que alguém me ultrapassa voando pelas laterais e me olha torto o arrepio grita pra me dar certeza de que ele também viu a artilharia pesada que anda tentando fazer par com o meu cérebro.]
Tenho mania de perseguição, tomo tudo para mim, e os olhos caminhantes em minhas paralelas são espelhos tortos em que eu cismo em acreditar ainda. Depois de tudo, ainda sou uma crente afinal.
Me aproximo do hall (de entrada ou de saída?) e vejo um, dois, três, vinte copos de cerveja estraçalhados no chão feito passarinho em dia de caça.
Quem foi que fez? Quem foi o artista?
Não tenho voz pra perguntar e nem ouvidos pra ouvir a resposta. E tanto faz, se quer saber.
Os corpos apressados que continuam a se arremessar pela escada às minhas costas aterrizam no chão de cacos e misturam seu sangue aos dos demais.
A humanidade se resume a uma poça diante dos meus olhos, uma sopa triste de sei lá o quê.
Minha nuca se eriça mais a cada passo, como um cachorro que tenta fugir de uma coleira apertada.
Não existe jeito de voltar e subir tudo o que já desci e de todo modo lá em cima a única coisa que me aguarda é a mesma privada onde já afoguei umas certas várias dúzias de cartas cretinas.
Meus pés acertam enfim os primeiros cacos. Meu sangue vem a tona de mansinho e escorre pelos últimos degraus até se unir com o resto espalhado no chão.
Pronto. A sopa tem também o meu gosto agora... (mas na verdade isso não importa muita coisa, já que ninguém nunca vai saber qual é o meu gosto e qual é o gosto do carinha barbudo sangrando pelos olhos à minha esquerda.)
Sinto a dor do corte e essa dor anestesia outras dores velhas companheiras. E é um baita de um alívio, eu admito.
Munida da mais nova experiência, acho que entendo ao menos um pouco mais o mundo aparentemente feliz boiando nos cacos, e os suicidas doidos para chegarem até a dor logo de uma vez, quanto mais rápido melhor.
Degrau demais faz a gente pensar demais, a nuca se arrepia demais - um dia ela foge de vez.
Certos emaranhados de palavras rebuscadas disfarçadas de conselho e bem-querer enforcam os mais fracos pelo caminho.
Ninguém escuta o cuco, por mais que ele se esgoele ao fundo.
Ninguém quer saber que horas são, ninguém quer saber da previsão do tempo.
O ser humano é empurrado pelo instinto do esquecimento escada abaixo, é isso que é e agora eu sei.
Quanto mais rápido, melhor.
O mundo dos que aterrizam é uma bacia de carcaças que acreditam estar nadando para algum lugar.
Queria dizer pra elas que (a maioria, sejamos justos) estão só boiando inutilmente, esperando afogar.
Mas eu aqui, não posso simplesmente me colocar como superior só porque olho tudo de cima da minha confortável visão panorâmica na escadaria.
Eu sempre soube, mais a cada metro que desci, que em dado momento eu seria uma delas, uma das carcaças. Mas sou covarde, não sei pular.
Daí a cada trombada que me dão pelas costas cruzo os dedos e fico na torcida pra ver se não caio também por causa disso (não por culpa minha! jamais por culpa minha!) de cara no diacho do lamaçal.

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