28.10.12

Diário de Telhado

Você veio para se sentar na beirada do telhado enquanto o sol ainda não nasceu, porque se o sol já tivesse nascido ele empurraria os pensamentos contra certas trincheiras: dever, certeza, verdade, justiça, racional, vida.
Sol às 4 da manhã é problema pro futuro. E às 4 da manhã não existe futuro.
Às 4 da manhã num telhado úmido de uma chuva antiga é possível esticar as asas que andavam amordaçadas por dentro do sobretudo e ninguém vai ver e está tudo bem.
O vento sopra: nem do norte, nem to sul, nem do leste, nem do oeste. Sopra.
Não existe direção às 4 da manhã; existe um telhado permanentemente úmido, uma calha-poça permanentemente recolhendo insetinhos cansados da vida e a névoa clareando de leve o escuro e o escuro escurecendo de leve a névoa.
Você não pode ver nada, mas fica a sensação de que sim... ou talvez seja o oposto: você pode ver tudo e parece que não.
Os extremos sempre terminam um comendo o rabo do outro.
O vento é frio como que se viesse dos Polos; e os Polos mais frios ainda: como que se viessem de dentro.
Você está em casa... diante da Grande Geleira invisível!, finalmente.
Algumas penas suas caem na calha, cansaram de viver também.
Você olha na geleira o coração que ela tem e que antes era tão pesado-chumbo: parece uma casquinha de ovo vazia.
O vento bate e ela gira, gira burra no lugar.
Às 4 da manhã não existem muitos sentimentos, exceto essa clareza aguçada... esse minimalismo que era a última opção, como o do soldado que permaneceu de pé, abarrotado até as orelhas de tiros dados e recebidos.
E os tiros recebidos latejam na pele e os tiros dados latejam no coração casca de ovo, mas o coração casca de ovo não tem mais recheio pra sentir as coisas de verdade... só carrega elas ali dentro, como uma mãozinha de criança em concha que leva um passarinho destroçado não sabe bem pra onde, pra ajudar ele não sabe bem como.
Às 4 da manhã as penas do tal passarinho e as suas próprias penas caem na calha sem grandes alarmes, nem bom e nem ruim... num sentimento de boca sem paladar.
E a névoa clareia o escuro e o escuro escurece a névoa e tudo se anula e tudo permanece.
E ainda bem.

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